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Primeiro eram 20, depois 40, 45, 46. E tem mesmo de parar aqui. 46 escritores e 46 ilustradores, e outros tantos artistas plásticos. Todos ligados numa página de Facebook, o Bode Inspiratório. São vozes e traços que não se deixam confinar, "no momento em que me mandam parar, é quando mais me apetece andar", responde a escritora, que assume a vontade do jornalismo, "volta e meia ressurge em mim a jornalista que fui, mas talvez seja esta a altura em que mais o sinto".
Um dia de cada vez, com Ana Margarida de Carvalho: "Grândola, nos pulmões de uma varanda" (excerto)
Dá por ela a olhar para os homens do lixo e a pensar na reportagem, ou para os seguranças dos supermercados, ou para os estafetas de take away, os que não estão na linha da frente. O olhar dela não abandonou o ofício. Mesmo que a mágoa perdure, e o eco do adjectivo "dispensável", ao fim de 25 anos dedicados, e pasme-se, premiados até, vá e volte, no correr dos dias. Foi há três anos, que ficou sem emprego, quando o senhor dos recursos humanos da revista Visão lhe paginou a saída, "deixei de ser jornalista à força, foi um processo duro". Vieram mais livros e prémios, o último "O gesto que fazemos para proteger a cabeça", terá uma linha no final da nossa conversa.
De volta ao Bode Inspiratório. A esta hora já foi publicado o capítulo 32. O processo é simples. Cada escritor tem 24 horas para ler o último capítulo, e escrever o seguinte. O mesmo com os ilustradores, que não seguem o rumo das palavras. Deixam-se levar pela contaminação da crise, e do isolamento social. Os artistas plásticos idem. Tudo começa a 25 de Março, data em que é publicado o primeiro capítulo, escrito por Mário de Carvalho, "Raios e Coriscos", aqui se lançaram personagens e suspeições e desafios para os seguintes, "escritores de várias gerações, de vários géneros, abordagens diferentes", explica Ana Margarida de Carvalho, que desta vez não escreve. "Dei a minha vez" , e é ela a editora do projecto, agora já com uma vasta equipa, vídeo, áudio, tradutores, ( já há versões traduzidas para inglês, francês, castelhano, e pelo mundo fora, ou dentro), e uma curadora de arte, "eu criei o monstro, mas agora vou ter de alimentá-lo".

© Ana Margarida Carvalho
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O bicho já tem escala, e um compromisso sério com o leitor. São dias loucos e corridos, afirma a escritora, que se alimenta do entusiasmo dos outros, do trabalho de equipa, que afaga assim as saudades de não ver os pais e nem os filhos. Muitos dos escritores e artistas nem se conhecem, "não é comum que trabalhem em conjunto, mas este contexto tão extraordinário e inverosímil, permitiu criar uma linha narrativa e ficcional que nos liga", explica com o entusiasmo de uma voz que não prescinde da alegria, esse modo de estar e de fazer "que tem um grande potencial de resistência e de luta".
O último capítulo é publicado a 5 de Maio, e será Luísa Costa Gomes a escrever o Fim. E depois?
Depois, "se ainda existirem livros e editoras", responde, "um livro, uma exposição, e um catálogo", mas a primeira coisa "é uma grande festa para nos conhecermos".

© Ana Margarida Carvalho
No próximo sábado, dia 25 de Abril, talvez a possamos ouvir a cantar a Grândola à varanda, num coro da Primavera, onde não faltarão os dois cães, Vicenta e Cãoboio. Este ano, não poderá descer a Avenida da Liberdade, como sempre, "apesar de não gostar de ajuntamentos", mas sempre assim comemorou a data, e não consegue perceber a polémica que rodeia as comemorações. "Provoca-me arrepio" e desprezo pelo que considera ser "um aproveitamento necrófago", em circunstâncias tão duras para todos. Mais uma razão para celebrar Abril . Enquanto não pode voltar a dançar ao final do dia. Exercício físico pela manhã, e dança ao final da tarde, o esforço e a elegância dos gestos que lhe protegem a cabeça. Isso, e algumas "ideias estúpidas" que vai tendo. Como o nome de uma futura editora : "Pandemicovídeo", e ri-se. Com alegria.

© Ana Margarida Carvalho
Um dia de cada vez é um programa de Teresa Dias Mendes. Pode ser ouvido na íntegra, de segunda a quinta, depois das 19h00, na antena da TSF e em TSF.PT - Um dia de cada vez
* Nota do Editor: a autora não escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico