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1.
Em criança, nos passeios com o meu pai pela Baixa de Lisboa, entre o Café Nicola e a Tabacaria Caravela, encontrávamos o "homem sem rosto".
Sempre tentei não dar parte de fraco, nunca me queixei, mas quando o via carregava o medo durante uns dias. Pensava naquela cara quando adormecia, acordava a meio da noite, perguntava sobre o que era, sobre quem era.
Depois comecei a ir à Baixa sozinho e ele lá estava. Mas continuava sempre a desviar-me como se aquele homem me pudesse fazer mal ou não fosse um ser humano.
Ele estava muitas vezes sentado e era agressivo para quem o tentava fotografar. A sua cara estava escondida por um tumor que crescera ao longo dos anos, viam-se os olhos e o resto era uma massa volumosa que repugnava, admirava ou amedrontava quem passava.
O monstro que assustava as crianças de Lisboa já não está no Rossio
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2.
O "homem sem rosto" era uma figura de Lisboa.
Um "monstro" de que poucos sabiam a história.
De vez em quando havia pequenos marginais que lhe faziam partidas, que o gozavam e humilhavam. Foi numa dessas vezes, talvez numa reportagem lida num jornal, que soube o seu nome: José Mestre.
Soube que nascera com uma mancha escura na cara.
Que muito rapidamente começou a crescer até se tornar a própria cara.
Soube que o José tinha uma irmã que o ajudava, que nunca o desamparou. Que a sua mãe era bonita, mas que a sua história a entristeceu e lhe matou a alegria de viver, que o José foi sobrevivendo como pôde.
Aos 14 anos ainda lhe deram emprego numa drogaria em Queluz, mas depois, muito pouco tempo depois, já estava a controlar o trânsito numa esquina para receber uns trocos que nunca chegavam.
Por isso, encheu-se de coragem e foi para o Rossio.
A grande metrópole e ele.
Sem cara.
Monstruoso entre o Nicola e a Caravela, sentado a maior parte do tempo e à espera de ouvir as moedas de quem passava. E os risos, e as vozes de espanto, e as exclamações, as lágrimas das crianças ou os pedidos de idiotas para que tirasse a máscara e deixasse de enganar papalvos.
A grande metrópole do Rossio e ele, algumas vezes a ter de fugir por becos para não ser maltratado e a ganhar defesas. A aprender que tinha de responder com agressividade quando o tentavam fotografar, a partir máquinas e a gritar com uma voz hedionda que lhe saía de uma boca que não víamos.
3.
O José foi operado há uns 15 anos.
Aceitara a troco de dinheiro ser protagonista de um documentário no Discovery Channel. E uma equipa de médicos de Chicago propôs realizar-lhe a operação gratuitamente.
O José foi e fez a operação.
Há relatos e imagens.
A equipa de especialistas retirou-lhe um tumor de 40 centímetros e quase seis quilos.
A sua cara tornou-se visível, mas inevitavelmente deformada. E sem o tumor o José ganhou esperança de vida, mas deixou de se reconhecer.
E nós também o deixámos de reconhecer.
Voltou ao Rossio e esteve mais uns anos nos mesmos lugares onde antes ficava sentado todo o dia.
Era a única coisa que tinha, o seu sofrimento, a sua monstruosidade e repugnância era um chamariz para a generosidade e para a pulhice, para o bem e para o mal.
José alimentava-se das moedas dos que o ajudavam e do asco dos que o rejeitavam.
4.
Lembrei-me dele por ontem ter revisto "O Homem Elefante" de David Lynch".
E hoje de manhã fui pesquisar sobre o José, saber o que era feito desse personagem trágico e iniciático da minha infância e juventude.
Soube por duas notícias breves que morreu durante a pandemia, em dezembro de 2021.
O José terminou assim a sua missão por aqui.
Que possa então ter encontrado um lugar sem trânsito e um novo corpo - que possa ter quebrado o feitiço e seja agora um príncipe de um conto dos irmãos Grimm.