- Comentar
1.
Tenho dois casacos postos e continuo gelado.
Está tanto frio.
Há alertas para os mais vulneráveis - os que têm a sorte de ter uma casa, mas que não a conseguem aquecer, os que vivem em lugares sem condições, os mais velhos de entre nós, os que não têm dinheiro para deixar de estar gelados.
E há alertas também para os que vivem na rua.
Para os que vivem numa situação de sem-abrigo.
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
Há avisos de lugares para onde se podem dirigir, a onde podem ir buscar mais mantas, casacos quentes, apoios.
Os voluntários que nas frias madrugadas se sacrificam pelos sem-abrigo. Ouça aqui o Postal do Dia
2.
Está tanto frio.
Um frio que nos congela as mãos e nos greta os lábios.
Mas isso não é nada, não nos podemos queixar.
Ainda há uns dias o senhor Paulo, apenas com 54 anos, pouco tempo depois de ter celebrado o seu aniversário com uma equipa de rua, o senhor Paulo com os seus problemas recorrentes nos pulmões, não aguentou a chegada do inverno.
Encontraram-no já cadáver numas arcadas sempre ocupadas por sem-abrigos quando cai a noite em Lisboa.
O senhor Paulo não se importava.
Afinal, o que lhe poderia acontecer de pior?
Morrer nunca lhe pareceu um castigo demasiadamente severo em comparação com o que fora a sua vida, com o que fizera da sua vida.
Talvez por isso, apesar dos pulmões, fumava e bebia o máximo que podia, pelo menos que não lhe tirassem esse prazer que se transformou numa necessidade.
3.
Costumava dizer às equipas que as coisas lhe aconteceram sempre assim, por muito que tivesse bons pensamentos os maus encarregavam-se de ocupar todo o espaço.
Tudo se foi desmoronando na sua vida.
A família.
Os amigos.
O futuro.
A dignidade.
Ficou com as beatas mais o vinho de pacote e o que arranjava para destruir o resto.
Quando aparecia alguma solução de alojamento dizia que não, nada lhe interessava, preferia assim, beber o veneno até ao último dia, despachar o assunto.
E se as brigadas insistiam num quartinho, num albergue, o senhor Paulo retirava-se de cena ou fazia por ser desagradável, que o deixassem na sua ilusão de liberdade.
O senhor Paulo rebentou com o resto.
Deixou-se ir debaixo de umas arcadas.
4.
Está um gelo lá fora e há mais homens assim.
E mulheres também.
Pessoas em situação de sem-abrigo que todos os dias sobrevivem como podem.
Uns sem esperança, outros com um fio de luz que os guia.
Mas sempre com apoio.
É preciso que se diga e se fale nas centenas de voluntários que não desistem.
Que todos os dias estão na rua.
Que levam sopa e comida.
Que os ouvem.
Até que os abraçam, os encaminham, os tentam afastar do abismo.
Estive com muitos desses voluntários em Leiria, ouvi Henrique Joaquim, ex-presidente da Comunidade Vida e Paz e atual responsável pela estratégia nacional para a integração de pessoas em situação de sem-abrigo.
Emocionei-me muito com a generosidade de toda esta gente que não espera nada em troca.
Basta-lhes dar o que têm, contribuir para que o mundo possa ficar um bocadinho melhor. E quando tiram uma pessoa da rua, quando tiram uma pessoa da rua os seus olhos brilham numa recompensa que não precisa de ser mediática.
Só na Comunidade Vida e Paz são 500 voluntários.
De esquerda e de direita ou sem ideologia.
Uns acreditam em Deus, outros acreditam no ser humano e há também os que não acreditam numa coisa ou na outra, apenas numa ideia de Bem.
Está muito frio, hoje particularmente.
Mas enquanto a maioria de nós está segura em casas aquecidas, eles e elas têm malgas de sopa na mão e um sorriso que oferecem nas madrugadas aos que se perderam.
E no final da noite estendem-lhes a mão para que regressem à vida... se o quiserem.