Mateus e João são rapazes transgénero que continuam numa espécie de limbo, depois do veto presidencial à lei da auto-determinação de género. É um dos temas polémicos que será decidido depois das eleições a 10 de março.
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De cabelo curto, roupas largas, unhas pintadas de preto, Mateus (nome fictício) apresenta-se como um "rapaz trans".
Os pais já tinham notado sinais de disforia de género: "brinquedos e brincadeiras de menino", relata o pai Manuel; escolha de super-heróis masculinos, como o Batman e o Homem-Aranha, acrescenta a mãe Nina.
Com a chegada da puberdade, aos 11 anos, a menina começou a sentir que "o corpo não era meu". De Marina passou a chamar-se Mateus, mas a mudança do nome foi rejeitada pela escola no ano lectivo passado.
No oitavo ano de escolaridade, Mateus nunca vai à casa-de-banho na escola, porque não pode frequentar os sanitários masculinos e causaria desconforto nas instalações destinadas às raparigas. Nas aulas de Educação Física, passa rapidamente pelos balneários apenas para deixar a mochila, mas há dias em que fica na escola das 08h ás 17h, sem nunca ir à casa-de-banho.
Nina assume que é uma das maiores preocupações, por uma questão de saúde, lamentando que a escola não tenha dado qualquer outra opção. Mesmo quando almoça na escola, Mateus vai "evitando beber líquidos, para não ter vontade de ir à casa-de-banho".
Alvo de bullying, Mateus tentou suicidar-se no ano passado. "Tentou jogar-se do terceiro andar da escola", conta a mãe, que ainda assim, sente mais segurança e tolerância em Portugal do que no Brasil, de onde a família é originária. Depois da tentativa de suicídio, Mateus recebeu ajuda de um pedopsiquiatra e quando voltou à escola, neste ano lectivo, o pedido de mudança do nome já foi aceite. No entanto, nas pautas e documentos oficiais continua tudo na mesma. O acesso aos sanitários também continua restrito.
Noutra escola da área da grande Lisboa, com três alunos trans, João também se sente "mais confortável a ir à casa-de-banho do café em frente à escola". Para o jovem de 18 anos, a gota de água aconteceu durante a pandemia. "Já estávamos todos presos em casa (...) fiquei num estado mental bem pior e acabei por contar à minha mãe, simplesmente por não aguentar mais".
A mãe, que pede para ser apresentada como Ana, lembra que se assustou com as lágrimas da filha, até então conhecida como Joana. Mas "entre lágrimas e abraços", garantiu que "estou aqui para ti, não estás sozinho, vamos enfrentar o mundo". Para o pai, Miguel, o choque foi maior. "Ser trans (...) tinha sempre uma conotação muito negativa, principalmente ligado a mulheres trans, também à prostituição", mas depois do choque inicial, a família procurou ajuda.
Agora, é Miguel quem educa os amigos, como durante um jantar, quando um amigo lhe perguntou pela filha. "Já não tenho uma filha, tenho um filho", respondeu Miguel, que se disponibilizou para responder a todas as questões. "Quero mesmo passar esta mensagem com segurança e fazer pedagogia perante aqueles que me rodeiam, de forma a educá-los e pô-los a pensar".
Os pais, como Miguel, Ana, Nina e Manuel, contam com o apoio da AMPLOS, a Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género. "Nós aceitamos, mas não é uma transição fácil para ninguém", salienta Nina. "Foram 12 anos a chamar por um nome e a conviver com uma criança de uma forma e depois, você tem de aceitar, mas tem de mudar muito coisa na cabeça para se ajustar". Há "medos e ansiedades. Encontrar outros pais que estejam a passar pela mesma situação é muito importante".
Manuel acrescenta que "tinhamos depositado muita esperança (na mudança da lei). Quando foi aprovada, ficámos muito felizes", mas depois do veto do Presidente da República, "vamos ter de conseguir isto por conta própria".
Ana convida os decisores políticos a colocarem-se "nos sapatos destes miúdos, nem que seja por um segundo", numa "caminhada difícil de muito amor", mas "nunca iriamos abandonar o nosso filho".
Miguel acrescenta que na família, "somos todos um pouco trans e vai ser essa força que vamos ter para enfrentar todas as etapas que virão por aí, porque isto é um processo longo, mas estamos cá".
O filho João aconselha os jovens transgénero a viverem "um dia de cada vez. Expressem o que sentem, para que os vossos dias sejam um pouco melhores".
Já Mateus confessa que anda "muito feliz", com amigos e amigas trans. "Não me sinto mais sozinho". Além disso, tem um namorado gay. "Estamos juntos há sete meses", declara-se apaixonado.