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1.
Acaba de ser lançado um livro que reúne as crónicas de Miguel Esteves Cardoso que nunca tinham sido publicadas.
"Independente Demente" é um acontecimento editorial. Como já fora um acontecimento a reedição pela Bertrand de "A Causa das Coisas" e "Os Meus Problemas".
Três livros que celebram a inteligência e uma ideia de liberdade num país que, demasiadas vezes, tem ideias muito estreitas sobre a liberdade.
A doença de Miguel Esteves Cardoso
2.
Sendo associado à direita, monárquico muitas vezes e libertário outras, Miguel Esteves Cardoso ajudou o país a pensar sobre si próprio.
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E ajudou-me a mim, e a muitos miúdos de esquerda, no reconhecimento de uma marca que em si era evidente, a marca mais forte entre todas as que carregava no seu corpo largo, a do respeito pelas diferenças.
Muito poucos na sua geração, e em todas as gerações, pensaram Portugal através dos nossos tiques, dos pequenos gestos e angústias, dos defeitos e virtudes, das pulhices e generosidade.
Miguel foi na maior parte da sua vida um cirurgião do que somos.
Foi capaz de operar o país e de lhe fazer uma radiografia que é hoje tão válida como era há 40 anos.
Portugal é a sua doença preferida.
Que ele analisou, compreendeu e diagnosticou.
Uma doença ainda assim incurável.
Para bem dos nossos pecados - se fosse curável correríamos o risco de ele deixar de escrever, seria uma pena e uma perda para mim e para ti se o lês.
3.
Miguel é um homem que acredita na liberdade, apesar de ser ferozmente individualista.
É um homem de direita, apesar de ser um otimista sobre a capacidade humana.
É um conservador, sendo um revolucionário.
É um militante sem fé da causa monárquica que defende intransigentemente os comunistas.
Um dia foi entrevistar Álvaro Cunhal com a ideia de lhe fazer perguntas muito difíceis e saiu de lá sem ter feito nenhuma pergunta difícil - como poderia se ele foi tão simpático para mim, respondeu a quem quis saber a razão de ter falhado a missão.
4.
Miguel Esteves Cardoso não é uma pessoa deste tempo.
É que ele gosta de gostar.
Parece uma coisa sem importância, mas percebem que é especial quando encontramos alguém que dedicou toda a sua vida à arte de ver o mundo com um bisturi? E de o fazer sem perder a capacidade de amar as pessoas e as suas obras?
Quando ele ouve uma canção vai com a ideia de gostar.
Quando vai ao cinema gosta de dizer bem.
Quando lê um livro vai na ideia de ser um grande livro.
No nosso tempo vemos o contrário.
Somos um país do "mas".
Gostei muito, "mas".
És muito bom, "mas".
Gostava de dizer melhor, de sentir mais qualquer coisa, "mas".
O MEC não é assim.
Nasceu e viveu em função do prazer de estar aqui.
De dizer bem, de dizer que amava, de dizer que aquele sabor é maravilhoso, que aquela voz é prodigiosa, que aquele plano o marcou, que aquela atriz o arrebatou.
Ah, e escreve maravilhosamente.
É também isso que celebramos neste seu livro.
Celebramos a qualidade, a escrita límpida, a generosidade de uma vida feita da vontade de iluminar o caminho.
Por isso, lhe agradeço.
Sem "mas".
Obrigado, Miguel.
Que o mundo que somos te possa celebrar.