"Viram o filme 'Mar de Chamas'? É igualzinho..."

João Ferreira lutou contra a besta que chegava de todos os lados com apenas um extintor de dois quilos, para salvar o hobby e a paixão do sogro. 80% da mata de Leiria terá ardido nas últimas 24 horas.

Entrar em Leiria é um convite para engolir em seco. O Rádio Clube Marinhense ia revelando 70% da mata ardida no concelho. Na Cova do Lobo, Abílio e companhia, duas senhoras e um ciclista que ia de paróquia em paróquia para ouvir e ver as más notícias, conversavam sobre a besta, com a floresta nua e vestida de escuro por trás. Desolador.

"Nunca vi nada assim. À uma da manhã estava a 400 metros, às 2h da manhã já estava nas casas e tive de dar à sola, fui obrigado", conta Abílio Matos, natural de Carvide mas que mora por ali, diz orgulhoso, há quase 50 anos. "As casas só não arderam porque há ali uma fábrica e vieram-na salvar", resigna-se um elemento do grupo.

Mais uns minutos no carro e a moldura continua a ser a mesma. Árvores sem lembranças de dias felizes, cinzento que já foi verde em tempos idos, olhos cravados no chão, corpos com mossas, mãos pretas, cansadas. O campo de futebol de Praia Vieira é a metáfora perfeita: não há alegria, não há ninguém, nem a moldura, com troncos de mais de 20 metros, sugere outra melodia. Há derrota. As duas balizas parecem chamuscadas. Há um cheiro estranho de uma erva qualquer que se mistura com o da terra queimada.

Em Vieira de Leiria estão dois irmãos, lado a lado, a tratar de recuperar praticamente uma mão cheia de nada de um esqueleto que era a casa onde pai vivia até ontem. Está completamente queimada. Ainda há vidros a cair, fumo que vai gritando sem ninguém o calar. A loiça está no chão, a única coisa intacta por ali, com móveis transformados em pó. "Eu fugi da guerra, vim sem nada de Moçambique, agora isto... É triste", lamenta uma senhora da família, puxando toda a fita familiar atrás em cinco minutos.

Pilado estava praticamente um deserto. Esteve assim durante toda a noite, com uma exceção: João Ferreira. Chegou apressado, num Fiat Uno velhinho, com umas calças de bombeiro e um polo vermelho.

-- Como é que se chama?
-- João Ferreira
-- Que idade tem?
-- 38. 38? 39, caneco!
-- O fogo queimou-te o cérebro [disse um amigo que o ajudava na ressaca]
-- Ainda não vi a cama...

Aquele barracão, completamente engolido por um pinhal que já não o é, promete uma história de coragem. "Aqui foi mesmo sozinho, com a ajuda do meu fiel extintor de dois quilos. Aquele canico", começa a contar João Ferreira. Bombeiro numa corporação vizinha, teve nos olhos da mulher o timing perfeito para vir ao barracão salvar oito carros que por ali estavam.

"Este é um barracão que o meu sogro fez uns anos antes de morrer. Ele era amante de automóveis. Fiquei com a paixão dele, tal e qual. Gosto de fazer as minhas coisas. Faço a parte mecânica e de chapa. Tenho este espaço a que chamo GEP, o gabinete de engenharia do Pilado. Passo aqui os meus sábados e sextas-feiras. Quem me quer encontrar, é aqui", conta, esboçando um sorriso rasgado.

Este homem diz que, perante aquele cenário, nem tem coragem de ver o resto. "É devastador olhar para isto", diz, lembrando depois que muita gente esteve no campo de futebol à noite, ali perto, mas que tiveram de fugir depois. "Porque ele vinha com uma intensidade louca. Falamos de pinheiros de 20, 25 metros. O fogo vinha lá em cima. Foi fulminante. Vento intenso. Até por volta da 1h da manhã o vento estava a nosso favor, por volta da 1h30 foi o descalabro total, porque virou ao contrário e foi a galopar." Trata-o como se fosse alguém desavindo: "Ele".

Falamos junto aos carros, que merecem o seu olhar terno. Ouve-se na rádio uma senhora a agradecer aos bombeiros, porque ajudaram a manter as casas. "Aqui também...", diz com ironia.

Quanto ao fiel companheiro, o extintor, pequeno e vermelho como dizem as regras, estava num dos carros com barbas. A paixão, de certa maneira, ajudou-o naqueles momentos de aperto. A água deixou de correr pelas torneiras. Nada, nem uma gota. Ele e um extintor contra a besta.

"Viram o filme 'Mar de Chamas'? É igualzinho..."

Mas não foi. Aqui, Robert de Niro, Kurt Russel, Donald Sutherland e Jennifer Leigh são os Abílios e os João Ferreiras. No outro lado do oceano, no filme de 1991, tocavam as melodias de Hans Zimmer. Em Leiria ouve-se outra cantiga: a lenha a estalar e o silêncio da terra.

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