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A foto de capa do Público, obtida por Nuno Ferreira Santos, revela o momento em que, num quadro de irremediável desconcerto, o da chamada coligação negativa que marcou o dia de ontem no parlamento, três governantes ensaiam um ritual de compostura. Duarte Cordeiro, António Costa e João Leão estão de pé, enfrentando as bancadas confinadas num alinhamento paradoxal. Os três apertam, em gestos concertados, os botões de cima dos casacos.

Capa do jornal Público de 27 de novembro de 2020
© Reprodução Público
Nesta encenação de um comedimento institucional, estão, afinal, reproduzindo uma norma adoptada a partir de Eduardo VII, um rei que, para lá de ditar regras da moda masculina, não raras vezes se deixou enredar em jogos de azar, não tendo, sequer, escapado ao muito badalado "escândalo do bacará". Um dia, o monarca terá admoestado o primeiro-ministro devido ao que considerou o traje inadequado com que o chefe de governo se apresentava. Face à autoridade do rei nesta matéria, o primeiro-ministro desculpou-se com as dificuldades criadas pela crise desses dias. Fica claro, olhando a foto de capa do Público, que Costa não será censurado em Belém por descuido com a etiqueta dos botões do casaco, mesmo em plena borrasca política. Mas não é tão óbvio que os três da bancada governamental não estejam, na verdade, tentando abotoar, dentro das regras, uma muito apertada camisa-de-onze-varas.
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Outros retirarão, com privilegiado conhecimento dos bastidores do jogo político, as lições que este desconcertante acerto de tácticas nos trazem quanto ao apego aos valores e a bondade e genuinidade da prática política ontem tão profusamente ilustradas. Eu faço, apenas, com os olhos de um leigo, a leitura de uma estranha coreografia no hemiciclo ditada pelo cálculo dos votos arregimentados, mais do que pelas afinidades electivas.
A verificação dos inusitados alinhamentos, numa desconcertante e histriónica contabilidade, reduziu o episódio do queijo limiano a um amanteigado e banal capítulo da miséria política.
O que nos foi dado ver nas televisões dá material de primeira água para os estudiosos da farsa política: o inesperado charme de Joacine, a cujos pés se rojaram estrategas de várias bancadas, ou a deplorável e penosa intervenção da deputada Sara Madruga da Costa transformada em títere de uma indecorosa ordem da caserna, não nos dizem apenas que, neste escândalo do bacará em que o jogo político por vezes se transforma, há gato. E não é o gato com que António Costa ameaça continuar a caçar.