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Começas por ir para os Estados Unidos, com 18 anos, e logo depois para Londres, completamente focado em fazer stand-up?
Eu comecei antes em Portugal. Mas queria torna-me um comediante de clubes, e aqui não havia clubes. Então fui para os Estados Unidos, estive lá dois meses, na Califórnia. Depois voltei, mas vi que em Portugal nunca ia chegar ao que eu queria fazer, então decidi ir para Londres há quatro anos.
Presumo que os primeiros tempos não tenham sido fáceis.
Não, fáceis não foram de certeza. Também porque eu fui com uma inocência de miúdo. Eu fui com 400 euros no bolso, que tinha por ter vendido o meu carro. Em Londres, 400 euros não dá para nada! Nada! Com 400 euros deu para comprar uma sanduíche quando cheguei lá, depois para pedir um café já tive de pedir um empréstimo.
André de Freitas entrevistado no TSF Open Mic
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O que é que os teus pais disseram?
"Agora vais para Londres para ser comediante de stand-up?!" Mas repara, quando eu comecei, ainda era a altura em que as pessoas perguntavam "o que é stand-up?". E quando tu explicas o que é "vou para o palco, contar umas piadas" ... E os meus pais não são das artes, disseram "vais para Inglaterra para seres comediante?"... Fui com 400 euros no bolso, as primeiras noites fiquei num hostel, num daqueles em que algumas pessoas vivem. E inclusive na primeira noite tive um ataque de asma, e estava a fazer muito barulho porque não conseguia respirar, e de repente ouço alguém dizer assim: "if you will die in a corner, please do it silently [se vais morrer num canto por favor fá-lo em silêncio]". E isso para mim foi um "bem-vindo à selva urbana".
Tinhas de sobreviver. Como fizeste?
Ao início eu queria alugar um quarto, mas não tinha dinheiro suficiente para fazer um depósito. Tive de arranjar um emprego, e enquanto estava a poupar dinheiro para alugar um quarto dormi no escritório desse emprego. Dormia debaixo das escadas, com a minha mala.
E esse emprego era em quê?
Era vendedor de bilhetes de paintball na rua.
E deixavam-te dormir no escritório?
Deixavam... Não sabiam. Ou se sabiam, era mais "vamos fingir que não sabemos". Mas eu acho que eles não sabiam, porque o que acontecia é que eu metia o despertador meia-hora mais cedo, saía, levava as malas, guardava-as noutro sítio. Ia ao café, aparecia, e o gajo que estava no escritório dizia "bom dia".
E quanto tempo foi nessa vida?
Foram para aí três semanas assim. E nesse processo todo eu tinha de andar com as malas para todo o lado. Eu ia fazer open mics [eventos de comédia abertos à participação de amadores] em pubs à volta de Londres. Era na parte de baixo dos bares, e aquilo tem sempre uma escadaria muito estreita de madeira, lembro-me de ouvir o som de trazer a mala: "toc, toc, toc". Eu ia fazer o espetáculo, levava a mala. Tudo o que eu tinha no mundo estava naquela mala. E eu ia de um lado para o outro.
Até que conseguiste arranjar um quarto?
Consegui arranjar um quarto, e comecei a ter uma vida um pouco mais normal, mas nunca é [normal], porque o trabalho não é a prioridade, não era... era uma forma de alimentar o sonho do stand-up. Tudo o que eu fazia era de forma a poder fazer stand-up. Ou seja, as condições às vezes não eram ideais, o pagamento às vezes não era o ideal, mas eu não estava lá para isso.
Foste tendo empregos de dia enquanto a coisa não desenvolvia no stand-up?
Empregos diferentes. Fui despedido da maioria... Os meus patrões queriam alguém que estivesse dedicado ao trabalho, e sabiam que o stand-up e a comédia iam ficar sempre à frente. E eu passava muito tempo fora. Mas eu acho que também é um bocado irrealista, de um gajo que dá um trabalho a alguém num pub e diz "eu quero que estejas comprometido com isto", "Se isto não é a tua vida sai daqui". Ok... Tens aqueles patrões que são pessoas pequeninas, que têm o seu pequeno reino de poder, e levam aquilo quase como uma ditadura... levam aquilo muito mais a sério do que é.
Começaste logo a atuar muitas vezes de início? Como é que foi?
Comecei, marquei logo alguns mics. Não tanto como comecei a fazer mais tarde, porque ainda me estava a habituar, e estava a tentar encontrar noites que eu gostasse, e que me deixassem aparecer. Havia muitas noites que são "bringers", para atuares tens de levar alguém. Mas eu estava sozinho em Londres, eu não conhecia ninguém. Não podia atuar nessas noites. Então, atuava nas piores noites que possas imaginar, depois comecei a fazer amigos.
As piores noites são a atuar para outros quatro ou cinco comediantes?
Acho que houve uma vez em que atuei para ninguém. Acho que não estava ninguém na sala. Atuei na mesma, já que tinha apanhado o metro... Já cheguei a atuar para uma pessoa.
Correu bem?
Acho que essa única pessoa gostou. Eu nem consigo imaginar a pressão que essa pessoa tinha para rir. E quando tu não tens essa mentalidade às vezes é difícil compreender. Estás à espera de olhar para outras pessoas à procura de reação, mas não há.
E depois? Fala-me desse desenvolvimento.
Basicamente tens uma escada. Começas nessa open mics e bringers, e nessas noites há sempre um gajo que faz 10 minutos no final da primeira parte e 10 minutos no final da segunda parte. O passo seguinte é fazeres esses spots.
Esses já são pagos?
Não... Estamos muito longe disso. Mas começas a fazer esses spots, à medida que vais fazendo mais, começas a diminuir no número de open mics. O passo seguinte são os trials [testes]em clubes maiores. E os trials também são um processo que demora, não é só uma vez. Ou seja, começas a fazer as "new act, new material night", 10 minutos... Mas depois, mesmo que um clube goste de ti diz "ok, agora vamos voltar a olhar para ti daqui a quatro meses"... E tu tens de te manter quente. Voltas para os mics, sempre a fazer mics... E acho que isso nunca muda. Apesar de haver essa escada, ainda há muito pessoal grande que aparece para testar o material
Já consegues viver só da comédia?
Não sei se viver é a palavra certa... sobreviver, talvez. Já não tenho um emprego de dia, porque mais uma vez fui despedido. É muito difícil ser estável, e eu não estou numa fase da minha carreira em que possa ser estável. Ou seja, tenho meses bons em que não preciso de fazer mais nada, tenho outros meses em que preciso. E é difícil de gerir...
Mas já tiveste semanas e temporadas em que até atuaste em muitos países.
Sim, atuei em muitos países, mas... Londres é muito caro para se viver. Ou seja, o que eu estava a receber se calhar dava para viver da comédia se eu estivesse noutra realidade, noutro país, mas não em Londres. Em Londres só de renda pago uma fortuna.
Falavas dos patamares: primeiro os open mic, depois as atuações de abertura ou fecho, depois os testes.
Depois de começares a fazer os trials... Basicamente há um clube, o Backyard Comedy Club , que é um dos melhores clubes... Tive o meu primeiro trial lá, de 10 minutos, há cerca de dois anos. Eles testaram-me cinco vezes em quintas-feiras, durante um período de um ano e meio. Depois perguntaram-me se eu queria vir numa sexta, para me verem 10 minutos numa sexta-feira. Mais público, público pago. Eles querem ver a qualidade da tua comédia. Numa quinta-feira é uma noite considerada mais barata, ou até mesmo de borla. Depois de eu fazer a primeira sexta-feira, disseram "gostamos, mas agora queremos voltar a ver-te noutra sexta-feira". Três meses depois fui lá para fazer outra sexta-feira, e a partir daí é que eles disseram "ok, agora vamos-te dar 10 minutos pagos num sábado". Isto é tudo no processo de mais ou menos dois anos. Basicamente o melhor que tu podes ser, na minha opinião, é "weekend twenties". São 20 minutos, ao fim de semana, sexta e sábado, é o melhor. E obviamente, ser headliner, mas já não tens muitos headliners de circuito. Porque tens o pessoal maior, muitos moram em Londres, e estão sempre à procura de sítios para testar material, e eles acabam por ser ou cabeças de cartaz... Muitas vezes em comedy clubs, eles não precisam de ter headliner, porque vão ter um convidado especial da TV. E isso acaba por funcionar... E tu vês, mesmo os gajos que estão a fazer arenas, a O2 ou o Apollo, apareciam nos clubes em que eu estava a trabalhar para testar material.

Comediante André de Freitas entrevistado na TSF - Novembro 2019
© Orlando Almeida/Global Imagens
Já te aconteceu aparecer uma grande estrela?
Já, algumas. Uma das vezes em que estava a trabalhar num clube, o Top Secret , era para fazer um spot, e o dono ligou-me umas horas antes e disse: "olha, temos aqui duas pessoas grandes que querem vir. Ainda quero que venhas a palco, mas agora vais ser MC [o anfitrião de cada espetáculo é desgnado "Mestre de Cerimónias"]". Acabei por ser MC nessa noite porque apareceu o Jack Whitehall e o Russell Howard. Os dois na mesma noite.
Qual é o objetivo de médio prazo? É fazer uma hora?
Sim, tenho estado a trabalhar para isso. Obviamente o processo para construir uma hora demora muitos anos. Só para aí há seis meses é que achei que estou num ponto em que tenho vinte minutos de clube fortes. [Em Londres] tens muitas competições, show case, que são cinco minutos. E pessoal que são "máquinas"... Chega lá, "pah, pah, pah", ritmo, tudo... E a verdade é que num sítio como Inglaterra não basta ter talento, porque toda a gente tem talento, toda a gente... Depois tu tens pessoal de todos os países, pessoal que acha que é engraçado, e vão para Londres. Ou seja, tu vês estilos muito diferentes, mas pessoal muito talentoso.
Essa diversidade é boa para a comédia?
Sem dúvida, eu acho que é excelente... Mas põe-te um bocado o ego em cheque. Porque tu pensas que és grande "gingão", e chegas lá e vês que não é, que tens de trabalhar tanto ou mais do que os outros, para conseguires esse edge. E isso é só fazendo. Fazer, fazer, fazer. Ou seja, mesmo hoje em dia em que eu já estou a fazer os clubes, já sou regular nos fins de semana de alguns dos clubes grandes, ainda faço mics todas as semanas.
Mas achas que tens 20 minutos sólidos, estás a trabalhar para a hora...
Quando estás a trabalhar para uma hora, é um processo completamente diferente de quando estás a trabalhar para 20 minutos para um clube. Em 20 minutos para um clube, eles não querem saber da tua história, eles não estão lá por ti. O público está lá porque foi ver o clube. Esse é o objetivo: fazer uma hora. Mas eu quero fazer uma hora em que daqui a cinco anos eu posso olhar para trás e sentir-me orgulhoso dessa hora. E eu não tenho pressa para me estrear.
Como é que tu descreverias o público em Inglaterra em comparação com o português?
Depende da cidade, primeiro. Em Londres não tens um público inglês, tens um público em que estão dez nacionalidades, pessoal que está a viver em Londres. O que é um desafio, porque o teu material tem de chegar a doze pessoas que cresceram de maneiras completamente diferentes, culturas diferentes. E depois tens o público inglês, que é mais... Depende, tens cidades muito fixes como Manchester, Birmingham tem boas cenas de comédia. Mas quando sais da cidade não muda. Tens pessoal que ainda vive numa Inglaterra de há 40 anos, que ainda não tem noção do que são emigrantes... E aí a minha comédia não resulta tão bem, porque a minha experiência é de ser emigrante. É de estar lá fora, de comunicar com outras culturas... E eles não têm isso, o que não funciona bem. Comparativamente a Portugal, acho que nisso é semelhante. Eu ainda não tive a experiência de fazer a estrada pelo país, mas imagino que haja certas cidades em que o público ainda não esteja tão habituado. E o próprio material que tu fazes para um público desses vai ser um material diferente.
O público cá é mais desconfiado? Menos? É igual?
Acho que o público é igual. No sentido em que: se uma coisa é engraçada, é engraçada. Se é engraçado em Inglaterra, é engraçado em Portugal, e as pessoas reagem da mesma forma. O que eu às vezes ainda vejo em Portugal é que certas premissas, certos materiais ou certos temas que os comediantes trabalham que se calhar não teriam uma resposta tão forte em Inglaterra, porque já foram trabalhados há mais tempo. Ou já houve mais pessoas a trabalhar esse tema. E o público já sabe isso. O público tem noção quando vais para um espetáculo com uma premissa mais "cansada". Mas eu acho que o público em Portugal também está a crescer imenso, eu de ano para ano, vejo cada vez mais sítios, mais jovens comediantes a começar, o que é excelente.
Mas continua a haver um problema de mercado: há mais e mais sítios, mas do patamar mais baixo. São open mics, ou mal pagos, e portanto, não existem os patamares que descreves.
Sim, mas a verdade é que os patamares que eu descrevi também não são pagos. O primeiro dinheiro que eu recebi em Inglaterra está emoldurado no meu quarto. Receberes para contar piadas, é uma cena... Ou seja, o facto de haver menos, quer dizer que os comediantes também têm uma oportunidade para valorizar o seu trabalho. Sentes-te muito mais entusiasmado em conseguir, mesmo que não seja muito dinheiro, vais fazer uma noite e alguém, te dá 20 euros: "deram-me dinheiro para fazer isto". Ou seja, tem esse lado bom de Portugal, que eu acho que é muito porreiro. E o que eu estou a aprender agora é que se calhar falta em Portugal um meio entre o pessoal muito grande, e o pessoal a começar. E eu gostava de ajudar a criar uma estrutura baseada no mérito, que é o que gosto em Inglaterra: é uma meritocracia. Se vais a palco e tens as gargalhadas, tens o reconhecimento.
Não é preciso seres amigo deste ou daquele comediante...
O mundo é demasiado grande em Inglaterra para haver monopólios. Cada pessoa tem os promotores com quem se dá melhor, mas não é tanto isso. E eu acho que era muito porreiro haver essa escada para o pessoal mais novo. E mesmo para o público! Para não ser "ou vamos ver um open mic, ou vamos ver alguém ao Coliseu". "Vamos a uma noite de comédia", e podem descobrir alguém novo.
Essa variedade também existe no palco. Há comediantes de todo o lado. Veres pessoas de culturas completamente diferentes ajuda-te a crescer enquanto comediante?
Sem dúvida! A comédia é isso mesmo, tu descobres estilos novos. Mesmo nas estruturas clássicas da comédia, tu vês pessoas a virar isso ao contrário. Isso vem dessas culturas todas, o que é excelente.
Notas que no meio londrino, por ser mais desenvolvido, o próprio conteúdo da comédia também é mais desenvolvido?
Eu acho que há essas oportunidades. Se tu quiseres ir trabalhar material, o palco está lá. Numa segunda-feira há duas semana, fiz três gigs numa noite, já houve vezes em que fiz quatro. Isto não acontece todos os dias, mas há esse espaço, se fores à procura disso.
São textos em que falas de rendas e de comentários em pornografia. Lembras-te do processo de escrita destas piadas?
Lembro-me. Essa piada das rendas, e a parte do "te amo", no final, a minha namorada era inglesa e num momento em que tentava ser sweet [querida], diz isso... achei que isso tinha piada. Fui escrevendo, e até chegar à forma final, como piada, demorou... A escolha das palavras não estava bem, sabia que podia cortar "gordura". A partir daí começas a olhar para os ritmos. Às vezes pensas que a piada está acabada, mas um dia vês que não. Ou o público ri-se numa altura em que tu não estás à espera, e tu acabas a piada e eles voltam a rir, e tu dizes "há aqui qualquer coisa".
E quanto à dos comentários em pornografia?
Lembro-me. Quando estava a ver porno, vi um gajo a comentar, e achei (risos)... Também passou por bastantes fases. A primeira, a inicial, sempre funcionou, mas funcionava tão bem que eu queria adicionar mais comentários. Então, fui procurar uma série de comentários e comecei a ir para o palco. Todos os dias, ou dia sim/dia não, levava a mesma piada com dois comentários diferentes, comentários verdadeiros. A piada não tem nada a ver com sexo. É sobre estas pessoas serem tão mesquinhas. Têm tempo e cabeça suficiente, para depois de terem acabado de fazer o que iam fazer, puxarem as calças para cima, limparem-se e dizerem "vou preencher este formulário, criar uma conta, receber uma verificação de email, e agora sim, posso finalmente dizer às outras pessoas que a conta está errada".
Como são os open mics em Londres? São parecidos com os portugueses?
Qualquer pessoa quando começa é semelhante, está à procura de uma reação. Essa reação pode derivar de coisas diferentes: pode ser através do choque. E acho que nisso são completamente semelhantes. Mas até pelo número de pessoas, às vezes acabas por ver coisas mais elaboradas lá, do que vês cá. Coisas fora da caixa. Mas a verdade é que stand-up comedy é como aprender guitarra em frente ao público. Toda a gente que toca guitarra, toca durante três anos no quarto, sem ninguém ouvir. E depois vai, sai cá para fora e já é bom. No stand-up comedy tens de aprender a tocar, e falhar aquelas cordas com um público à frente. E isso não interessa se és português, se és americano, se és inglês... toda a gente vai falhar.
Como é que olhas para este mercado português que é meio bipolar, sem níveis intermédios?
Como eu estou a voltar a Portugal, estou a tentar aprender. Eu quero saber melhor como é que as coisas funcionam. E quando eu olho para estas coisas penso "ok, há aqui um espaço em que podemos melhorar". Mas temos de melhorar como circuito, não é o trabalho de uma pessoa, não é o trabalho de um dos grandes, nem de um dos pequenos. Nós temos que nos juntar como humoristas, criar noites, mas fazer por deixar de haver aquele "ego" em ir atuar aqui ou ali. Nós somos todos iguais, somos todos stand-ups a tentar trabalhar o material, a tentar melhorar, e não pode haver uma cultura de vergonha por irmos atuar a certos sítios.
Raramente se vê nomes conceituados a experimentarem texto novo num bar.
Toda a gente tem maneiras diferentes de trabalhar. Eu sempre fui muito purista em relação ao stand-up, agora estou a tentar ser mais flexível, entender que todos têm processos diferentes, e o que funciona para uma pessoa pode não funcionar para outra. Mas em termos do que está disponível, isso não devia ser um problema. Toda a gente se devia sentir confortável. Pelo que me dizem, o que acontece aqui em Portugal é que como as audiências e o público são tão pequenos, há um certo medo dos humoristas maiores "queimarem" bilhetes que possam vender depois. E isso é uma razão válida, e eu aceito. Portugal inteiro tem dez milhões de pessoas, Londres tem 11 milhões. É impossível tu comprares estes dois circuitos porque nunca vão ser iguais.
Em Londres só por grande azar repetes público.
Sim... E depois acho que há um certo entendimento do público, o que é muito importante. O público tem uma cultura de stand-up, se eles forem ver um nome grande a trabalhar material, isso não quer dizer que eles não vão comprar o bilhete para ver essa pessoa mais tarde. Eles sabem que ele está ali a trabalhar, para chegar ao ponto... Às vezes há pessoas que gostam de ver o processo, quando o comediante está no início, a tentar perceber as coisas, e depois ver o projeto final. Na vertente portuguesa, não quer dizer que o público tenha de sair todo queimado, se calhar há um trabalho que podemos fazer para criar esse meio, de uma forma em que esteja toda a gente satisfeita, e que haja uma "escada".
Quem quer fazer stand-up no Reino Unido não tem de trabalhar para as redes sociais. Em Portugal é ao contrário, é quase inevitável os comediantes terem que criar algum conteúdo para atrair público. Sentes que é uma liberdade não teres de fazer isto?
Não sinto que seja uma liberdade, porque sinto muita pressão para fazer isso. As redes sociais estão a subir em todo o lado, mesmo nesses circuitos vês gajos como o Mo Gilligan ou o Bo Burnham, muitos populares nas redes sociais, e estão a trabalhar para as redes. Não quer dizer que possas descurar esse trabalho de stand-up. Para responder à pergunta: do outro lado também me sinto livre. O que eu sempre quis ser foi um bom comediante de palco. Quero que as pessoas vão ver-me, e digam que valeu a pena gastarem o dinheiro. É uma liberdade porque é como eu estou confortável como artista. E isso não é igual para toda a gente.
Mas por outro lado, para quem está focado no stand-up, pode ser uma perda de foco.
Sem dúvida. Quando eu falo com pessoal que trabalha nas redes sociais, aquilo é mesmo trabalho! O tempo que eles demoram a criar conteúdos, vídeos, editar, filmar e colocar lá, é uma coisa que demora muito tempo, e é uma skill que se tem. Eu não tenho, mas também não é algo que me interesse particularmente. Fazer coisas ao vivo tem mais interesse para mim, pessoalmente.
No Reino Unido o politicamente correto está tão agressivo como se diz que está?
Está e não está... Já não há espaço para piadas fáceis, punchlines [parte final da piada] que sejam fáceis de agarrar. Não há espaço para isso... estereótipos e coisas assim, acabaram. E o que estás a ver é um politicamente correto agressivo, mas também muitos comediantes da velha guarda estão insatisfeitos com esse politicamente correto porque não conseguem escrever na "exigência" de hoje. Os standards de hoje em termos de escrita estão muito altos. Se quiseres falar sobre um assunto, tens de ser muito inteligente na forma de o abordar. E há muitas pessoas que estão a confundir o politicamente correto com escrita fraca.
Às vezes a discussão do politicamente correto é contaminada por má comédia.
Às vezes a escrita é fraca. Gajos de humor negro, que são excelentes... Anthony Jeselnik, para mim o melhor escritor de piadas a trabalhar. Bill Burr... Ou seja, há espaço para fazer essas coisas, desde que sejam bem feitas. Fazer bem feito quer dizer que tens de ser mais inteligente na escrita. Mas ao mesmo tempo nós vivemos com uma audiência, mais nova, que às vezes é muito woke [termo dado ao público que critica, por vezes de forma muito dura, textos de stand-up que possam ser ofensivos]. E às vezes isso é de mais. Estamos numa altura em que o pêndulo está demasiado de um lado, e agora tem de ir para outro lado. Esta cultura é de estares comigo ou contra mim... as coisas não são a preto ou branco. Primeiro, temos de nos concentrar na escrita. E depois, se a escrita estiver lá, tu também vais querer ser melhor do que isso. E se o público te conhecer e souber que as coisas não vêm da maldade, as pessoas entendem. Posto isto, também te digo que em Manchester, baniram palmas e agora são só "mãos de jazz", porque estavam com medo de ferir a sensibilidade dos mais ansiosos. Mas eles já não podem ouvir palmas?
Como assim? Proíbem o público de bater palmas?
Nas sessões em Manchester, numa universidade, já não há palmas quando o público acaba de falar. Estamos a falar no geral, e não em comédia. Há mãozinhas a fazer "adeus" porque têm medo de ferir as sensibilidades, porque há pessoas que podem ficar ansiosas com palmas. E agora como lidas com os estudantes cegos? Ou seja, a tapar um buraco, vais sempre abrir outro.
Pedi-te para escolheres um bit de um comediante que admires, e tu escolheste o Bill Burr.
Porque é que escolheste o Bill Burr?
O Bill Burr é um comediante tecnicamente perfeito. E esse bit está perfeito. É muito difícil fazer o que ele faz ali. Ele trabalha o material de uma maneira tão boa... realmente há razões. Ele não começa de uma maneira para te tentar convencer. Os comediantes tentam sempre começar ou neutros ou positivos. O gajo quebra isso completamente: começa pelo negativo, diz "eu acho que há razões para bater nas mulheres". E o gajo só diz isso... Ele pôs-se em -10. E agora tem de ganhar tudo outra vez. E a maneira como ele faz isso tecnicamente... Depois de três piadas há um silencio, ele está confortável. E depois volta! E mais uma vez dá a volta ao assunto de uma maneira. E ele ainda faz os clubes.
Já falaste de Bill Burr e do Jeselnik. Há outros comediantes de quem gostas particularmente?
Há várias pessoas de que eu gosto, e até que têm um processo diferente do meu. O Rui Sinel de Cordes, que é um gajo com quem me dou bem, nós temos uma relação bastante próxima de amigos e colegas. Passámos muito tempo juntos quando ele foi para Londres. Mas temos processos completamente diferentes. E eu acho que isso é uma coisa muito interessante. Nós falamos muito sobre isso. Por exemplo, nos espetáculos que eu vou fazer agora em Portugal, vamos fazer uma coisa nova que é: ele vai dirigir os meus espetáculos, vai ser o meu diretor de stand-up. É talvez a primeira vez que isso acontece em Portugal, mas é uma coisa muito normal lá fora. O meu tipo de humor não vai mudar... eu não sou um humorista de humor negro como ele, e não sou o tipo de contador de histórias que ele é. O meu estilo é diferente, mas acho que em certos aspetos, em termos de espetáculo, ele é muito forte. E esse é o tipo de pessoas que eu quero a trabalhar comigo. Eu não quero pessoas que sejam iguais a mim. Eu quero pessoas que tragam pontos de vista diferentes. O Rui Sinel de Cordes é um gajo que eu respeito, até pelo caminho que ele fez. Eu falo das dificuldades que tive, mas ele teve imensas aqui em Portugal... acho que nós também nos acabámos por juntar um pouco pelas dificuldades que passamos.
Escreveste uma série que está a ser avaliada. Fala-me disso.
Eu não posso falar muito sobre isso, mas escrevi uma série, que estou a tentar vender em Inglaterra. É sobre um emigrante português que vai para Inglaterra, e começa a trabalhar numa profissão um pouco estranha. Muita comédia vem daí... A ideia é mudar a ideia de como as pessoas veem trabalhadores de sexo, porque a personagem é um acompanhante. E por outro lado, mostrar em Inglaterra qual é a experiência de um europeu em Londres. Quartos sem janelas, casas convertidas sem sala de estar. Aquela experiência em que dizes à tua família que está tudo bem, mas sabes que é difícil. É um pouco esse mundo que queria criar, e estou agora a tentar vender a empresas de produção. Estou muito entusiasmado, nunca pensei na minha vida que ia escrever um guião. Estou a trabalhar nisto há um ano e meio, já tivemos dezasseis rascunhos, e estou muito satisfeito. Já tive algum feedback positivo, recebemos uma mensagem da BBC, em que nos disseram que gostavam muito das personagens e do universo, daquilo que criámos, e que é algo relevante para os dias que correm. É uma voz que eu acho que ainda não foi ouvida. As pessoas têm a ideia do emigrante que pode ser um indiano, um paquistanês ou um gajo que vai trabalhar para as obras, enquanto que esse mundo é muito mais complicado do que isso. Tens pessoas extremamente inteligentes que são emigrantes, mas também estão a passar por este universo, e é um pouco isso que eu gostava de explicar.
Vês-te a fazer um especial? Um dia ligamos a Netflix e vemos "André de Freitas". Isto vai acontecer?
Sim, vai acontecer um dia. Eu acho que se continuar a trabalhar, a atuar e continuar no caminho que estou a fazer, essas oportunidades vão chegar na altura certa. Quando eu comecei a arrastar a minha mala em pubs para duas pessoas, eu nunca pensei que ia estar na TSF a falar sobre as mecânicas do humor. Isto para mim já é uma vitória. E eu acho que para qualquer pessoa continua a existir a ideia das "10 mil horas". Fazes 10 mil horas de qualquer coisa e vais ser bom. E quando for a altura... Mas sim, um projeto na Netflix vai acontecer.

Comediante André de Freitas entrevistado na TSF - Novembro 2019
© Orlando Almeida/Global Imagens
E vai ser um ponto alto. Agora, tu, como todos os comediantes, também já tiveste pontos baixos. Queres contar alguma atuação para esquecer?
Quando eu estava a falar desse espetáculo, com uma pessoa a ver, ele não estava propriamente a rebolar a rir, ou quando acabei por fazer um open mic para quatro bêbados ingleses que estavam a ouvir um português falar sobre a sua experiência de emigrante, também não foi agradável. Mas isto também enaltece um pouco a dificuldade em Inglaterra... O primeiro gig que eu fiz que foi o King Gong em Londres. É um formato muito especial e muito temido por todos os comediantes. Há cerca de 30 a 35 comediantes que vão, e tentam aguentar cinco minutos no palco. O MC dá três cartões vermelhos a três membros da audiência, que vão sempre rodando, e quando os três quartos vermelhos forem mostrados, o MC dá uma "patada" no gong e ouves "bumm". É a cena mais humilhante...
E tens de sair imediatamente.
Sim! Eu já vi um gajo que estava a subir as escadas, nem chegou ao microfone e levou os três cartões! Não gostaram da cara dele.
Aguentaste um minuto e meio?
Um minuto e meio! Eu ia todo gingão, com a mania que já era comediante... passado uns anos fiz em Manchester e já consegui passar, ainda por cima no norte de Inglaterra.
Porque é que gostas de fazer as pessoas rir?
Porque não sei fazer mais nada. Eu não sou bom noutras coisas, não consigo manter empregos e acho que... quem é que não quer estar ao pé de alguém que está a rir? Nunca ninguém se queixou de estar ao pé de um gajo engraçado. Nunca ninguém disse "epá, aquele gajo está sempre a fazer as pessoas rir, que merdas". Mas a resposta curta é: eu não sei fazer mais nada. A prova disso, que eu quero que todas as pessoas vão ver, é que no próximo ano vou estar a fazer datas europeias, e vou estar em Portugal com muito muito prazer. As datas ainda não foram lançadas, mas o espetáculo vai ser dirigido pelo Rui Sinel de Cordes. Se estão interessados em assistir, podem seguir-me no Instagram em @andecomedy . Espero ver-vos lá... para eu não ter que passar fome.