Enquanto, cumprindo a ordem do dia, registais as vocalizações de algumas aves raras, rapaces, agourentas, (não vos caia, a propósito, na prosa, a gralha), fico à varanda desta notícia breve do JN sobre o homem que ajudou uma mulher a "resgatar araras", na praia da Rainha, em Cascais. A notícia é mais minguada que um ninho de andorinha, mas cabem nela, como num samba de Jobim, todas as aves do céu, todas as aves do chão.
Deixai que a notícia bata asas. Uma mulher costuma passear com as suas araras aos ombros, vê que as aves de estimação, "assustadas com um grupo numeroso que lhes tirava fotografias", zarpam para as escarpas da praia da Rainha. As suas não são "araras versáteis" como as de um poema de Hilda Hilst. Aqui nenhum efebo passa "entre meninas trêfegas", esta é uma história de fim escarposo, não de deleite escabroso. Mas há um homem que se lança às águas e trepa pela escarpa para trazer de volta aos ombros despovoados as araras assustadiças. E assim o mundo retoma a sua ordem natural e podemos imaginar, tal como numa certa crónica de Rubem Braga, publicada em 54, no Correio da Manhã do Rio de Janeiro, um céu cheio de passarinhos, "pousando em pequeninas nuvens brancas". Vinde comigo até mais perto do maravilhamento do cronista que enumerava as aves de um céu feito para todos os voos: "Tucanos, araras lindas, papagaios peripatéticos contando histórias, a capengar de um lado para o outro, como velhos marujos do ar". Nenhuma varanda é triste, lendo Rubem Braga. Na crónica de que vos falo ele recorda uma pergunta que ouviu certa vez na boca de Jayme Ovalle, o compositor e poeta brasileiro que se apaixonou por um manequim, daqueles de montra de loja: "Onde dormem os urubus?"
Uma mulher passeia, de novo, levando ao ombro, resgatadas das escarpas, as suas araras. A notícia tem uma fala da mulher, tão grata e tão feliz, quanto ao sujeito e seus predicados: "O homem", diz ela, foi de um grau de altruísmo e de uma nobreza extremos".
Imagino que as araras adormecem no ombro dela, fraseando.
