Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

A família de Paula Rego parece gostar demasiadamente de dinheiro

1.

A família de Paula Rego vendeu ao Estado português "O Impostor", um quadro importante que a extraordinária artista plástica pintou na década de 1960.

É um quadro emblemático de um tempo. Um grito de revolta contra o Estado Novo e contra Oliveira Salazar a quem Paula Rego viu nesta obra como um polvo.

É essa a história de "O Impostor" que o ministro da Cultura (e muito bem) comprou em nome do Estado português para a coleção do novo museu que no Centro Cultural de Belém sucederá ao Museu Berardo.

2.

Paula Rego é uma das maiores figuras da história da cultura portuguesa.

É certo que os britânicos a definem como uma grande artista inglesa, mas ela é sem dúvida portuguesa - o que pintava, o que pensava, o seu modo de ver o mundo era radicalmente português.

Mesmo que ela se sentisse londrina...

... as suas mulheres.

A dor das suas mulheres.

E a autodeterminação das suas mulheres era muito a luta, o corpo e a dor das mulheres portuguesas.

A sua pintura era de combate, as suas figuras eram daqui - mesmo que fossem universais.

Numa frase, a obra de Paula Rego não poderia ser esta se ela tivesse nascido em Inglaterra.

3.

O Estado português fez bem em comprar este quadro. Por ser um grito contra o Estado Novo e Salazar.

Uma obra que é histórica e nos pertence.

Há obras assim, que pela importância do que dizem, pela importância da pessoa que o disse, passam a fazer parte do património dos países, passam a ser um contributo para a identidade nacional, para a compreensão do que somos.

"O Impostor", um óleo de 179 por 158 centímetros, foi pela primeira vez visto numa exposição na Sociedade de Belas Artes, em 1965. Gerou logo enorme ruído e levou a que Paula Rego tivesse sido incomodada pela polícia política do regime.

4.

A família de Paula Rego vendeu "O Impostor" ao Estado português por 400 mil euros.

Nick Willing, o filho mais velho e porta-voz do legado da pintora, estava feliz com a operação. No dia da notícia afirmou muito simpaticamente:

"É uma honra que 'O Impostor' fique em Portugal. Se fosse para Espanha ou para os Estados Unidos não seria a mesma coisa. Esta imagem é uma das críticas mais diretas ao regime que a minha mãe fez na década de 1960".

Mas ao ouvi-lo fiquei a pensar.

Não teria feito sentido, não teria sido até um ato de homenagem ao legado deixado pela mãe, se os filhos de Paulo Rego tivessem oferecido este quadro ao Estado português?

Nem sequer tem a ver com o dinheiro - 400 mil euros pode ser um preço mais do que justo e até abaixo do mercado por um trabalho da pintora -, mas até por isso não teria ficado bem contratualizar esta operação de uma outra maneira?

Porque este quadro é muito específico.

Claro que tem um valor, mas também é claro que faz sentido que ficasse em permanência no país que a viu nascer, o país que ali está retratado, o peso do que ali é dito transcende tudo o resto.

5.

E a família de Paula Rego tem tanto dinheiro.

Já ganharam tanto dinheiro.

Já estabeleceram tantas parcerias com entidades portuguesas e têm sido tão acarinhados (e bem) pelo Estado português que pensei para os meus botões: ora bolas, que chatice terem perdido a oportunidade de um gesto de boa vontade, de um gesto político, de um gesto de agradecimento pelo que Paula Rego, sua mãe, deixou ao país em que nasceu.

Teria sido fácil.

E sendo materialistas poderiam até ganhar de uma outra maneira.

Davam uma borla com uma mão e em troca negociavam qualquer outra coisa.

Talvez eu seja ingénuo.

Ou talvez seja mesmo inapto na função de ganhar dinheiro, mas vá lá...

... não havia necessidade de cobrar quase meio milhão a Portugal por este quadro.

Não precisavam.

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