Postal do Dia

Já ninguém escreve postais, mas a TSF insiste e manda bilhetes postais com destinatário. Em poucas palavras mas com ideias que fazem pensar: "Postal do Dia", com Luís Osório. De segunda a sexta-feira, depois das 18h00 e sempre em tsf.pt.

Nunca me passou pela cabeça que a Eduarda Dionísio pudesse morrer

1.

Sei bem da morte.

Sei bem que um dia acordamos e noutro podemos deixar de o fazer.

Sei que é imparável, a única coisa de que temos certa, essas coisas.

Mas também sei que não me conformo, que me continua a ser estranha, apesar de próxima.

Morreu-me agora a Eduarda Dionísio.

A Eduarda foi muitas coisas na vida, muitas coisas importantes, mas hoje quero apenas falar-te do que dela me lembro, de pormenores, de memórias, de impressões.

2.

A Eduarda Dionísio é uma das figuras de referência da cultura. Uma figura que dedicou a sua vida à tentativa de encontrar novas formas de fazer as coisas, novos modelos, novos lugares para novos artistas, novas inquietações, questionamentos, dúvidas.

Fundou a "Abril em Maio" ou a "Casa da Achada".

Sítios com livros, com pessoas sedentas de encontro e de ideias que ela fazia que fossem também políticas e comprometidas com o mundo.

Talvez tenha sido o modo de nunca deixar cair a memória do seu pai, Mário Dionísio. Um criador e pensador empenhado que se afastou do PCP ainda na década de 50. O seu muito amigo Álvaro Cunhal nunca lhe perdoou completamente a dolorosa desilusão.

Mas o Mário achava que a liberdade não se alcançaria por ali e procurou outras maneiras mais heterodoxas, menos fechadas num aprisionamento ideológico de que fugiu sempre.

A filha Eduarda seguiu-o nisso.

3.

Não te quero falar do importante que ela deixou.

Do teatro, das obras que traduziu e encenou, do papel sindical junto dos professores, do seu talento e gosto em ensinar, da importância dos seus manuais escolares que ensinavam de uma outra maneira os miúdos a gostar da nossa língua, do que escreveu na Seara Nova tão miúda, do que escreveu e eu li no Diário de Lisboa.

Não te quero escrever dos milhares de projetos que fundou. Da urgência com que encarava todos os dias o combate aos que olhavam a cultura como insuportável fast-food. Da sua militância política contra o fascismo e depois no compromisso com o PSR e o Bloco de Esquerda.

4.

"Retrato dum Amigo Enquanto Falo" é um dos livros da minha vida. Um texto belo sobre a desilusão, mas ainda assim sobre a necessidade de continuar até ao fim.

Conheci-a depois de ler o livro.

E é dessa Eduarda que te quero falar.

A que recebia as pessoas como se as pessoas fossem de casa.

Eu era um miúdo a sair da adolescência e ela emprestou-me livros e fez-me sentir importante.

Tinha um sorriso de miúda, um sorriso que a passagem do tempo não lhe roubou.

Li ontem que tinha 77 anos.

Foi uma surpresa tão grande como a que tive por saber que partira. Por que a Eduarda era uma miúda, nunca pensei que pudesse ter mais de 70 anos. Na verdade, nunca me passou pela cabeça que pudesse morrer.

Um dia, há muitos anos, fiquei na mesma mesa a comer sardinhas com ela e o José Mário Branco. Falaram (e eu ouvia) de livros e poesia. Falaram (e eu ouvia) de canções e revolução. Falaram (e eu ouvia) de política, de ação política, do futuro.

5.

Morreu a Eduarda Dionísio, uma mulher maior.

Que não teve o destaque que mereceria em vida nem o espaço que se impunha na notícia da sua improvável morte.

Foi, precisamente com José Mário Branco, a maior intérprete daquilo a que eu chamo a cultura da não capitulação, a cultura como única arma politica possível para uma revolução utópica, improvável, mas necessária.

Deles me afastei politicamente há quase 30 anos.

Mas não tenho a certeza absoluta de quem teve razão.

Espero que um dia o possamos discutir à volta de uma mesa com livros e um bom vinho tinto. Mas aí já lhes levaria vantagem pois seria sinal de que a vida existia para lá da bagunça daqui. E nisso é eles nunca acreditaram.

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