Reportagem de Dora Pires, com sonorização de José Guerreiro.
A aposta está alta. No início do ano a Philip Morris, fabricante da única marca de tabaco aquecido que se vende em Portugal, tinha anúncios de página inteira na imprensa britânica: "Vamos deixar de fumar! Vamos deixar de vender cigarros!
Estava apresentada a nova estratégia de marketing e o novo produto. Cigarros são só os de papel que ardem, fumar é só quando se liberta um fumo denso.
Até o nome do dispositivo remete para esse novo mundo onde fumar parece ser agora outra coisa. IQOS - as iniciais de " I Quit Ordinary Smoke", o que se poderá traduzir por algo como "Eu deixei os cigarros comuns".
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Mais importante que o fumo, o cheiro e as cinzas (que o novo produto, não tem) é a alegação de que fumar assim é menos perigoso. E é assim que o fabricante o quer vender, mal seja aceite pelos reguladores. Ainda não aconteceu.
O segredo está na temperatura, diz-nos Paul Riley, Presidente da Philip Morris para o Extremo Oriente e Austrália. "O problema dos cigarros não é necessariamente a nicotina, que gera adição. É antes a quantidade de químicos gerados no processo de combustão. Estamos confiantes que com o nosso produto o utilizador absorve metade dessas substâncias".
Esta promessa de revolução soa a música muito antiga aos ouvidos de Emanuel Esteves. O Presidente da Confederação Portuguesa para a Prevenção do Tabagismo afirma em tom enfadado que "quando surgiu o cigarro com filtro prometeu-se que faria menos mal, quando surgiram os cigarros light é que era, depois foram os aromas. A verdade é que até hoje nenhuma dessas novidades tornou os cigarros menos nocivos, nalguns casos, pelo contrário".
O assunto recomenda cautelas, estão quase todos do lado da indústria os estudos que apontam para essa redução de danos. E até agora, segundo Emanuel Esteves, no essencial não foram comprovados por estudos independentes. Mas o que se sabe, que este produto de tabaco liberta substâncias químicas, é suficiente "a questão não é se tem mais ou menos substâncias nocivas, a questão é que tem e algumas, já o sabemos, são cancerígenas". E remata: "É como escolhermos entre cair de um prédio de 70 andares ou de um 10.º andar."
A composição do tabaco é sigilosa, em Portugal, mesmo que o governo quisesse, não tinha laboratórios capazes de confirmar se a lista de substâncias comunicada pelo fabricante corresponde ao conteúdo.
Neste campo a vantagem está do lado da indústria. Foi há cerca de 30 anos que a Philp Morris iniciou este percurso do tabaco sem combustão. Paul Riley garante que também aqui a tecnologia é o futuro, "o próximo passo será o bluetooth, ligar o IQOS ao telemóvel".
Segundo dados da empresa, o investimento já está próximo dos 3 mil milhões de euros. E quem aposta tão alto dificilmente aceita perder.
Falamos com Paul Riley em Tóquio, via Skype, ele está na Austrália. Estamos no Japão a convite da tabaqueira, do grupo Philip Morris. O Japão foi o primeiro mercado do tabaco aquecido e é daqui que se pretende converter os fumadores do resto do mundo.
"Os japoneses são muito recetivos e aderem muito rapidamente à novidade", explica Riley. É um país onde é mais fácil fumar em espaços fechados do que na rua, aqui é proibido. Há zonas próprias para fumar apenas tabaco aquecido. O governo japonês é acionista da tabaqueira nacional, a Japan Tobacco proíbe os cigarros eletrónicos, que não produz, e vende o seu próprio dispositivo de tabaco aquecido.
No ocidente, o percurso do novo tabaco está a ser mais difícil, com mais restrições à publicidade e politicas antitabágicas mais fortes. Uma das opções da Philp Morris foi criar uma fundação, Foundation for a Smoke-Free World, ou Fundação para um Mundo sem Fumo. Tem cerca de mil milhões de euros para gastar até 2030 e ofereceu parceria à Organização Mundial de Saúde, mas ouviu a porta fechar-se com estrondo.
A OMS não só recusou a parceria como pede a todos os governos que guardem distância de tal fundação.
É pouco dizer que não acredita nas boas intenções da empresa. Invoca uma assembleia geral da organização onde foi decidido que em nenhuma circunstância será aceite qualquer tipo de relacionamento com a indústria, uma vez que há um flagrante conflito de interesses.
Paul Riley, da Philip Morris, não vê onde. "Não vejo qual o conflito de interesses. Ciência é ciência, está certa ou errada. O apoio dessa fundação é importante para construirmos um mundos em fumo, porque queremos mesmo deixar de vender cigarros."
Já o presidente da Confederação Portuguesa de Combate ao Tabagismo percebe a indignação da Organização Mundial de Saúde, " essa parceria só seria boa para a imagem da indústria. É essencial que quem está na luta contra o tabaco seja independente da indústria. Quem está a provocar o problema não pode ser, ao mesmo tempo, quem estende a mão às vítimas do problema.
Outro foco de conflito com a Organização Mundial de Saúde foi a revelação, no final do ano passado, de uma investigação da Agência Reuters.
Foram divulgados documentos e testemunhos de antigos funcionários da Philip Morris sobre o que seria o plano secreto da multinacional para boicotar as estratégias internacionais de combate ao tabagismo. Mostra-se, por exemplo, como a empresa conseguiu infiltrar colaboradores em reunião da OMS ao mais alto nível.
Não há práticas ilegais, responde Paul Riley, "trata-se de fazer o nosso negócio, é suposto trabalharmos com todos os intervenientes, os que são a favor e os que são contra."
Não será comum, mas no site da Organização Mundial de Saúde pode ler-se sobre os novos produtos de tabaco aquecido que "chegou a hora de banir os lobos com pele de carneiro. Chegou a hora de lhes mostrar a porta da rua".
Para presidente da sua Fundação para um Mundo sem Fumo, a Philip Morris convidou um antigo diretor-geral da Organização Mundial de Saúde.