- Comentar
1.
No final de 2016, o Teatro da Cornucópia fechou as suas portas. Para surpresa (quase) geral, a companhia fundada por Luís Miguel Cintra não conseguiu ver aprovadas as verbas que necessitava no concurso de apoio financeiro do Ministério da Cultura.
A Cornucópia era uma parte substancial do teatro português.
Ver Luís Miguel Cintra a não ser apoiado, e a Cornucópia a ter de fechar, seria do domínio do impensável. Mas em Portugal o impensável acontece demasiadas vezes.
Há sempre uma cambada que confunde a justiça e a democracia com esquecimento e falta de memória.
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
E a Cornucópia fechou mesmo.
Albano Jerónimo, a "Seiva Trupe" ou "A Barraca" não merecem um euro que seja
2.
Jorge Silva Melo, que partiu recentemente, levou os últimos trinta anos da sua vida a batalhar para que os "Artistas Unidos" tivessem um lugar de onde não fossem obrigados a sair.
Morreu sem conseguir cumprir esse objetivo.
E o Jorge, com o Luís Miguel Cintra, os dois fundadores da Cornucópia, tinham lançado mais atores, cenógrafos ou encenadores do que qualquer outro projeto depois de 1974.
Foram apoiados, ganharam concursos, mas a malta do poder político ou económico ou mesmo cultural não suportava Silva Melo e Cintra - eram chatos, reivindicativos, gajos intratáveis.
3.
Por tudo isto, não me surpreenderam as ondas de choque, os abaixo-assinados de projetos teatrais que viram, na passada semana, os seus nomes esquecidos pelo júri que decidiu quem era merecedor de ser subsidiado.
Assim de repente, e de cabeça, ficaram de fora a Seiva Trupe, a companhia de Albano Jerónimo, o projeto de Marco Martins, a Casa Conveniente de Mónica Calle, A Barraca ou a proposta de Clara Andermatt.
São casos diferentes, projetos diferentes e não os posso comparar com os que ganharam subsídio - talvez o teatro português esteja com uma vitalidade artística tal que se pode dar ao luxo de prescindir de nomes como os de Albano Jerónimo ou Marco Martins - um e o outro absolutamente incontornáveis no teatro e no cinema.
Como é possível estes dois não terem sido apoiados?
Quem no júri tratou de se vingar?
Ou quantas pessoas no júri têm bom senso e maturidade?
Perguntas que me ocorrem.
Espero que injustas.
Mas é claro que para esta gente, Albano Jerónimo, a "Seiva Trupe" ou "A Barraca" não merecem um euro que seja.
4.
O problema, como em 2016 com a Cornucópia, não é a escolha de projetos novos, de figuras que podem e devem ser puxadas para cima, apoiadas e incentivadas pelo Ministério da Cultura.
O problema é não existir logo à partida um regime de exceção para determinados projetos artísticos que não deveriam ter de concorrer e andar à bulha por um bocadinho de dinheiro que lhes permita sobreviver.
Vamos lá a ver.
A Seiva Trupe é uma instituição no Porto.
Fez mais pela cultura da cidade do que a maioria dos projetos que existiram nos últimos 50 anos.
Comeram os ossos, mas nunca conseguiram provar a carne, o que é lamentável e triste.
5.
O Estado português não é a Santa Casa da Misericórdia.
Concordo e concordaremos todos.
Mas deve saber respeitar o legado cultural.
Respeitar os artistas portugueses.
As companhias que estiveram sempre, que atravessaram mares e ventos difíceis, gente que dedicou a sua vida ao palco e ao público português.
A pobre da Maria do Céu Guerra está a concorrer ao concurso por alma de quem?
E a malta da Seiva Trupe?
Por que raio têm de preencher papelada e concorrer em igualdade de circunstância com gente que é perfeita na burocracia e rigorosa a desenhar planos de negócio?
Coitado do Luís Miguel Cintra para quem a burocracia foi sempre secundária face ao texto, aos ensaios e aos espetáculos.
6.
Criem um regime de exceção para alguns projetos.
É o preço a pagar, está tudo bem, enquanto contribuinte não me importo.
O ministro da Cultura que lhes exija em troca ajuda na formação de grupos de teatro nos liceus - porque não?
Exijam, mas não enterrem quem deu tanto.
Não tratem os artistas no final da vida como se fossem verbos de encher.
Como o Ruy de Carvalho que continua a trabalhar aos 90 anos para pagar as contas.
Tenhamos memória.
Respeitemos os nossos mais velhos.
Não os condenemos a uma morte em vida.