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Na grande urbe quase inteligente que se prepara para discutir em Maio a Cidade dos Quinze Minutos, uma mulher regressava a casa no comboio sobrelotado. Foi o máximo que os serviços mínimos lhe facultaram. Imagina-se os corpos comprimidos, o ar irrespirável. A dado momento, a mulher terá deixado de pensar no que o fim do dia lhe traria, jantar e arrumações, talvez uma nesga de televisão, os pés cansados, o coração ainda batendo muita terra, pouca terra. Alguém, naquela ou noutra carruagem do comboio que ontem não chegou a Sintra, lotação mais do que máxima devido a seriedade negocial das partes menos do que mínima, puxa o travão de emergência. Tomemos um cenário: a administração da CP, o sindicalista que acabei de escutar nesta rádio a dizer "ténhamos" e os outros tantos picabilhetes da nossa vida na linha desalinhada convidam o novo ministro das Infraestruturas para um piquete de civilidade com directos televisivos durante o qual um cavalheiro disfarçado de Álvaro de Campos dirá, sem descarrilar, aqueles versos de 34: "Saí do comboio,/ disse adeus ao companheiro de viagem/ Tínhamos estado dezoito horas juntos.../ A conversa agradável,/ a fraternidade da viagem./Tive pena de sair do comboio, de o deixar". Ide-vos coçar à parte de trás de uma zorra. A mulher que agora sucumbe a um ataque de ansiedade na carruagem sobrelotada, já lá vai, levada pelo INEM, para Santa Maria. Qual jantar, qual nesga de televisão.
Ouça aqui a crónica na íntegra
Na última carruagem de notícias do JN vem hoje uma imagem de passageiros na linha. Vão acompanhados pela PSP para a estação de Benfica. A PSP abriu, para eles, um corredor de segurança. Nos carris vão dois comboios de gente apeada. Num chão de balastro, sob um céu de catenárias. Quantos eram os que sucumbiram ao bafo da turba? Os repórteres pedem números ao graduado. O graduado não tem um exacto número, nem um picabilhetes o teria. Um repórter, no quase pânico, vá lá no alvoroço de perguntar logo se vê o quê: "eram centenas de pessoas, dezenas de pessoas?". Vais de cu tremido na hora de ponta, repórter alvoroçado sem assunto. Que raio de pergunta. E o graduado, sem número que dissesse tamanho amontoado, devolve a desmesura não mensurável: "Estava muito superlotado".
Da mulher que teve um ataque de ansiedade e foi levada para o hospital, não se soube o fim do dia. Mas deve ter tido alta.
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