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1. Chamava-se Salvador o rapaz que matou a "sangue-frio" 21 crianças numa escola primária de um lugar recôndito do Texas.
Esperou metodicamente pelos 18 anos para comprar armas.
Comprou-as como qualquer pessoa o pode fazer nos Estados Unidos - o pode fazer, é bom que se recorde, sem ter de mostrar o cadastro psicológico ou criminal.
Comprou e imaginou tudo na sua cabeça. Treinou os passos como se estivesse a jogar "Call of Duty", anunciou o que ia fazer nas redes sociais, tentou matar a avó, saiu de casa, entrou na escola primária e depois na sala onde executou crianças indefesas.
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21 crianças.
E pelo menos, dois professores.
2. Ao vermos as imagens estarrecemos.
Como definir a barbárie dos que continuam nos Estados Unidos a permitir que as armas se vendam indiscriminadamente?
Como definir um tempo em que é tão difícil distinguir realidade e ficção?
Mesmo que estejamos preparados nunca estamos realmente preparados.
Eu não estou.
Ainda me surpreendo com a capacidade que temos de ser diabólicos e perversos.
Será difícil encontrar quem não se indigne ou comova com o que viu, leu e ouviu.
3. Mas também em Portugal, este fim-de-semana, tínhamos razão para nos indignarmos e não nos indignámos. Talvez por não termos pensado sobre o assunto.
Eu conto-lhe.
Nas Festas de Maio, na Moita, um adolescente de 16 anos morreu ao ser atingido por um touro dentro da arena montada na Avenida Teófilo Braga.
O miúdo chamava-se Afonso Jesus.
Tinha jeito para jogar à bola, vestia até a camisola 10, a dos craques, a dos mágicos, a dos que fintam os adversários e a vida.
Na sua equipa de futsal, na Baixa da Banheira, não havia quem dele não gostasse.
Bom aluno, divertido, cheio de vida.
Muito bonito também, o Afonso.
Mesmo.
4. Não resistiu aos ferimentos na primeira largada da festa.
Eram quase duas da manhã quando um touro o atingiu no pescoço.
Afonso caiu inanimado e a Cruz Vermelha presente no local assistiu-o de imediato.
Viria a morrer no Hospital do Barreiro.
E o seu corpo ainda está na morgue para ser autopsiado a pedido do Ministério Público.
5. Por que razão trago dois assuntos incomparáveis?
Por existir uma palavra que me atravessa nos dois casos.
Amoralidade.
A palavra amoralidade.
Por que na Moita, depois de um miúdo de 16 anos ter morrido, a Câmara Municipal, liderada por um socialista, não cancelou de imediato as festas.
Não se fez silêncio.
A Câmara escreveu um comunicado solidário à família.
Mas às 11 da manhã do dia seguinte, os toiros voltaram às ruas da Moita com os seus cornos em pontas.
E tudo aconteceu como se nada tivesse acontecido.
Como aliás em 2014 quando um outro touro matou dois homens na mesma festa, a câmara (então comunista) lamentou, mas manteve as largadas.
6. Não se trata de ser a favor ou contra as touradas ou largadas, essa é uma outra questão, um outro tema.
Trata-se de ter o coração no lugar certo.
De ser empático com o sofrimento, com uma família que perde o seu filho.
De ser empático com esta coisa de sermos humanos.
Imagino que a festa seja decisiva para as contas, imagino que muita gente trabalhe para que aquelas festas aconteçam, mas é impossível não ficar de boca aberta com a amoralidade.
Vejam a cara daquele menino.
Chamava-se Afonso Jesus, tinha 16 anos.
A vida à sua frente.
Golos para marcar.
Filhos para ter.
Danças para aprender.
Podia ser vosso filho.
Podia ser meu filho.
Filho do presidente da câmara.
Digam-me uma razão que não me faça vomitar para que as festas não tenham sido canceladas.
Porque não somos humanos?
Porque somos assim?