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1.
Ana Moura tinha aparentemente tudo.
Uma carreira sólida, espetáculos em todo o mundo, bons cachets, respeitada pelo público e pela crítica, venerada pela comunidade fadista e pela generalidade do meio artístico.
As revistas adoravam-na.
As estrelas planetárias pediam-lhe para cantar no mesmo palco - impossível esquecer a relação com Prince ou o espetáculo dos Stones em que Mick Jagger a convidou para cantar "No Expectations".
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Os programas de televisão em que participava subiam as suas audiências, os telediscos batiam recordes de visionamentos, a publicidade em que decidia entrar era bem paga e não havia quem não lhe dissesse...
"És tão bonita, Ana"
"És linda, maravilhosa, sensual, sexy, talentosa"
"Tens tudo, Ana".
Ouça aqui o Postal do Dia.
2.
Tinha tudo, mas não se sentia feliz.
Demasiados concertos.
Demasiada pressão.
A gravar discos que já não sentia.
Sempre com as mesmas pessoas, com as mesmas rotinas, com os mesmos planos.
A morte trágica do seu irmão fê-la repensar tudo.
Deixou um disco a meio e embarcou na pandemia com a certeza absoluta de que desejava ser livre, ser feliz.
3.
Este é um postal sobre a Ana Moura.
Mas também é um postal sobre mim, sobre as minhas perguntas sobre a Ana, sobre os porquês que nasceram na minha cabeça.
O que se terá passado com ela?
Porque mudou tanto?
Porque parece desejar ser outra quando gostamos tanto desta? Desejar ser outra voz, ser outra cara, ser outro corpo, ser o que não sabemos muito bem, o que nos perturba, o que nos confunde?
Ao vê-la nos Globos de Ouro, nas fotografias da passadeira vermelha com o músico Pedro Mafama, pai da sua primeira filha.
Ao vê-la sorridente, muito bem-disposta, aparentemente feliz, mas tão diferente da imagem que tinha como garantida, perguntei e perguntei e voltei a perguntar no almoço do dia seguinte.
"Viste a Ana Moura nos Globos de Ouro?"
4.
Não, este postal não é sobre Ana Moura.
É mais sobre mim.
E sobre ti se fizeste as mesmas perguntas que eu.
Sobre a nossa incapacidade, no fundo, de respeitarmos verdadeiramente a liberdade dos outros poderem escolher o seu caminho.
Não em tese, em tese estaremos certamente de acordo. Mas se quem muda de estilo ou de vida for alguém que veneramos, alguém que nos faz feliz pelo que canta, pelo que pinta, pelo que faz, então o caso muda de figura.
Sentimos que estas pessoas nos pertencem.
Compramos os seus discos, vemos os seus espetáculos, lemos os seus livros, assistimos aos seus programas de televisão, sabemos tudo sobre elas e eles...
Pertencem-nos.
Mesmo que não o pensemos, é isso que acontece.
5.
A Ana Moura quis ser livre.
A sua vida de sucesso e a nossa veneração por ela não chegava. Quis ser o que o coração lhe pediu, fez as suas escolhas, apaixonou-se, mudou a vida, mudou a cara, mudou o reportório.
E eu não gostei.
Cheguei a levantar-me incrédulo, a exclamar um "como é possível, Ana? Porque foste estragar o que estava tão bem?".
E só uns dias depois é que me caiu a ficha.
Mas a Ana Moura não tem o direito de fazer o que lhe apetecer? Não tem o direito de mudar de produtor, de editora, de agência?
Tem, claro que tem.
Aliás, tem todo o mérito pelo risco de colocar tudo em causa, de poder perder tudo em nome de uma convicção profunda.
Honra para ela.
Honra para os que ousam, para os que arriscam, para os que não se acomodam ao que sabem que resulta, aos que são donos da sua vida.
Por tudo isto, Ana Moura é hoje uma estrela maior do que antes.
Mesmo que falhe.