Salvador Martinha: "Vim para o humor para fugir do que agora procuro"

Salvador descreve opção pelo humor como fuga a "medos que persistem" mas que agora procura, fala na "paixão" do podcast Ar Livre, na "pré-escrita" do próximo espetáculo, e destaca dois comediantes portugueses.

No final do Cabeça Ausente (que terminou em março, depois de seis meses com 46 espetáculos em 32 cidades) dizias qualquer coisa como isto: "É altura de por o capuz e desaparecer." Porquê essa necessidade de afastamento depois de cada digressão?

Por dois motivos principais. O primeiro é o cansaço. Há um grande desgaste, sobretudo psicológico de estar numa tour. São muitas datas a ter que corresponder àquelas expectativas. Expectativas que podem ser imaginadas na minha cabeça, mas que moem muito. Se um dia correu bem, no outro queres ser melhor. Depois quando corre mal... Há uma constante avaliação que é muito desgastante. Quando acaba uma tour para mim é uma libertação enorme.

E segundo, tem um bocado a ver com a minha forma de estar na comédia. Quando eu terminei com esse raciocínio, "a pessoa faz o seu trabalho, põe um capuz e desaparece na multidão", foi uma imagem que eu vi (o espetáculo foi gravado, depois as pessoas podem ver, para quem não está a perceber). Mas tem a ver com a forma de como eu me sinto melhor nesta profissão. É fazer, é criar, e depois não me interessa muito o outro lado. Ou seja, o lado mediático... Todo o outro lado do processo criativo e de execução, não me interessam muito, e acho que é algo acessório. Há pessoas que podem tê-lo, e eu sinto-me melhor em não tê-lo. Sinto-me bem em falar e aparecer só quando, realmente, tenho alguma coisa que acho que possa acrescentar. Não tendo, volto ao meu papel de pessoa vulgar. Sempre que uma pessoa faz um espetáculo suspendo esse meu papel de pessoa vulgar, que é o que eu sou. Mas tu não queres pagar bilhete para ver uma pessoa vulgar, não é? Queres acreditar que aquela pessoa te vai dar alguma coisa. Eu suspendo durante uns quatro meses, e depois volto à minha cena que é ser uma pessoa vulgar, e é isso que me faz sentir bem.

Dizias há pouco que o espetáculo foi gravado e que vai aparecer em algum lado. Queres dizer que lado é esse, ou pelo menos, quando é que vai poder ser visto?

O "lado" já está a 90%, mas não quero dizer porque imagina que não é, e depois já estou aqui a associar-me a uma plataforma ou a um canal - agora para confundir. Mas sim, já está em marcha, está editado. Há uma pré-compra do espetáculo, agora é uma questão de burocracias.

Serão meses?

Meses, meses. Há-de ser meses.

Explicaste que voltas à tua condição de "pessoa normal" sempre que terminas uma digressão. Já estás a pensar no próximo, e em deixar de ser novamente uma "pessoa normal"?

Sim, já estou a pensar no próximo.

Mas já estás a escrever?

Estou a pré-escrever! Ou seja, já estou a começar a criar a estrutura na minha cabeça, já tenho o conceito, que é o mais importante.

Já tens um nome?

Já tenho um nome, mas não quero dizer qual é. O espetáculo pode ser conceptual ou não, ou seja, pode ser um espetáculo clássico de stand-up, que é amealhares o teu melhor material, e depois está ali. Este vai ser um bocado mais conceptual.

Ainda me mantenho na vulgaridade, mas a minha cabeça já está inquieta. Por isso é que estamos aqui outra vez. Já era para ter estado cá mais cedo, contigo, e pedi-te para ser mais para a frente porque ainda estava a assimilar. Ou seja, fiz o espetáculo e tinha de perceber o que é que aconteceu. Agora já estou disponível para partir para outra.

Terminaste o "Cabeça Ausente" há seis meses. Olhando com esta distância, estás totalmente feliz com o espetáculo, ou havia alguma coisa que terias feito de forma diferente?

Eu sou sempre muito crítico. Ou seja, é difícil alguém destruir o espetáculo mais do que eu. O que não é bom, preferia que fosse ao contrário. Preferia ter mais autoestima, porque não seria tão angustiado. De um modo geral, fiquei contente com o espetáculo. Foi um espetáculo honesto, verdadeiro, que é isso que eu tento trazer na minha comédia. O meu esforço é sempre tentar ser verdadeiro. O que não é fácil...

Agora, há coisas em que eu já sou crítico em relação ao espetáculo. Sobretudo, acho que era um espetáculo difícil de fazer. Vou-te explicar porquê: às vezes entrava numas energias densas, que se eu fizesse um bocadinho ao lado, o espetáculo ganhava zonas mais tristes do que aquilo que eu queria. Não para mim, mas sentia que as pessoas ficavam tristes. E fica estranho quando a energia não é a mesma. Ou seja, quando eu estou na boa a dizer uma coisa, mas sentia que as pessoas ficavam tipo: "o que é que ele está a dizer?". Houve noites em que corria muito bem e a energia estava sempre articulada. Havia noites em que as pessoas iam-se um pouco abaixo. Era um espetáculo que muitas vezes eu não fazia como queria, e nem sempre consegui dominar o espetáculo, muitas vezes era irregular. Portanto, isso é o que eu penso muitas vezes. Como é que se chamam aqueles...São touros mecânicos. O espetáculo era um bocado isso. Houve vezes em que eu consegui controlar, mas nem todas as vezes o consegui fazer.

Para terminar este capítulo, ainda sobre o próximo espetáculo. Já pensaste a partir de que data vai estar na estrada?

Já, já. Eu acho que vou voltar em outubro de 2020.

Vamos falar do "Ar Livre". A impressão que dá é que tu és muito feliz a fazer aquilo. É um projeto de longo prazo?

Fiquei mesmo feliz de teres dito isso. É isso mesmo que se passa. Ou seja, eu durante muito tempo dizia: a coisa que mais gosto de fazer é stand-up. Ainda é, mas depois do " Ar Livre " houve pelo menos um empate. E eu sempre pensei que nunca ia fazer nada que empatasse com o stand-up. O stand-up é a zona em que eu consegui ser mais livre, consegui executar a expectativa que eu tenho para mim próprio em relação ao humor. Nunca consegui fazer isso tão bem noutras plataformas como no stand-up. E no "Ar Livre" consegui fazer isso e elevar um bocadinho a expectativa que tenho para mim próprio de tornar ainda o meu humor mais livre. E portanto, eu adoro fazer aquela merda, basicamente adoro. É mesmo uma paixão. Até hoje ainda não rentabilizei o "Ar Livre", porque eu acho que é também esse o segredo. O meu segredo. Não tem de ser uma fórmula de sucesso. É o segredo para eu gostar de fazer aquilo, porque não há corrupção de maneira nenhuma. Não tenho nenhum chefe. Faço, realmente, quando quero. Como não cobro às pessoas, não existe essa obrigatoriedade. Mas há uma obrigatoriedade para mim, porque aquilo realmente faz-me bem.

No podcast falas muitas vezes de forma séria, não há humor. Sentes que te faz falta comunicar fora da comédia?

Eu não sabia isso, eu descobri isso. Quando vou fazer aquele podcast, eu pensei que ia estar a discorrer durante uma hora, meia hora, e que seriam raciocínios humorísticos. Mas imagina, se eu falar contigo dez minutos, eu conheço uma parte de ti. Se eu falar contigo durante duas horas e meia, algumas das nossas defesas vão abaixo, e eu vou conhecer outra dimensão de ti e tu de mim. Só nesta conversa mais alargada vou revelar mais um bocadinho. E eu descobri isso no podcast. Ou seja, era eu que premeditava aquele tipo de comunicação? Não, aquilo tem mais a ver com a minha personalidade. A minha personalidade tem muitas zonas tristes, densas, de ansiedades, de medos... e isso ficou revelado ali. Foi só isso. Foi uma descoberta.

Por outro lado, já alguma vez te aconteceu falares de ideias no podcast que mais tarde se transformam em material que utilizas de stand-up?

Já. O "Cabeça Ausente"... estou a pensar se tem ou não, mas é possível que tenha um ou dois temas que eu tenha falado no "Ar Livre".

Se tivesses de escolher um dos teus projetos, qual escolherias? Eu presumo que a resposta seja stand-up, mas o "Ar livre" está ali quase...

Está taco-a-taco. É difícil... é o mesmo do que... estão dois filhos numa ravina, qual é que atiras? Não sei. Qualquer resposta é estúpida.

Vês muito stand-up? És um bom espetador? Há comediantes que não são bons espetadores.

Sou um espetador médio. Não sou daqueles gajos que vê tudo, mas também não sou o gajo que não vê nada. Portanto, vou estando informado, sei das coisas mais importantes. Não sou um consumidor obsessivo.

Mas cá em Portugal, em Lisboa, vais vendo espetáculos ao vivo?

Sim, sim. Disso eu gosto. No outro dia até estava a falar com um rapper, um rapper alemão que está cá em Portugal. E chegamos à conclusão que nós gostamos mais do rap do nosso país. Eu disse isto, e ele disse: "realmente eu também". Ou seja, ele gosta muito do hip-hop alemão, eu gosto do hip-hop português. Gostamos do hip-hop americano, mas se calhar tenho mais carinho pelo hip-hop português. Da mesma forma que se pode fazer isso com o humor, fazer esse paralelismo. Não sou aquele gajo que está sempre... Perguntam-te: "Uma referência?" e eu vou logo dizer "Steve". O "Steve Bill" - digo-te este nome porque não existe - marcou-me, lá de fora, mas tenho mais carinho pela comédia portuguesa.

Consegues desfrutar de comédia sem analisar o que estás a ver?

É difícil, mas quando vou ver espetáculos de amigos meus, rio. Não sou aquele gajo que não se ri, isso não vai acontecer nunca. Se fico envolvido, sou bom público. Portanto, consigo desfrutar. Depois faço uma análise. Logo a seguir vejo, "aqui, aqui e ali"... Estou a ver num minuto, não é? Mas consigo desfrutar.

Como é que olhas para o estado da arte da comédia em Portugal?

Estamos fortíssimos. Estamos no pico. Já houve altos e baixos, estamos num novo pico, eu diria que é o melhor de sempre. E acho que ainda vai haver outro pico, mais para a frente... Mas agora estamos a viver claramente um pico.

Pelo menos nos patamares mais baixos têm surgido muitos espaços onde nascem comediantes. E até com uma novidade no espaço de um ano, cerca de um ano, um espaço em inglês.

Eu sei, eu sei. Eu estou a par disso. E tenho curiosidade, por acaso, ainda não vi nenhum espetáculo em inglês e gostava.

É uma alteração muito grande. Mas isto tudo leva-nos para as escolhas que fizeste para trazer ao programa. Eu desafio sempre os convidados a escolher nomes de stand-up de quem gostem, e até agora toda a gente escolheu nomes internacionais, nomes históricos. Tu fizeste outra opção, queres dizer qual foi?

Eu escolhi dois amigos, dois comediantes portugueses de quem gosto. A primeira escolha é o Manuel Cardoso, que é um humorista que eu gosto bastante. Eu penso sempre naquilo que os humoristas me trazem, aquilo que eles me acrescentam. Ele traz-me sempre bons ângulos, o stand-up dele ou as crónicas dele, ele também escreve boas crónicas.

E está na equipa do Ricardo Araújo Pereira no "Gente que não sabe estar"

Exato, e muito bem escolhido. E ele traz-me sempre ângulos novos, ou seja, "eu não tinha pensado neste ângulo". É um rapaz extremamente politizado, o que é bom, não existe em muitos humoristas, com aquele estilo de humor. Portanto, ele está-se a destacar um bocado por aí. O seu stand-up não é tão político. Ele se calhar nas crónicas vai mais numa linha de Ricardo Araújo Pereira, tem crónicas mais sobre política, mas o stand-up não tem tanto essa componente. O que também revela alguma versatilidade dele.

És equipa texto ou equipa entrega? O que é que é mais importante?

Que gira pergunta. Mas sentes que existem essas equipas?

Às vezes.

Sim, sim. Se for daqueles jogos em que tenho de responder, eu vou-te dizer que sou da equipa entrega. Mas na realidade, eu ligo muito às duas. Sou o tipo de comediante, que se nota que sou mais da equipa entrega do que o texto, claramente. Até porque tem a ver com o meu processo de fazer os espetáculos. Tanto gosto de escrever o espetáculo no computador, mas também muito do meu material vem do improviso. Vem de eu ter um tema, de eu ter um ângulo. Arranco com um ângulo para uma noite quando há material, e é através de muitas coisas que me saem ali, que fica depois para o guião. Estás a perceber? Muitas vezes é o processo inverso. É uma coisa que se descobriu ali. Foi uma forma de fazer, da maneira como eu disse, que vai depois para o guião. E eu acho que as duas são muito ricas. Só escrever no computador, ou só fazer neste processo, é um bocado limitativo. É bom trabalhar com os dois.

Enquanto espetador, que tipo de comédia gostas mais de ver? Mais pessoal, mais de observação, humor negro? O que é que te faz rir mais?

Tenho uma frase que gosto de dizer, não sei se é marcante ou não, mas o que eu gosto mesmo é de humor transparente. Eu nem acredito muito em humor negro e humor leve. Eu acho que isso são rótulos e os rótulos são sempre limitativos. São redutores, e acho que nos atrasam, também a evoluir na forma como nós vemos o humor. É-me difícil ver uma pessoa que é de humor negro ou que não é de humor negro. Não acho que isso exista, acho que hoje as coisas são muito mais complexas. Quando eu vejo alguém analisar assim o humor, é um bocadinho com as novelas antigamente: o bom era bom, o mau era mau. Como é que estão as novelas hoje em dia e as séries? O bom nem é sempre bom, e o mau nem é sempre mau. É um pouco como está o humor.

Em relação à pergunta, é o humor transparente. Eu envolvo-me emocionalmente com o humorista. Para mim é importante. Eu não "vou" no humorista em que eu acho que ele não é nada assim, e está a fazer aquele humor. Esse humorista não me vai convencer. Eu preciso de saber quem é aquela pessoa. E preciso de comprar se o que ele está a dizer faz sentido e é verdadeiro. No humor há verdade e há mentira, às vezes pode haver um bit que é mentiroso, que não é bem assim. Estamos a dar uma opinião e não é bem assim, nós não somos aquilo. Estamos a dizer uma coisa e depois não bate a bota com a perdigota. Eu sou muito atento a isso. Portanto, eu gosto dos humoristas em que sinto que é assim, como eles estão a dizer. Seja o que for que eles digam. Sejam os mais errados, os mais sujos ou os mais leves. Por exemplo um humorista que faz um humor só porque sim, eu vejo muita beleza nisso. Humor só porque sim, não é "humor sem mensagem". Não é: "o humorista que faz humor de mensagem ou que fala de causas, é o melhor humorista". Nós muitas vezes estamos a entrar um bocadinho nisto, que é quase uma equação. Eu posso-te fazer aqui uma equação para ser um humorista Michelin. Há essa equação em cima da mesa. Se queres ser o melhor humorista do mundo, tens de falar de racismo, tens que ser errado aqui, o que torna para mim o humor premeditado.

Mas a equação pelo menos nos Estados Unidos está a mudar bastante, naquilo que o humorista supostamente deve ou não deve fazer.

Olha que não sei. Eu acho que está sempre a ser utilizado. Tu agora já sabes o que tens de fazer em 2019. E os últimos espetáculos vão um bocado nisso. Já estão formulários. Se vires um espetáculo do Bill Burr ou do Dave Chappelle [dois dos maiores nomes da comédia norte-americana], adoro os dois, são muito honestos, mas ao mesmo tempo há ali um lado fórmula. Não é? E tu vês o Chappelle e dizes "porra, este gajo é o maior". O que ele foi falar, a coragem dele. Então, a coragem já é um item da fórmula. Estás a perceber o que eu estou a dizer? E às vezes sinto mais falta de um humor que vem de "lado nenhum". Que não vem desses temas.

É o caso da tua segunda escolha

Em Portugal eu acho que é um humorista que eu me revejo nesse tipo de humor, que é um humorista muito honesto, que é o Pedro Durão. É um rapaz que eu gosto muito, faz stand-up, é guionista, é apresentador do Curto Circuito e também apresenta bem, tem jeito para a apresentação. Ele faz humor só porque sim. "De onde é que isto veio?" De lado nenhum. Existe aqui algum interesse em fazer aquele tipo de piada? Não. Aquela piada veio de que lugar? Ninguém sabe. E eu gosto disso, ou seja, fazer uma piada sem pensar no "lucro" que a piada te pode dar. E eu muitas vezes sinto que se premedita isso. Eu sei que lucro uma piada me pode ter, eu posso fazer um espetáculo só para ter lucro. E eu sou contra isso. Ou seja, isso faz-me sentir que o espetáculo não é honesto. Falando do Pedro Durão, eu acho que ele é honesto. Faz humor sem pensar no lucro.

No "Ar Livre", há uns meses, disseste isto: "A minha felicidade depende muito da minha independência intelectual. Podia ser mais popular, mas não ia ser feliz. Sou um comercial indie". Podemos chamar indie a um comediante que tem um especial na Netflix?

Pois, eu vivo nesse limbo. Ou seja, eu não sou indie, nem sou comercial. Imagina, se eu fosse americano, poderia ter condições para ser indie. Indie no sentido do quê? Não é do pseudo. Há vários estilos de pessoas, e eu rendo mais em zonas de conforto. Ou seja, quando há zonas que não são do meu conforto, não rendo tanto. Depois há humoristas que são tratores, que é tipo: é para estar na SIC ao domingo? Estão lá e partem tudo. Portanto, mérito a eles.

Já agora, convidaram-te para ir lá? À nova versão do Levanta-te e Ri.

Convidaram, convidaram. Mas não me sinto confortável, lá está. Porquê? Para começar eu já fui ao Levanta-te e Ri, em 2003. Acho uma loucura fazer em direto, acho de doidos. Só os portugueses é que fazem isto, somos malucos.

Eu sou muito preocupado com o meu material e com a forma como ele passa. Portanto, prefiro muito mais fazer um espetáculo e editá-lo, porque vais melhorar bastante o ritmo. Na própria edição está uma pequena farsa, não é? No outro dia apanhei um senhor na rua que me disse "epá, vi o teu espetáculo e tu estavas sempre a dar-lhe". E eu pensei "não, há várias partes em que eu me fui abaixo", só que na edição dás um ritmo diferente.

Porque é que eu não aceitei. Acho muito bem o Levanta-te e Ri existir, está tudo bem. Acho que vai fazer com que cresça uma nova geração. Eu fui dos primeiros, portanto não acho que tenho muito a ganhar em fazer parte do Levanta-te e Ri. E o meu caminho em stand-up está muito definido. Ou seja, eu já tenho o meu público, claro que dá sempre jeito mais público, mas eu já habituei as pessoas a ver-me daquela maneira. Já sabem que eu, uma vez por ano ou de dois em dois anos tenho um espetáculo, vou fazê-lo, vou gravá-lo e vou passá-lo cá para fora. Portanto, eu estar a ir a um programa a queimar dez minutos,~... eu já nem escrevo assim. Ou seja, eu estou dois anos a pensar num espetáculo, faço o espetáculo e depois filmo o espetáculo.

E também não fazia sentido ires lá experimentar...

Não fazia. Agora, se acho que podíamos ser mais relaxados? Se calhar podíamos. Portanto, aí dou razão à produção do Levanta-te e Ri que deve pensar isto. Por exemplo, um programa como o Levanta-te e Ri no Brasil ficaria melhor porque os brasileiros são mais relaxados. Um Fábio Porchat iria fazer como eu faço, e também lá iria dez minutos, porque eles estão-se a cagar. E nesse sentido, eles são mais saudáveis do que nós. Também podem ser mais trapalhões, mas são mais saudáveis de cabeça. Nós somos um bocadinho europeus neuróticos. E eu não deixo de o ser: e vou, e como é que é... E depois a luz do público está demasiado aberta. Por exemplo, só isso. A luz está completamente a estalar. O que é diferente da forma como eu faço espetáculos nos últimos dez anos. Isso é uma diferença. A própria energia, as próprias pessoas que estão lá não estão para me ver, vão para lá para ver o programa. As pessoas que vão ver os meus espetáculos estão familiarizadas com o meu humor. É isso que me interessa mais. Portanto, há uma série de questões. Mas acho muito bem o Levanta-te e Ri e acho que tem tido imenso sucesso.

É difícil encontrar esse ponto de equilíbrio entre ser suficientemente popular para poder ganhar a vida, mas ao mesmo tempo suficientemente genuíno e honesto para dormir descansado?

Eu penso sempre no meu conforto. Tenho 36 anos, já percebi como é que eu rendo. Eu rendo no meu conforto. Eu não gosto de estar desconfortável. E isso vai mudando, é flexível: às vezes estou confortável, outras estou desconfortável.

Um exemplo muito claro: quando surgiu o "Vale Tudo", eu fui sempre convidado para fazer. Para mim era impensável estar a fazer macacadas, estar a descer aquele cenário inclinado... Aquilo não tem nada a ver comigo, mas eu tinha lá dois amigos na altura, o César Mourão e o João Manzarra, que é dos meus melhores amigos. Passou um ano, passou dois, passou três, passados quatro anos eu senti-me confortável para lá ir. E fui. Ao quarto ano pensei: "porque não?". Ou seja, tem a ver com o que tu também fazes fora disso. O meu percurso independente foi ficando mais estabilizado, ou seja, tenho sempre esta base, o que me permite fazer assaltos ao mainstream. E é assim que eu me vejo no futuro: o meu percurso independente está a correr bem, eu posso viver só dele. Fiz por isso. Posso viver só do meu stand-up, o próprio "Ar Livre", não me trazendo rentabilidade direta, traz-me pessoas aos espetáculos. Faço stand-up para empresas, onde vou buscar alguns rendimentos. Portanto, eu posso viver da minha independência, e estou feliz com isso. À medida que esse conforto vai avançando, eu sei que volta e meia tenho de ir buscar o ouro ao mainstream. Porque eu sou português, não sou americano, e eu tenho outros objetivos para a minha vida. Por exemplo, eu gostava de ter uma casa. Não tenho uma casa, logo tenho de fazer por isso. É tão simples quanto isto, e faz parte da minha felicidade ter uma casa.

Desafio sempre os meus convidados a escolherem um bit deles próprios. O que escolheste?

É uma piada que eu fiz durante anos e anos, que era sobre as calças skinny, logo no momento em que saíram. Agora já está completamente datado. Só que eu depois já não podia ouvir aquela piada. Mas trouxe-me porque na altura era uma piada de guerra. O que é uma piada de guerra? Imagina, quando eu ia a uma empresa, também levava essa piada, porque resultava sempre. Um bocado pela entrega da piada, ou seja, a piada funciona mais pela entrega do que pelo próprio texto. Portanto, eu trago-te aqui uma piada que já não faz sentido. Já não tem piada, nem a vou voltar a dizer, porque eu mato as piadas e não as repito. Mas que na altura me acompanhou e era uma amiga... Ia fazer um espetáculo... "porra, tem de ser. Tenho de levar estas calças skinny".

Como é que se consegues manter o entusiasmo ao dizer piadas que já disseste centenas de vezes antes?

Não tenho muito jeito para me repetir. Acho que há comediantes que ganham com o esticar. Vão fazendo mais vezes e aquilo fica top. Eu acho que não tenho muito jeito para me repetir. Então o que é que eu acho que acontece: vais-te tornando mimado. Imagina que tu vais muitas vezes a um hotel, és um homem de negócios e estás sempre a dormir em hotéis. O que é vai acontecer? Vais-te tornando mimado. Tu já não podes ver hotéis à frente, então vais fazendo caprichos. Vais melhorando de hotel, "hoje quero trazer room service", "hoje quero um hotel com jacuzzi". Não deixa de ser um hotel, tu é que tens de arranjar desculpas para te divertires no hotel. Estás a perceber? E é o que eu faço. Antes de fazer o bit, lá estou eu "já vou para esta piada". Tenho de me mimar durante o espetáculo com uma coisa que me leve para algo diferente. Ou é uma interação, ou começo aquele bit de uma maneira diferente, e de repente eu estou a fazê-lo só para mim e para os meus operadores de luz e som. E só os três é que sabemos que eu estou a começar de maneira diferente, isso gera uma energia diferente. Tenho que ir criando armadilhas para aquilo se tornar diferente.

Nunca passas por momentos em que te fartas, em que te cansas da escrita e da comédia?

Muito, muito. Posso-te dizer, a seguir ao "cabeça ausente" fiquei muito em baixo. A palavra que eu dizia mais é "estou seco, estou seco". Os meus amigos diziam que eu estava sempre a dizer isso. Não sei explicar... Fico seco, porque eu estou a fazer e não estou a evoluir. Ou seja, o processo de evolução, é antes, na criação do espetáculo, montar a estrutura, fazer as coisas acontecerem. Depois há uma fase inicial em que estás a olear o espetáculo, e também estás a evoluir. E há uma altura em que deixas de evoluir. E passas a secar, porque eu estou a viver para fazer e nem tenho muito tempo para pensar. Imagina, se tu estás sempre a pensar, ou estás a ler livros ou a cultivar, estás sempre a crescer. Quando estás a trabalhar muito, tem a ver também com o speed, com uma vida mais acelerada, isso tira-me a alegria de viver. Eu fico muito cansado, e tenho de desaparecer. Vou-me um bocado abaixo, digo que não quero fazer comédia. Digo sempre, "se calhar vou fazer uma coisa diferente". Mas às vezes, passados três meses, vou ver um espetáculo de um humorista, e de repente ganhei uma "picazinha". Mas há sempre "seca".

Em que fase estás agora?

Agora estou na fase a ganhar pica outra vez. Ou seja, acontece sempre, eu próprio boicoto a minha fase nepalesa, de achar que sou um monge que estou no Tibete. De repente vem uma ideia... "Foda-se. Já está, já tenho uma ideia". Ou guardo o segredo para mim, ou vou partilhando com pessoas. As pessoas também me motivam, "epah, boa ideia". E @nesse ponto] já está em marcha e não consigo controlar.

Tens 36 anos, não és a mesma pessoa que em 2003 foi ao Levanta-te e Ri. Tens uma família, tens miúdos. De que forma é que a experiência de vida influencia a comédia?

Eu disse no outro dia no "Ar Livre", mas vou dizer também, porque aqui chegamos a um auditório maior. Se bem que muito público do "Ar Livre" se calhar ouve este podcast. Se calhar 70% até podem ser os mesmos. Mas eu vou-te dar um exemplo: quando eu tinha 22 anos, eu era muito ambicioso, colocava demasiada ambição nesta profissão. E eu pensava que se isto não me corresse bem, eu como solução punha a hipótese do suicídio. E isso aliviava-me.

Coincidência: hoje de manhã de caminho para o trabalho, vinha a ouvir esse episódio. É muito recente.

Sim, é recente, por isso é que está vivo no meu pensamento. Ou seja, eu punha essa hipótese quase para me aliviar. E em 2003, que não havia tantos exemplos de comédia como profissão. Havia três humoristas, era mais o Herman. "Epah, se isto falhar, não tem mal, não preciso de lidar com este sofrimento, eu mato-me". A brincar, mas... Ou seja, eu não tenho este ADN de pessoa que se vai suicidar, mas essa hipótese estava sempre fresca. A partir do momento em que tens uma família, essa hipótese desaparece. Porque não me cabe na cabeça isso. Ou seja, é impossível para mim essa opção. O que te acalma um bocado. Não sei explicar... Uma família acalma-me muito.

É possível que isto se atinja sem família. Agora, esta é a forma que eu conheço. O facto de ter uma família, de ter filhos, mudou aqui qualquer coisa. Mas nunca vou ser aquele gajo que vai mudar as suas opções por ter família. Porque quando era mais novo, eu era cínico em relação a isso: "lá está ele a dizer que está a fazer isto por causa dos filhos". Eu agora olho para mim, falo com esse Salvador dos 22 anos, e digo: "não penses que estás certo, puto. Estás só a ser cínico em relação a uma coisa que nem sequer sabes o que é. Ao mesmo tempo estou sempre em dois lados, como já reparaste, é um bocado esquizofrénico. Ao mesmo tempo que eu vejo que a minha vida não muda, ou seja, tu não me vais ver de repente na "Casa dos segredos" porque tenho dois filhos. É impossível isso acontecer. Porque eu também me resguardo muito em termos financeiros, para isso nunca acontecer.

O que muda é: se o espetáculo correr mal, não acaba tudo. Porque eu vou para casa e tenho uma coisa muito boa. E antigamente era tipo "nada", não há mais nada. E eu acho isso duro também de viver. Só há aquilo? Pões uma pressão muito exagerada, e eu acho que isso pode perverter um pouco o caminho. Se tu não tens mais nada para além daquilo, e o mais nada não precisa de ser uma família, pode ser um cão. Um cão de repente já é qualquer coisa. Isso pode corromper a tua forma de estar nas coisas, porque vais fazer coisas que se calhar não precisas, para que isso corra bem. Podes não olhar a meios para atingir esse fim. E eu não faço isso.

Para onde é que te vês a levar a tua comédia, a tua escrita? Uma vez disseste que à medida que vais esgotando os temas mais corriqueiros, vais sendo obrigado a escavar mais dentro de ti.

Isso é uma coisa que eu digo que vem através do George Carlin, ele é que dizia isso. Ele dizia que: primeiro fazes piadas de supermercados, piadas de aeroportos, fazes todas as piadas possíveis, fazes piadas de rádio. Quando acabar tudo, começas a ir para ti. Isso foi um bocado mindblowing para mim, quando eu ouvi isso, fez sentido. E bateu-me um bocado na altura do "Ar Livre". Portanto, é exatamente isso que ele está a dizer, é mesmo assim. Ou seja, passadas duas horas de estarmos a falar, já falamos dos temas corriqueiros, e vamos para os mais densos. Isso é que é interessante.

Isso significa temas pessoais ou maneiras pessoais de olhar para temas comuns a toda a gente? Ou as duas coisas?

As duas coisas. Isso não quer dizer que eu vá abandonar o humor de observação puro. Penso assim: "piadas de supermercado? Já foram feitas". Não, isso não faz sentido. Todos os comediantes que fizeram piadas sobre aeroportos nos anos 90, não tem nada a ver com os de 2019. Não havia terrorismo. Portanto, há toda uma série de circunstâncias que mudam. Uma piada de supermercado pode estar sempre atual. Para mim está sempre a valer esse tipo de humor. Mas também humor mais denso é uma coisa que me interessa... Ou nem sequer o humor, interessa-me a densidade. Com a transparência.

Neste programa desafio os convidados a relatarem uma atuação que tenha corrido mal. Tens algum caso destes que queiras relatar?

Tenho tenho. Estamos sempre a ter. Tanto quando era novo, como agora pode acontecer. Ou seja, nos meus espetáculos ao vivo é sempre difícil, até porque há sempre um mínimo olímpico que tu garantes. Até porque, a maior parte das pessoas que vão, há uma predisposição porque gostam de mim. Portanto, não vão para ali para me atirar tomates. Mas também há uma grande fatia que vai pela primeira vez, portanto isso pode acontecer. Mas vou-te dar dois exemplos, um atual e outro mais antigo. Houve um festival de comédia, em 2003, que era o Comedin, que foi para aí a minha sétima atuação, em que ninguém riu do princípio ao fim. E até tinha boas condições... Sabes um auditório que há alí na Avenida de Roma? O Fórum Lisboa. Estavam 200 pessoas, eu era para fazer 20 minutos, e fiz tipo seis minutos e 40. De bombing [falhanço] total. Portanto, foram 6 minutos e 40 de silêncio, sem nenhuma gargalhada. Tipo silêncio.

Como é que se lida com uma situação dessas? São circunstâncias especiais, hoje seria impensável alguém estar num festival à sétima atuação.

Sim, claro. Ainda por cima com comediantes internacionais. Eu acho que fui a seguir a um comediante que até veio ao Levanta-te e Ri, que era o Elliott. Que fazia humor físico, ainda por cima brilhantemente. Então partiu tudo e depois vai um gajo que não percebia nada daquela merda, fazer bombing de seis minutos e quarenta. Epah, adorava conhecer alguém que esteve nesse dia e se ele se lembra. Mas foi mesmo silêncio total, sabes? Foi engraçado, nesse sentido. Como é que lidas? É perceber. Eu não dei nenhum motivo para as pessoas se rirem. Portanto, as pessoas não riram porque em momento algum perceberam que era para rir, ou que eu tive piada. Foi só isso que aconteceu. Depois tive que ir perceber toda esse técnica.

Ias dar um outro exemplo mais recente.

Foi agora, num espetáculo de empresa. Os espetáculos de empresa são sempre mais difíceis. Todos os comediantes dizem isso. Porque? Porque é totalmente contrário a um espetáculo ao vivo nosso. Primeiro, as pessoas não pagaram bilhete para te ver. Segundo, as pessoas podem não gostar de ti. Terceiro, as pessoas podem não te conhecer. Agora podia dizer quarto, quinto e sexto... Quarto, muita vezes as condições não são as certas, porque estás a fazer em mesas redondas, e metade do público está de costas, o palco não está tão bem organizado. Eu chamo-lhe stand-up de guerra. Num dia em que eu estava super bem disposto, eu adorei estar no palco, as pessoas é que não gostaram tanto. Agora vou-te dizer que se eu fizesse aquilo para o público do "Ar Livre", as pessoas iam adorar, porque eu entrei completamente com o comprimento de onda do "Ar Livre", e as pessoas gostam disso. Para aquelas pessoas, nem estavam identificadas com aquilo. Portanto, "o que é que é esta pessoa que está aqui a falar desta forma?" Não batia a bota com a perdigota. Mas pronto, ainda tive de me bater todo, usar a cartada da interação... foi um espetáculo que não correu bem.

Porque é que gostas de fazer as pessoas rir?

Os humoristas muitas vezes vêm para o humor, justamente para combater essa densidade. Eu acho que é assim que viemos todos para o humor, é um bocado uma defesa. Não é? Quando estás a fazer rir, estás sempre no controlo da situação, e não se vai a ti. Portanto, eu acho claramente que agora estou a passar uma fase interessante a nível de pensamento, justamente porque estou a compreender porque é que vim para o humor. Venho claramente para controlar ou fugir um bocado das zonas que agora procuro.

Como assim?

Eu era um miúdo tímido. Então o humor era uma forma de eu me agigantar. Era o truque que eu tinha para ser validado. Eu tinha alguns medos, não é? Medos que se mantêm até hoje. O humor é um super-poder que tu desenvolves... Eu acho que o humor se desenvolve quando há outras características tuas que estão muito em baixo.

É como se fosse uma armadura?

É uma armadura. Eu acho, por exemplo, a probabilidade de uma pessoa que não tem um olho, ou que é coxa, desenvolver o seu humor é grande. Porque tem aquilo em falta... Por exemplo, uma pessoa muito bonita, é mais difícil ter um humor muito apurado, porque ela não precisou. Basta rir-se... Entra aqui uma miúda gira, ri-se para nós e derrete-nos. Só com um sorriso, não precisa de falar. Quando há outro desequilíbrio, que não precisa de ser estético, há humoristas bonitos e humoristas bonitas. Mas há sempre um desequilíbrio. Todos os que eu conheci têm um grande desequilíbrio. Tem a ver com muitas coisas, com a relação com os pais, com abandonos, com desgostos, com passados difíceis. Não conheci ainda nenhum humorista que diga "a vida correu-me sempre bem". Isto não existe.

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