Perguntas e respostas: o que diz a ciência sobre a canábis?

No dia em que o parlamento debate dois diplomas sobre a legalização da canábis para fins recreativos, a TSF foi procurar saber o que tem a ciência a dizer a este respeito.

Há questões que reúnem o consenso da comunidade científica e, outras que - pelos riscos que comportam ou por se prenderem com questões ideológicas e de liberdade individual - geram um maior debate no meio. É o caso da legalização da canábis para efeitos recreativos, tema em debate esta quinta-feira no Parlamento.

Se, por um lado, a ciência mostra que a utilização da canábis tem efeitos terapêuticos comprovados , por outro, também são conhecidos os riscos para a saúde, sobretudo a nível psiquiátrico.

A canábis é uma droga inofensiva?

Portugal aprovou, em junho de 2018, a utilização da canábis para fins medicinais, meses depois de o Conselho Nacional da Política do Medicamento emitir um parecer a sustentar a forte evidência de "eficácia da canábis e dos canabinoides no tratamento de dor crónica nos adultos (incluindo dor neuropática), como antiemético associado a tratamento oncológico, na redução da espasticidade por esclerose múltipla e no controlo da ansiedade".

O mesmo parecer dava ainda conta da "moderada evidência de suporte ao uso de canabinoides na melhoria do sono em pessoas com apneia obstrutiva do sono, fibromialgia, anorexia por cancro, stress pós-traumático e no tratamento do glioma."

Apesar dos benefícios, o mesmo documento abordava uma "forte evidência da associação de consumo de canábis e desenvolvimento de dependência, esquizofrenia e outras psicoses (aumentando o risco com o aumento do consumo), agravamento de dificuldade respiratória, bronquite crónica e acidentes rodoviários".

Para além disso, o documento explicava que existe uma "moderada evidência da associação de consumo de canábis e ideação suicida, crises maníacas e hipomaníacas em indivíduos com perturbação bipolar, diminuição da aprendizagem, dificuldades de memorização e atenção, ou sintomas depressivos."

A psiquiatra Lia Fernandes, investigadora do CINTESIS, defende, em entrevista à TSF, que a canábis pode, inclusive, fazer com que os consumidores desenvolvam "síndrome amotivacional", isto é, "as pessoas ficam muito alheadas da realidade, muito pouco participativas e com défices de atenção, de memória, há uma perda cognitiva absolutamente evidente".

No mesmo plano, o neurologista Bruno Maia - ativista pela legalização da canábis - reconhece que esta droga "não é inócua", mas defende que os efeitos colaterais que resultam do seu consumo são iguais aos de outras substâncias legais.

"O que a canábis causa é uma coisa chamada psicose, associada ao consumo de substâncias. Isto é um quadro reversível, após cessarmos o consumo da substância e que envolve muitas outras substâncias legais e ilegais. O consumo agudo pode estar associado a um primeiro episódio de esquizofrenia, tal como está o álcool, o stress emocional e muitos outros fatores."

O álcool é pior do que a canábis?

Bruno Maia é perentório: "Os efeitos colaterais do álcool são muito piores do que os da canábis." O neurologista explica que "o álcool causa uma série de doenças neurológicas, muitas delas irreversíveis, que são devastadoras. Para além de causar doenças ao nível do coração, cancro do fígado, doenças a nível do trato digestivo, da visão, da audição, matar dezenas de milhares de pessoas por ano".

Já Lia Fernandes, embora reconheça que o álcool é um problema com "efeitos nefastos", defende que os efeitos das duas substâncias "são claramente distintos".

"Apesar de tudo, a canábis desencadeia doenças psiquiátricas bastante bem documentadas. O álcool é um problema que nós já temos, inerente à nossa própria cultura, e com o qual temos que lidar da forma mais adequada. Mas são problemas diferentes. Este [o consumo de canábis] é um problema para o qual estamos a abrir uma porta agora [com a legalização para efeitos recreativos]."

Legalizar diminui o tráfico ilegal?

No que diz respeito às consequências que a legalização da canábis para fins recreativos pode ter no mercado negro as opiniões dos dois especialistas também divergem.

Lia Fernandes tem "sérias dúvidas de que a liberalização controle os tráficos" e defende um "controlo bastante mais eficaz - que não é feito ainda em Portugal - desta e das outras drogas ilegais".

"Ainda não estão feitos sequer estudos longitudinais que possam permitir tirar conclusões que sejam favoráveis à liberalização, mesmo nos outros países que já iniciaram este processo, como é o caso do Canadá. Ainda não há sequer conclusões que nos digam que indubitavelmente a sua liberalização traga vantagens em relação aos sistemas que existem, neste momento, nos restantes países.", assegura a psiquiatra.

Por outro lado, Bruno Maia garante que "a proibição de substâncias atira esse consumo para o mercado negro",o que impossibilita um controlo sobre o que é consumido e por quem.

"Muitas vezes as substâncias são adulteradas e, portanto, as consequências para o consumidor são muito piores do que num quadro legal, no qual conseguimos controlar a qualidade da substância, estudar padrões de consumo e dirigir campanhas de prevenção e redução de riscos mais informadas e com dados objetivos.

O neurologista defende ainda que, por causa da adulteração da droga com recurso a produtos sintéticos no mercado negro, "o risco de toxicidade" é maior.

"Existe canábis sintética no mercado negro que tem concentrações do THC - a substância psicoativa - gigantes e que, de facto, causam muitos problemas, não só de adição, mas os próprios problemas psiquiátricos estão muito aumentados com os canábis sintéticos."

A legalização aumenta o consumo?

"A legalização não traz um aumento do consumo", assegura Bruno Maia que dá como exemplo de sucesso nesta matéria os efeitos da descriminalização das drogas, em Portugal.

"A descriminalização das drogas, na altura, teve a oposição de pessoas da política e da medicina que argumentavam que a descriminalização das drogas ia aumentar o consumo. Errado. Diminuiu o consumo das drogas. Aliás, foi a descriminalização que permitiu que nós conseguíssemos baixar o consumo da heroína."

Lia Fernandes não concorda com esta perspetiva e acredita que a legalização "cria uma cultura de tolerância para uma coisa extraordinariamente grave e agressiva e que pode desencadear doenças psiquiátricas bastante graves".

A psiquiatra vai mais longe: caso o autocultivo seja permitido "há uma disseminação completa" da droga: "Até é ridículo dizer que o autocultivo é interdito a menores de 18, porque numa casa onde exista isso qualquer pessoa tem acesso - desde as crianças até aos jovens de qualquer idade"

Somados os pontos, as visões dos dois especialistas são opostas. Lia Fernandes defende uma "tolerância zero" à legalização da canábis para fins recreativos, enquanto Bruno Maia diz ser "totalmente a favor".

Ouça também o debate do programa da TSF "Olhe que não" - Deve ou não o Estado legalizar o consumo de cannabis para uso pessoal?

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