- Comentar
1.
Há pessoas que veem sempre o copo meio vazio.
Gente que gosta de não gostar.
Malta para quem a ilusão ou o sonho já não faz parte do baralho.
Quero hoje falar-te de Johnson Semedo, um homem extraordinário. Um homem cuja vida poderia dar um filme interpretado por um Denzel Washington com menos vinte anos.
Quero falar-te dele para reforçar o quanto vale a pena acreditar que é possível, que não há vencidos por decreto.
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
O Johnson morreu em casa.
Tinha 50 anos e um cancro terminal, não resistiu.
Mas não te quero falar da sua morte.
Seria injusto se não o homenageasse com vida, com resistência, com combate.
O Presidente da República fez bem em ver o Portugal-Suíça na Academia que o Johnson fundou no lugar dos desesperançados.
Fez bem em ir à Cova da Moura, três dias depois do seu funeral.
O rapaz que aos dez anos já vivia na rua e consumia drogas era afinal um anjo
2.
O Johnson veio de São Tomé aos dois anos.
A família tinha encontro marcado com o pai que já estava a viver numa barraca na Cova da Moura.
Não existia eletricidade, canalizações, comida.
O pequeno Johnson comia o que havia. E na primária percebeu que não podia ser gente grande, advogado dos pobres ou médico. Concluiu que estava condenado.
Não existia água em casa.
Só um chafariz para toda a comunidade - ali se lavava a roupa e se preparavam as refeições de dezenas de famílias.
O Johnson ouviu as outras crianças queixarem-se à professora por causa do preto que cheirava mal. E ele percebeu que o preto era ele e nunca mais foi à escola.
Aos dez anos já se drogava.
Com cola.
A fumar haxixe.
Aos onze saiu de casa.
Passou a viver na rua com outros como ele.
Nas noites frias agarrava-se a outros como ele.
Passou para a heroína e daí, para se salvar do adormecimento, temperou-a com cocaína.
Assaltava.
Vendia droga.
Foi preso.
Primeiro, seis meses.
Depois, dezasseis anos.
Cumpriu dez na prisão.
E um dia um funcionário tratou-o pelo nome.
"João, posso fazer-lhe uma pergunta."
Não soube o que dizer - nunca ninguém o tratara pelo nome. Chamavam-lhe preto, chamavam-lhe bicho, chamavam-lhe pelo número que tinha na camisa.
Mas aquele homem tratou-o por João.
E quis saber dele, se precisava de alguma coisa.
3.
O Presidente da República resolveu celebrar a sua vida.
Em 2020 já o visitara na Cova da Moura, o bairro onde se perdeu, o bairro em que se continuam a estatelar miúdos todos os dias.
E o bairro em que o João - a quem todos chamavam Johnson - salvou todos os dias miúdos da perdição.
Porque quando saiu da prisão estava um farrapo por fora, mas tornara-se enorme por dentro.
Na sua cabeça era claro que precisava de se salvar.
Que a sua vida precisava de um sentido.
Que não queria mais perder o importante - não sabia o que era amar, o que era abraçar, o que era chorar.
Fez uma desintoxicação e um plano de vida.
Queria ser treinador de futebol, fez um curso e começou a passear pelo bairro de uma outra maneira.
Viu que muitas coisas não tinham mudado.
E teve a ideia de fundar um projeto para tirar os miúdos das sarjetas. Para os salvar com o seu exemplo, para lhes dar uma bola e os incentivar nos estudos, para ajudar os presos que saíam, para oferecer o que tinha, a sua vida.
4.
O Johnson morreu a semana passada.
Teve a sorte de aprender a abraçar.
E a força para oferecer um sentido a centenas de miúdos.
Nós somos o que fazemos, dizia muitas vezes.
Os miúdos e jovens abraçavam-no e pediam-lhe conselhos.
No seu funeral estavam largas centenas de pessoas. Miúdos que choravam, miúdos que confessavam que ele era um segundo pai.
O Johnson adorava balões.
E os seus miúdos. E os que já não eram miúdos, mas que continuavam a sê-lo aos seus olhos, fizeram voar para o céu muitos e muitos balões.
Certamente que ajudaram o Johnson a reconhecer a mesma voz que o salvou numa manhã na prisão.
"João, desta vez não te quero fazer uma pergunta, quero dizer-te que mereces o paraíso".
Quero acreditar que foi assim.
Porque se Deus existe, foi assim.