- Comentar
O nome da mulher começa por S. e ela tem um filho com o mesmo nome do pai, que tem dois nomes próprios seguidos. Assim, sempre que chama o filho, está a dizer alto o nome do seu agressor. Hoje ela está sozinha.
Uma obra violenta
E não temos, precisamente, o senhor..., começa a juíza.
Ele trabalha nas obras e dizem que não atende quando está a trabalhar, responde a advogada.
No banco das testemunhas está S., calças de linho branco, camisola amarelo-girassol, pele castanha. Nasceu em 1990. Casou em 2011.
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
Ainda é casada?
Sim, com esse senhor.
Já não vive com ele?
Não. Desde o ocorrido, não mais, foi no mesmo instante.
As primeiras perguntas a uma testemunha - a vítima ou alguém que assistiu a um crime - são feitas pelo Ministério Público. A Procuradora pergunta a S. em que dia tinham ocorrido os factos.
Não me lembro do dia exacto, disse S. Foi há dois ou três anos.
Acha que era Inverno ou era Verão?
Não me lembro. Foi em Santa Apolónia. Nós vivemos em muito lado. No Marquês de Pombal, no Campo Mártires da Praia. Passávamos sempre de um quarto para o outro, de pensão para pensão, porque ele é alcoólico e quando bebe... Às vezes ficávamos a dormir na rua. Ele, quando bebe, torna-se agressivo, tem comportamentos inadequados, e acabávamos sempre expulsos. Metia-se em confusões com outros inquilinos, partia coisas tanto dos outros como nossas.
O quê?
Partia vidros, portas, janelas, tudo.
Como é que a tratava a si?
É um bocado delicado. Muito mal.
Mas diga. Chamava-lhe nomes?
Posso dizer?
Tem de dizer.
Vaca, puta, nenhum homem te quer. Ofendia os meus pais. Ameaçava que me matava.
Agora, S. tem de explicar mais.
Ele dizia: estou mesmo a tratar das coisas para te matar. Eu comecei a ter medo quando vi uma pistola lá em casa. Nós na altura vivíamos em casa de um tio e havia um rapaz e ele ficou com ciúmes e confrontaram-se os dois e eu tive de me meter no meio. Ele não tinha licença para ter a arma.
Como é que descobriu a pistola?
Eu vi nas coisas dele. Falei com ele. Mas no dia seguinte já não tinha e disse que a dera a uma sobrinho de 19 anos.
Foram muitas ocasiões, diz a mulher, ela até perdeu a conta, foi praticamente o casamento todo. Uma vez, encostou-lhe uma faca e um garfo ao pescoço, como se fosse cortar carne.
Ele não bebia quando eu o conheci. Mas quando começou a beber, foi logo. Eu dizia que o ia deixar, ele dizia que me tirava o menino.
Agredia-a com o cabo da vassoura, chegou a partir-lhe o nariz (lembra-se agora de que estava grávida de dois meses).
Eu caía no chão para ele não me bater. Não me mates! E ele : é para te matar mesmo, é para te matar. Parece que ele se transforma, os olhos ficam vermelhos. Eu não sou de discutir com um homem. Era ele que vinha, uma frustração, não sei.
Quando é que ele lhe cuspiu na boca?
Não me lembro de quando foi.
Daí a pouco, a mulher diz:
Eu vi que, se não me separasse dele, eu ia sair de lá morta.
E a senhora nunca o agredia a ele?
Não, porque eu sou doente. Tenho esclerose múltipla. Sofro de ansiedade e depressão. Tenho uma dor de cabeça constante.
O ainda marido não apareceu no dia do seu julgamento, estava a trabalhar nas obras. Têm um filho pequeno com o nome do pai.
O nome desta mulher começa com a letra S. Ao ouvir a sua diáspora por Lisboa, de quarto em quarto de pensões baratas, sempre expulsa, às vezes na rua, pensei que podia chamar-se Solidão.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia