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Procura, se puderes, a entrevista que Mia Couto deu há uma semana ao jornalista José Carlos Vieira do Correio Braziliense. O jornal puxou para título da entrevista a avaliação do biólogo e poeta moçambicano segundo a qual "a poesia é boa aliada na era da pandemia". Interrogado sobre qual o espaço da poesia nestes tempos de dúvidas e de medo e sobre se poderemos enfrentar o medo "com elegância poética", Mia Couto não fecha a poesia com as sete chaves do confinamento. Ele considera que, se a poesia "constituir uma visão alternativa do mundo, e não apenas uma forma de arte, então ela terá poderes para enfrentar este mundo". Até porque, acrescenta Mia Couto, "às vezes, tudo o que resta é a palavra". É por isso que "a poesia pode convocar o desejo de um outro mundo que seja mais nosso".
Se o dia for propício a outras derivas, aproveita a rede e tenta encontrar poemas de outro biólogo e poeta, Orlando Mendes, nascido na ilha de Moçambique há pouco mais de cem anos. Ele interessou-se pela fome das larvas e isso não foi irrelevante na sua formulação poética do desejo de um outro mundo.
O jornalista do Correio Braziliense pergunta ao poeta se ficaremos mais solidários no fim da pandemia, Mia responde que o problema está nos modelos económicos e políticos que se constituíram como "factores de desumanização": "A maioria dos que escolheram lideranças populistas e demagógicas muito provavelmente continuará a apoiar no futuro essas lideranças (...) O medo fundamenta a escolha de soluções messiânicas. É por isso que os 'salvadores do mundo' adoram o medo. E fazem da gestão eterna de crises o alimento da sua longevidade".
E o poeta convoca a sua condição de biólogo para sublinhar que quase nada sabemos sobre os vírus e as bactérias, duas entidades que são "a base da própria vida". E escuta este aqui onde queria chegar, ao desafiar-te para que procures a entrevista completa: "Dizemos que essas criaturas são invisíveis apenas porque nós não as podemos ver. Chamamos-lhes micro-organismos. Custa-nos a admitir, mas quem controla a existência e a evolução da vida são essas criaturas ditas invisíveis. Não somos nós. Essas criaturas estão, nesse sentido, mais próximas de Deus do que nós".
É porque vê onde o nosso olhar não chega que o poeta pode conversar com "o lume florindo na forja". Isso explica a primeira frase do jornalista do Correio Braziliense: "Conversar com o poeta e biólogo Mia Couto faz bem à saúde". A prosa do brasileiro corre no avesso da "grande saúde de não perceber coisa nenhuma" de que falava o outro, o do desassossego maior para quem "tudo é uma doença incurável".
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