Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

Como explicar que Raquel Seruca tenha morrido de cancro?

1.

Até ao nosso último dia, o meu e o seu, não conseguiremos perceber a razão para que determinadas coisas aconteçam.

É a vida e os seus transcendentes segredos.
Brutalidade.
Tantas vezes, maravilha.
Bastas vezes, injustiça.

Raquel Seruca tinha 59 anos.
Era uma médica de referência e uma das mais notáveis investigadoras da história da ciência portuguesa - o seu trabalho na área do cancro gástrico e do cólon é um dos mais relevantes e citados no mundo.

Poucos terão contribuído tanto como ela no conhecimento e diagnóstico das mutações dos cancros gástricos.

Muitas famílias beneficiaram com isso.
Muitas centenas ou milhares de pessoas conseguirão prevenir e salvar-se por que ela e a sua equipa ofereceram o melhor da sua vida para que mais de nós tivessem futuro.

2.

Raquel tinha menos de 60 anos.

E até ao seu último minuto viveu paredes-meias com o sonho, com os sonhos.

Acreditava sempre que existia uma solução, obrigava quem trabalhava consigo a acreditar também, a não desistir, a combater pelo alargamento de todos os caminhos.

Pessoais.
Profissionais.

Era professora na Faculdade de Medicina do Porto.
E o braço-direito de Manuel Sobrinho Simões no IPATIMUP, instituto de referência mundial na prevenção e diagnóstico de cancro.

Raquel Seruca vivia com a obsessão da pergunta por responder.

Da dúvida por desvendar.

Da preocupação pelo jovem estudante para que não desistisse de querer mais.

Da necessidade de explicar a importância da ciência ao poder político e económico

Da descoberta, mesmo pequena, mesmo ínfima, que todos os dias alimentava a sua capacidade de levar tudo para a frente, como se tudo fosse mesmo possível.

3.

Raquel Seruca tinha os olhos grandes.

Encantava-se com os outros.

Tinha curiosidade no que lhe diziam - quer fosse o professor Sobrinho Simões, um estudante de doutoramento, um auxiliar de ação médica ou o pessoal da limpeza.

Sorria com os olhos e tentava compreender o mundo na sua plenitude.

Um dia disse assim:

"A ciência ocupa o meu espaço real e imaginário, transforma todos os dias numa viagem sem tempo e dá a cada um deles um sabor colorido. A ciência permitiu-me encontrar gente que me faz feliz e ajuda-me a honrar o acaso dos momentos".

Foi isto que ela nos disse, que ela nos deixou.

4.

Voltamos então ao princípio.

Como explicar o que não tem explicação?

Qual o desígnio deste movimento que nos faz nascer e morrer num timing que não controlamos?

Como entender que a mulher que tanto fez pelo conhecimento do cancro tenha partido, com menos de 60 anos, vítima de um cancro?

Raquel Seruca, professora da vida de tantos alunos, mulher forte, lutadora e convicta que um dia vi de galochas numa tarde chuvosa, médica que obrigava os seus pares a ir para a bancada observar no microscópio a eterna magia de se ser curioso em permanência.

É dela que hoje nos despedimos.
Uma pessoa maior.

A Teresa e o João, os filhos que ofereceu ao mundo, têm todas as razões para chorar a sua mãe, mas que uma parte das lágrimas seja de alegria por tudo o que ela lhes ofereceu, nos ofereceu.

Por tudo o que a sua mãe lhes deixou de herança.

A mais poderosa herança que um filho pode ambicionar, a do exemplo, a do orgulho pelo que fez na sua breve passagem por aqui.

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