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1.
Em agosto passado, numa concorrida sessão em Nova Iorque, Salman Rushdie foi esfaqueado por um radical islâmico que desejava cumprir a sentença de morte decretada pelo Irão após a publicação de Versículos Satânicos.
O assassino, de olhos esgazeados, estava aparentemente feliz.
Achava que o matara, não era possível que não o tivesse morto.
Tinha 24 anos e tornou-se um herói para muitos islâmicos. Mais tarde confessaria que não lera uma linha que fosse do escritor a quem tentara roubar a vida.
Salman Rushdie viu-se ao espelho sem um olho e pediu uma caneta e um bloco. Ouça o Postal do Dia
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2.
Salman Rushdie sobreviveu.
Apesar das 15 feridas profundas - no peito, no torso, nos olhos, nos braços, na mão.
Apesar de ter ficado cego de um olho.
De um braço ter ficado sem tendões, inutilizado.
Apesar das longas semanas a lutar pela vida.
Apesar de tudo isso, Salman voltou a escrever e hoje é um dia que o mundo celebra.
Um dia de luz contra a escuridão.
Um dia em que o homem que escreve, contra todas as probabilidades, voltou a escrever só com um braço, só com uma mão, só com um olho, voltou a fazê-lo e a acabar um livro que hoje foi lançado em algumas capitais do mundo.
3.
A literatura, como o cinema, o teatro ou as artes plásticas, não salva o mundo.
Não tem o poder de resgatar ninguém de uma guerra, de salvar uma criança da fome ou de travar a maldade, mas tem a enorme capacidade de poder ser uma fronteira entre o que é errado e o que é certo, entre o que é progresso e o que é decadência, entre o que é verdade e o que é mentira, entre o que é injusto e uma ignomínia. Entre o que é coragem e o que é a cobardia.
O livro hoje lançado - Victory City - conta a história de uma mulher que conhece uma deusa e que, a partir daí, irá saborear a glória até esta se transformar em holocausto.
O poder, claro.
O poder absoluto que cega.
O poder que nos rebenta por dentro e nos diz coisas ao ouvido, coisas em que acreditamos, coisas em que precisamos de acreditar para continuar a alimentar uma fome e uma sede perpétua.
4.
A cegueira do poder nada tem a ver com a cegueira do escritor num olho esfaqueado por um miúdo cheio de grilos falantes dentro da cabeça.
Um rapaz que nunca leu os livros, que não conhece os personagens de Salman Rushdie, que apenas conhecia o escritor por uma fotografia que trazia consigo para que não lhe fosse possível esquecer.
Ele fez tudo bem.
Cumpriu todas as partes do plano.
Esfaqueou-o com paixão e zelo.
Mas Salman viveu.
E só pode ter vivido por Alá o ter desejado.
Outra hipótese seria um sacrilégio para qualquer devoto ao Islão - e isso deve estar agora a perturbá-lo, a perturbá-los.
Porque aquilo que aconteceu foi um milagre.
Um milagre certamente humano.
O da força por uma ideia.
O da coragem para continuar a viver.
O de resistir quando tudo empurra para baixo - Salman viu-se ao espelho sem um olho, coberto de feridas, sem tendões num braço e prosseguiu.
Pediu um bloco de notas e uma caneta.
Perguntou pelo computador.
E recomeçou a escrever.
Como se lhe fosse vital juntar palavras, tão vital como respirar e ser livre.
5.
E é tudo isso que faz hoje sentido aplaudir.
O enorme peso da liberdade, o enormíssimo peso de lutar por uma ideia de decência, de tolerância, contra a polarização, contra a ignorância atrevida, contra as trevas.
Salman Rushdie encontra-se em parte incerta.
Não esteve no lançamento, o seu corpo manteve-se fora do alcance das sombras, mas a sua escrita, as palavras que junta a outras palavras, os livros que nos deixa, são o mais poderoso legado contra a fogueira de que se alimentam os que não gostam da liberdade de pensamento, da capacidade de sermos mais, de querermos mais, de sermos donos de nós próprios.
A vitória será sempre nossa.
Porque temos razão.
E Deus, a existir, está connosco.