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1.
O relógio virtual criado por um grupo de cientistas de referência nunca esteve tão perto do apocalipse.
O boletim dos cientistas atómicos, que descreve o relógio como uma metáfora, mas também como uma justa medida do tempo que nos resta, moveu os ponteiros de 100 para 90 segundos para a meia-noite.
A ameaça nuclear, a guerra na Ucrânia e a crise climática aproximam-nos do fim, do parágrafo final nesta história de ganância, de poder, de vaidade, mas ainda assim de sonho, de grandeza, de coragem.
Gostei muito de vos ter conhecido - uma carta que será pó. Ouça aqui o Postal do Dia
2.
Quero dizer-te, antes que seja tarde, que gosto muito de viver. Que acredito numa ideia de bem, numa ideia que nos torne capazes de ser maiores, de fintar todos os destinos, de conquistar a pulso uma ideia de felicidade.
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Tenho quatro filhos.
Dois deles ainda muito bebés.
Acredito no futuro.
Acredito que ainda verei os filhos deles.
Acredito que conseguiremos dar corda ao contrário a este relógio, fazê-lo recuar para que os meus e os teus filhos...
...e os filhos dos filhos dos filhos possam ter uma vida.
3.
Quero dizer-te que gosto de viver.
Que acredito no ser humano.
E que não trocaria este país por qualquer outro.
Eu sei sobre dúvidas e angústias. Sei sobre os "velhos do Restelo", o bota-abaixo, a tendência para o pessimismo, para o fado, para a pequena e grande inveja, para o pobrezinho e honrado que não sai de algumas cabeças, para a dificuldade estrutural da nossa economia.
(sei isso tudo).
Mas não trocaria este país por outro.
Gosto da luz de Lisboa.
Do charme do Porto,
Do murmúrio alentejano que agora também faço meu.
Das montanhas de Trás-os-Montes, de conquistar a confiança dos beirões, de me perder na velha Coimbra, do calor de Santarém e das tantas lezírias à volta, dos docinhos de Aveiro e da sua ria, de me sentir em casa em Leiria, de me deslumbrar com o Funchal e de renovar a paixão por todas as ilhas açorianas.
4.
Ah, como gosto de ser português, nascido em 1971, na Maternidade Alfredo da Costa. Que orgulho tenho dos portugueses que tiveram de ir. Que regressam no verão para abraçar o país que tiveram de abandonar. Que orgulho nos que tanto sofreram, nos que tiveram que comer o pão que o diabo amassou em Paris, no Rio de Janeiro ou na Venezuela. A limpar a merda dos outros, a ser humilhados por serem pobres, analfabetos, quase abaixo de humanos.
Não falo do pastel de nata, do vinho, do azeite, das azeitonas com pão de Mafra, das sardinhas nos santos populares, nas pataniscas ou alheiras, no Benfica, Porto e Sporting, mais o Braga e o Guimarães, mais a porrada de criar bicho do Rio Ave quando encontra o Varzim, mais os bairros de pescadores, os enchidos, a Torre de Belém e os Jerónimos, as pontes do Porto e Lisboa, a memória do hóquei em patins relatado quando existia Livramento, a voz de Amália Rodrigues... Mais a Simone de Oliveira a chegar de comboio de Espanha, milhares de pessoas na rua, a chorar, a aplaudir. Mais os novos fadistas, o Camané, a Ana Moura e a Mariza. E o Rui Veloso, o Abrunhosa, o Zambujo, as canções dos Xutos e GNR, o Sérgio Godinho, o Jorge Palma, mais os tantos que já não estão, o Zeca e o José Mário Branco.
De todas as lágrimas que chorei. De toda a minha memória feita nesta língua que hoje celebramos. Um país que existe há tantos séculos e a que pertenço, Luís Miguel Matos dos Santos Osório, filho de José Manuel Osório e de Maria Matos dos Santos, pai de quatro filhos e de dois enteados, natural de São Sebastião da Pedreira e português.
Um dia serei cinza, mas fica escrito aqui que nunca me imaginei ser outra coisa, que nunca quis nascer num outro lugar, que nunca quis ser filho de uma outra língua. Sou português. É a língua do meu silêncio. E do teu.
Fica dito.
Se os ponteiros continuarem a avançar gostei muito de te ter conhecido.