Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

A menina de três anos não foi morta por pessoas más

1. A Jéssica tinha três anos.

Era bastante parecida com a minha filha Benedita - os mesmos olhos grandes e vivos, exatamente a mesma idade, aparentemente o mesmo corpo franzino.

A Benedita deixou de usar fraldas há um par de meses.

De vez em quando descuida-se - ainda este fim de semana o fez no carro, estava tão cansada que adormeceu e se descuidou, ela e nós que não demos pelas horas passarem e não lhe perguntámos se queria fazer chichi.

2. Podiam ter sido amigas.

A Jéssica tinha aqueles olhos vivos e certamente que ficaria "presa" à casa das bonecas da Gabby, à Patrulha Pata e às histórias fantásticas de meninos e meninas que abraçam o mundo como se não existisse o mal ou como se os "papões" e os "bois da cara preta" não existissem nos seus pesadelos de bebés.

Certamente que a Jéssica não gostava de ser chamada bebé.

A Benedita detesta.

"Ó pai, eu não sou bebé, eu sou uma menina".

Claro que sim, são meninas.

Que deviam gostar das mesmas coisas.

Ou então mesmo que não gostassem das mesmas coisas teriam gostado se a vida lhes tivesse oferecido um qualquer encontro ou oportunidades semelhantes.

A Jéssica teria gostado de cachorros em dias especiais.

Batatas fritas, douradinhos e perninhas de frango assado.

Teria gostado de ser tapada à noite e abraçada durante a vida.

Teria gostado de brincar com outros meninos ao escorrega, à apanhada, às escondidas.

Daqui a três anos teria gostado de entrar na primária.

Aprenderia a ler e a contar.

Esperaria pelo Pai Natal e com o tempo saberia o que se sente quando nos apaixonamos, quando amamos alguém, quando ficamos desiludidos e tristes, quando temos sonhos de futuro e uma vida nossa, uma casa nossa, filhos nossos ou quando decidimos não os ter por que somos donos da nossa vida.

3. A minha Benedita tem os olhos vivos como a Jéssica.

E os mesmos três anos.

Não há como não pensar que elas jamais se encontrarão em vida.

A Jéssica não poderá fazer nada do que eu sonho para a Benedita. Que ontem, no carro adormeceu esgotada das brincadeiras.

"O pai, foi um acidente".

"Claro que foi um acidente, Benny. Não faz mal".

4. Como é possível?

Como justificar o mal absoluto?

Não se consegue, mesmo que se pense duas ou mil vezes não se consegue justificar o que aconteceu.

Por que a maldade é outra coisa.

Conseguimos indignar-nos, quantificar, efabular, especular.

Isto não é maldade - isto é o inominável, a monstruosidade, a miséria mais funda.

Por isso, as pessoas que a mataram não são más.

Estão para lá dessa definição, não há palavras no dicionário que definam o que existe para lá da monstruosidade.

E ao contrário do que se tem dito e escrito, isto é impossível de plasmar numa lei de proteção pois nenhum legislador poderá prever que tal enormidade possa acontecer.

A Jéssica, como a tão bonita Valentina, morreram às mãos de pessoas que não consigo compreender. Há quem as explique, há quem as defina, há até quem se atreva a enumerar as soluções, mas sinceramente e em consciência não consigo fazê-lo.

O que sei é que a Jéssica tinha três anos.

Brincava com bonecas ou carrinhos.

Não sabia o que era a morte.

Ou Deus ou a sua ausência.

Não sabia o que queria ser quando fosse grande ou então queria ser o que a Benedita deseja (quer ser uma super-herói ou uma cabeleireira de árvores).

A Jéssica não tinha ainda definido quem eram os seus amigos, talvez ainda não se vestisse sozinha, talvez gostasse da ideia de usar bandoletes, talvez, como a Benedita, desejasse andar de avião pela primeira vez ou ir ao cinema e conseguir ver um filme inteiro com pipocas doces e um suminho.

5. Que consigamos abraçar melhor os nossos.

Que o Estado possa proteger melhor os que estão em perigo desde o primeiro dia que nascem.

Pela Jéssica.

Que não faz a mais pequena ideia da razão de ter sido espancada até à morte.

Que se salvem vidas.

Que consigamos imaginar para lá do que se pode imaginar.

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