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Esta madrugada, ao folhear os jornais senti, espreitando sobre o meu ombro, a presença do menino fingidor de um poema de Manoel de Barros. Espreitava sobre o meu ombro e o seu olhar demorava-se numa notícia. Era o menino que "fazia tudo de conta. Fingia que lata era um navio e viajava de lata". Pressenti o olhar dele sobre o meu ombro, fazendo de conta que navegava com o olhar. Sobre aquela notícia.
Logo outro olhar se juntou ao do menino que viajava de lata. Esse segundo olhador saltou de um poema de Cecília Meireles e senti que tentava descrever um sonho: "Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar". Uma espécie de angústia lírica marujou o meu ombro.
Ouça aqui a crónica na íntegra
Muitas outras palavras foram respiradas sobre as espáduas, enquanto a minha mão ancorada em certa notícia não mudava de página. Eram versos soltos, encalhados no cais do meu ombro. Um sussurrava: "Os navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios". E outro: "Não queiras, ó meu navio, ser um navio perdido".
Sobre a mesa, aquela página de jornal, a última do JN, dava voz ao presidente da Associação Nacional de Praças. E ele confirmava que o navio rebocado para o porto do Caniçal, está "sem água, luz ou comida a bordo". Os marinheiros têm de se deslocar a terra para se alimentarem e tomarem banho.
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O navio chama-se Mondego. O seu convés já não acolhe o poema da malta das naus. A notícia diz-nos que, como nuns certos versos de Afonso Lopes Vieira, o mar voltou a ser o que era dantes: "Um quarto escuro/ onde os meninos tinham medo de ir".