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A biblioteca municipal de Alijó espalhou, nos últimos dias, nas montras dos estabelecimentos da vila, quadras do cancioneiro e do romanceiro português. Joaquim e Rosa, dois voluntários, foram registando, a marcador, quadras soltas nas vidraças.
Há imagens fixando a iniciativa na página electrónica do município. Numa delas, Joaquim escreve, com marcador vermelho, o primeiro verso de uma quadra: "Hei-de arranjar uma agulha". O escrevinhador tem na mão esquerda a quadra completa. A olho nu, não consigo decifrar o resto do novelo. Mas anoto que a quadra foi escolhida a preceito para a loja de roupas em que ficará afixada.
Outra quadra, desta vez na montra de uma loja de fotografia: " Só os rapazes do campo / é que me devem amizade; / são sérios, não pedem beijos / só se lhos derem de vontade".
Já Rosa escreve na vidraça do oftalmologista. Há um pequeno ajuntamento de mulheres, de máscara, fazendo concha. Os reflexos da luz no vidro não me deixam ver o que Rosa escreve. E, todavia, no topo da montra, uma inscrição garante que "ver é poder". Ocorre-me traduzir: "ler é poder".
Noutra foto, ela escreve a marcador azul, as unhas dela pintadas de amarelo. "Todos os males se curam com remédio da ". O verso está suspenso nesse instante em que Rosa ensaia a palavra que o completa. Com remédio da botica?
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Já a imagem nos chama para outra montra onde ela escreve: " O meu amor é barbeiro / não é quem o mundo diz: / tem a loja no terreiro / virada para o chafariz". No lado de dentro da montra, está afixado um letreiro, anunciando aulas de música, em Santa Eugénia.
Já em Fevereiro, o município espalhara cinco mil cartas de amor pelos jardins. O ano passado, Diogo Piçarra levou ao rubro centenas de jovens no teatro de Alijó, cantando poemas de Pessoa.
O grande poeta António Cabral, que era de Alijó, e que tanto mergulhou na etnografia e no cancioneiro popular duriense, teria gostado de ver estas montras e as quadras soltas que nelas pousaram.
Cá por mim, levado pela leveza dos marcadores, deixo na dobra do ecrã, minha montra de luz tão branca que por vezes cega, este arremedo:
"Cá ficamos sem debate
falando com os cotovelos.
O hemiciclo, a rebate,
já não tece seus duelos
Se o maior da oposição,
do debate quinzenal,
tem tão fraca opinião,
a democracia vai mal.
E tamanha mascarada
não incomoda os do Rato?
Na verdade, não entendo.
Com franqueza, aqui há gato."
Ouça a crónica "Sinais", de Fernando Alves, na íntegra.