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O Orçamento do Estado para 2023 (OE2023) prevê mais de cinco mil milhões de euros para a área do ambiente e da ação climática, um aumento de 1,7 mil milhões de euros quando comparado com o ano anterior. O documento apresentado pelo Governo destaca a proteção e conservação da natureza e das florestas, os recursos hídricos, a reciclagem de resíduos e a transição energética. Pela primeira vez, a proposta do Executivo tem uma "orçamentação verde", algo que está associado ao Pacto Ecológico Europeu e à Lei de Bases do Clima, que entrou em vigor em fevereiro deste ano.
"Nós temos cerca de 2500 milhões de euros e dotações orçamentais com impacto positivo na transição climática no total de mais de 600 medidas que foram identificadas por diferentes áreas do Governo como sendo positivas à transição climática. É um começo, porque, de acordo com a referida Lei de Bases do Clima, temos obrigação de garantir que o OE é alinhado com a política climática, mas ainda é muito pouco. Estamos a falar de 2,5% das despesas consolidadas do orçamento e é preciso ver estas mais de 600 medidas se efetivamente são ou não coerentes com esta política climática", explica Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero, sublinhando que é preciso "garantir uma programação orçamental que terá, no futuro, que ser validada ou confirmada pelo Conselho para a Ação Climática, que é algo que está por nascer no seio da Assembleia da República".
O especialista adianta ainda que no futuro teremos um "IRS Verde", "algo que o Governo terá de criar e implementar, mas que ainda não está subjacente neste orçamento". "De uma forma muito genérica, é um OE que tem um conjunto de valências positivas para o ambiente, mas que em muitos pontos, mesmo com esta integração daquilo que a Lei de Bases do Clima prevê, ainda estamos aquém do que seria desejável", defende.
Ouça aqui o Verdes Hábitos sobre o OE2023 para o ambiente. Um trabalho com sonoplastia de Margarida Adão
Transição energética: descarbonização e eficiência
Um dos pontos destacados no documento é a transição energética, onde o Governo prevê o reforço de mais de 30% das verbas, elevando o total para 2,1 mil milhões de euros, visando "acelerar a descarbonização, melhorar a eficiência energética e reforçar os transportes públicos". Tendo em conta o período de crise energética e de seca que a Europa vive atualmente, Francisco Ferreira entende que o OE2023 "tem um conjunto de prioridades que vão no caminho certo, mas que falham em algumas áreas absolutamente cruciais".
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Numa crise energética, "eu estou a injetar dinheiro no sentido de garantir que os preços da eletricidade e do gás, seja nos particulares, seja na indústria, não subam demasiado, pondo em causa o funcionamento das fábricas ou toda a economia. Mas, o que acontece é que eu não estou a obrigar medidas de eficiência energética por parte da indústria como contrapartida. Em muitos casos isso está presente no OE, mas sabemos que ninguém fiscaliza", exemplifica.
"No OE fala-se que existe um acordo de racionalização dos consumos de energia, há auditorias energéticas que estão previstas em muitos dos casos, mas o que é facto é que nada disso está a ser devidamente implementado, há uma falha grande que é: eu dou dinheiro sem uma verdadeira contrapartida ambiental e essa é talvez uma das falhas maiores no que diz respeito a muitas destas linhas de atuação", sustenta.
"Por outro lado, estamos a ver que muitos dos apoios que têm vindo a ser fornecidos ao transporte público e à descarbonização não estão a ter os devidos efeitos e temos que ter um outro tipo de intervenção. De uma forma muito clara: neste momento, em que os preços estão muito mais caros, por incrível que pareça, estamos a consumir mais gasóleo e mais gasolina do que antes da pandemia, e portanto, isto só mostra que não estamos com políticas de mobilidade sustentável suficientemente eficazes", refere Francisco Ferreira.
Mobilidade, reciclagem e águas residuais
No que toca à tributação dos veículos, Francisco Ferreira diz que este é um dos pontos onde "há um sinal errado" no OE2023.
"Mesmo que eu tenha veículos elétricos já relativamente dispendiosos, eu deveria manter o apoio em sede de tributação autónoma no caso das empresas, ou seja, não os tributar, de forma a garantir que seriam essas as escolhas. E o Governo o que faz até é dar um sinal contrário: baixa a tributação autónoma de veículos híbridos plug-in e veículos a gás natural. Ora, é no fundo estarmos a subsidiar os combustíveis fósseis, o que não tem sentido", afirma.
"Além de que na área da mobilidade ativa e suave, as verbas disponíveis para, por exemplo, os planos de mobilidade, o uso da bicicleta, a construção de ciclovias - um milhão de euros - é claramente pouco", acrescenta.
Ao nível da sustentabilidade ambiental, a proposta de Orçamento do Estado dá destaque aos resíduos, à economia circular e também às águas residuais, com medidas que já têm vindo a ser mencionadas, como o sistema de depósito de embalagens de bebidas e a Estratégia Nacional para a Reutilização de Águas Residuais.
O especialista da Zero avança que "em breve teremos o plano estratégico para os resíduos urbanos e vamos ver se temos um OE e um plano em linha com aquilo que é a prioridade que deve ser dada à prevenção da produção de resíduos".
"Em relação às águas residuais temos que ter um fortíssimo investimento que é necessário numa situação de seca: temos que simplificar e apoiar este uso, temos apenas cerca de 1,1% de águas residuais que são reutilizadas e precisamos de aumentar esta percentagem", diz.
No que toca aos resíduos, "temos que andar mais depressa naquilo que são as apostas na prevenção e na reutilização, deixando de financiar a incineração".
"Temos aqui um atraso muito grande no que respeita às metas da reciclagem e há também aí verbas que nós queremos ter a certeza que são suficientemente diferenciadoras, de forma a que os municípios que façam mais recebam mais e não que haja um tratamento igualitário, que não estimule realmente aquilo que é uma conduta mais sustentável na gestão dos resíduos", assegura.
Ruído, florestas e agricultura
O OE2023 prevê a publicação da primeira Estratégia Nacional para o Ruído Ambiente. Mas que estratégia é esta? Francisco Ferreira responde: "É uma estratégia que já aguardamos há vários anos, sistematicamente aparece mencionada no relatório associado ao OE e continua por concretizar. Vamos ver se é desta. É uma estratégia muito importante, porque o ruído é dos fatores ambientais que perturba mais as pessoas, apesar de ser a poluição do ar aquela que causa mais problemas de saúde."
O ruído nas cidades exige ação por parte das autarquias e das grandes infraestruturas, como os aeroportos, nomeadamente em Lisboa. "Estamos a flexibilizar mais os voos noturnos, fala-se de descer a ambição de muitos dos aspetos relacionados com o ruído e relativamente às políticas de qualidade do ar também não se vê nenhuma mudança, quando a Organização Mundial da Saúde está a querer cada vez maiores exigências."
A conservação da natureza e das florestas, o setor da agricultura e do desenvolvimento rural são também, segundo o Governo, "setores prioritários". Francisco Ferreira explica que grande parte do financiamento destes setores está associada à Política Agrícola Comum e "à forma como a estratégia para Portugal foi definida".
"Temos ido em caminhos contrários, ou seja, em vez de eu garantir que tenho um tipo de agricultura que deve ser mais financiada porque é mais compatível pela salvaguarda da paisagem, da biodiversidade, dos recursos, aquilo que tenho é um apoio a uma agricultura que aposta em grandes extensões de monocultura, de regadio, que é contrário àquilo que o clima nos indica. Temos que ter um pensamento sobre a agricultura que é diferente do paradigma em que continuamos a insistir. Em relação à agricultura, infelizmente, vemos que o traçado está muito contra àquilo que nós gostaríamos. Na floresta, temos, acima de tudo, que, mais uma vez, seguir aquilo que nos parece evidente depois dos incêndios de 2017 e de 2022, que é investir numa floresta mais biodiversa", considera.
Concorrer a financiamentos
O Orçamento do Estado representa as medidas e os objetivos do Governo para 2023, mas os portugueses também podem ajudar no combate às alterações climáticas e na preservação do ambiente. Como? "Os portugueses têm tido várias oportunidades através do fundo ambiental, que tem servido para colmatar, em muitos casos, necessidades imediatas de verbas sem grande planeamento e que tem sido crucial em áreas como tornar os edifícios mais sustentáveis e garantir uma transição para as renováveis", diz Francisco Ferreira.
"É crucial garantir que o fundo ambiental mantenha este propósito. É preciso chegar perto das pessoas e das suas necessidades. Aqui, é crucial lembrar que continuamos uma estratégia nacional de combate à pobreza energética. O OE tem aqui várias ligações onde as pessoas podem concorrer a financiamentos, ou serem alvo de financiamentos direcionados, como este da pobreza energética e do vale eficiência, que se espera que venha a ser melhorado e chegar em melhores condições aos portugueses mais necessitados", indica.
"Este vai ser um OE num período de crise energética onde nós esperamos conseguir os estímulos certos para que se consiga enfrentar um inverno - que vamos ver se não será muito rigoroso - e que tenhamos as estratégias de longo prazo para garantir que conseguimos reduzir os nossos consumos de energia, sem por em causa a qualidade de vida. Há várias pontes que o OE nos permite fazer, oxalá nós estejamos coerentes com a política climática e com a política de uma mobilidade sustentável", conclui, acrescentando que nas negociações do Orçamento do Estado, a Zero vai "concretizar muitos destes aspetos que se espera virem a ser melhorados".