Mónica Quintela é advogada, foi deputada do PSD e porta-voz para a Justiça durante a liderança de Rui Rio. A entrevista TSF/DN com Mónica Quintela.
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No Parlamento, Mónica Quintela coordenou a representação do PSD na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Foi dirigente da Ordem dos Advogados. Nas eleições de março ficou fora das listas do PSD.
A reforma da Justiça sempre foi uma prioridade de Rui Rio enquanto presidente do PSD, quando era o maior partido da oposição. Do que já leu do programa do Governo para a Justiça acha que esse caminho começou a ser feito da melhor forma?
A reforma da Justiça é uma necessidade estrutural para o país. Há muitos anos que devia ter sido feita e não tem havido vontade política e também o próprio sistema de Justiça contribui para isso. Porque as pessoas vão, enfim, os intervenientes, os atores da Justiça vão perpetuando muitas vezes hábitos, rituais, práxis que estão acostumados e são muito difíceis à mudança. Agora, em termos do programa do Governo, o programa do Governo da Justiça tem essencialmente normas programáticas de onde não se consegue perceber o que é que em concreto, depois a medida concreta, pretendem fazer. Muitas das normas que estão lá já transitaram do programa anterior do PSD, onde colaborei na sua realização para as anteriores eleições, quer em 2019, quer em 2022. Tem algumas medidas novas com as quais concordo, tem outras com as quais discordo, que de resto a minha discordância é pública relativamente a algumas delas. Como a questão do enriquecimento injustificado, se bem que houve já aqui um avanço, porque já vêm dizer, portanto no programa consta, que caso não seja possível legislar de forma constitucional, e não é, temos os acórdãos do Tribunal Constitucional que nos dizem isso, que poderiam eventualmente criar uma ação para a extinção do domínio. Esta ação para a extinção do domínio é um instituto do direito brasileiro e que já existe no direito português, que é a perda ampliada de bens. Portanto, não percebo muito bem nessa parte em que é que o Governo diz que irá criar uma coisa que já existe a perda ampliada com inversão do ónus da prova, porque é um instrumento do direito civil enxertado no direito penal.
Mas a criminalização do enriquecimento ilícito é um princípio a que se opõe?
Oponho, sim.
Pode explicar porque é que tem essa posição e porque é que acha que o PSD está a insistir nesta matéria?
Costumo dizer que o enriquecimento ilícito ou o enriquecimento injustificado, e o PSD agora tem falado outra vez no enriquecimento ilícito, porque em 2012 e 2015 quando foram proferidos os acórdãos de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, depois houve um avanço do enriquecimento ilícito para enriquecimento injustificado. Costumo dizer que a figura do enriquecimento ilícito, a considero uma figura demagógica, está para a criminalidade económico-financeira, para a corrupção, como a castração química está para a criminalidade sexual. É inconstitucional e não resolve o problema. Acho que todas as pessoas que estão no terreno, todas as pessoas que conhecem o funcionamento dos tribunais, que conhecem a investigação criminal, sabem que efetivamente não podemos enveredar. Temos, desde logo, o Tribunal Constitucional foi claro, temos a violação do princípio da proporcionalidade, porque há ausência de um bem jurídico concretamente a proteger. Temos a violação do princípio da legalidade, porque não identifica a ação ou omissão concreta que se pretende incriminar. E depois temos a violação do princípio da presunção de inocência, sacrificando, e que isso é evidente que não consigo, sendo jurista, não é por ser advogada, é sendo jurista e conhecendo bem a ordem jurídica, não posso em circunstância alguma aceitar que se possa sacrificar o tríptico garantístico do princípio da presunção de inocência, depois com os seus derivantes do in dúbio pro reo do direito ao silêncio e direito à não autoincriminação.
Esta inversão do ónus da prova que funciona aqui, mas também pode funcionar noutros conceitos, isso é um facilitismo a quem tem de fazer a investigação ou quem tem de fazer a prova?
Claramente, é claramente. E é um retrocesso civilizacional muito grande, é voltar quase às ordálias em termos de processo penal. Pergunto, porque é que na corrupção económico-financeira, o cidadão, o arguido, o suspeito, é que terá de dizer, terá de provar que não praticou um crime? Muitas vezes pode até não saber qual é, portanto, a inversão do ónus da prova, o que é? É quando a parte acusada tem o ónus de provar que não praticou um determinado facto. E noutra criminalidade, do meu ponto de vista, muito mais grave, como por exemplo um homicídio ou criminalidade sexual, se mantém a presunção de inocência e sem a inversão do ónus da prova. Porque é que se alguém matar outra pessoa a investigação é que tem de provar? Porque é este o nosso princípio do nosso direito de processo penal, do nosso direito criminal, que essa pessoa praticou o crime. E porque é que na criminalidade económico-financeira não terá de ser feita essa prova? Portanto, é evidente que não pode haver a inversão do ónus da prova. Além de ser inconstitucional, é a subversão total do sistema penal, do sistema criminal e do nosso ordenamento jurídico. Quando percebemos como é que isso depois se aplicaria na prática, vemos que há uma subversão total. Além de que não resolve o problema. Para o enriquecimento injustificado ou ilícito, como se lhe queira chamar, para se passar no tribunal constitucional, é preciso que a nossa Constituição de 76, com as revisões subsequentes, dê uma volta e fique de pernas para o ar.
E não defende que isso aconteça.
Não quero de maneira nenhuma que isso aconteça. Estou convicta de que não irá acontecer e presumo que não vai acontecer. Agora, o PSD tem aqui uma formulação cautelosa, já diz, caso não seja possível, enveredaremos por outro caminho, designadamente por esta ação de extensão de domínio. Portanto, penso que, sabendo-se que a população em geral, o cidadão comum que não tem formação jurídica, adere muitas vezes a estes chavões que podem cair bem, é daquelas bandeiras que se vão esgrimindo, mas que efetivamente não podem, em circunstância alguma, do meu ponto de vista, passar no Parlamento e não passará no crivo do tribunal constitucional.
Mas esta é daquelas que pode passar em termos de revisão constitucional, se for o caso disso, porque pode ser feita uma maioria qualificada para aprovar isto, com o Chega e o PSD pelo menos.
Pode, pode. Isso pode, a nossa Constituição, pode ficar de pernas para o ar. Isso pode acontecer, se isso acontecer, é sempre necessário uma maioria qualificada. Agora, isso é a subversão e a inversão total dos nossos princípios de direito criminal, designadamente do princípio da legalidade, do princípio da proporcionalidade. Todos aqueles princípios que informam a nossa ordem jurídica e que dão sustentáculo, garante e estribam os direitos, liberdades e garantias. Ou seja, não podemos, há determinados caminhos que não podem ser trilhados, portanto, não acredito que entre 230 deputados que uma revisão constitucional vá revogar princípios que estão consolidados e que são basilares. Nós temos uma grande tradição jurídica, mesmo em termos de doutrina, muito importante no âmbito de trilhar o caminho dos direitos, liberdades e garantias dos direitos fundamentais. E, portanto, obviamente que a inversão do ónus da prova em direito criminal, estou a falar em direito criminal, não em direito civil, em direito civil há regras da repartição do ónus da prova, mas em direito criminal seria muito mau para o nosso sistema jurídico.
E destas medidas que estão no programa do Governo, quais é que identifica que possam representar resultados visíveis no combate à corrupção? Porque nesta questão da corrupção há uma perceção e há uma realidade, mas é muito importante para essa perceção que sejam visíveis resultados práticos das medidas que estão aí, à parte desta questão do enriquecimento ilícito, que já percebemos que não concorda.
E que não resolve.
E que não resolve. Quais é que acha que podem resolver mais e que terão mais impacto mais rápido?
O programa do Governo, relativamente a esta questão do combate à corrupção, vai buscar várias medidas, que muitas delas já estão plasmadas no ordenamento jurídico. Recordo aqui a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que foi aprovada no Parlamento em 2021 e que eu conheço perfeitamente, de resto fui uma das legisladoras, por parte do PSD, que esteve com esse pacote legislativo. E que com a questão da pegada legislativa, houve muitas medidas que aprovámos e que foram fundamentais, portanto, e que foi o PSD o autor que tomou essa iniciativa legislativa. Como, por exemplo, o aprimorar o conceito do funcionário, o dar sequência às recomendações de organismos internacionais, como o Greco, a OCDE, as Nações Unidas. Quando, por exemplo, criminalizámos o tráfico de influência ativo para ato lícito, que era uma coisa que não existia, que era uma das recomendações do Greco. Portanto, temos um ordenamento jurídico dotado de belíssimas leis. Temos um problema de execução das leis. Temos o problema de as leis saírem do papel. E depois temos o problema de os meios das leis saírem do papel. E de os atores jurídicos, seja Ministério Público, seja magistrados judiciais, sejam polícias, incorporarem essas novas medidas e passá-las à prática. E depois, além de termos essa consciencialização para um novo paradigma do processo penal e do direito criminal, e não só, porque há outras áreas que têm de ser recuperadas ou que têm de ser completamente transformadas no combate à corrupção. Mas, além disso, depois temos, como dizia, a questão da efetivação e da prática com as faltas de meios, recursos técnicos e recursos humanos. E isso é muito importante.
Mas qual é o problema principal? É a falta de vontade desses atores ou é a falta de meios?
Mexer na justiça, chamemos-lhe assim, é particularmente difícil porque há uma conjugação de fatores, que seja a própria corporalização das profissões jurídicas, todas elas, chamemos-lhe assim, que estão muito habituadas, arraigadas aos seus rituais, às suas práticas, aos hábitos, àquilo que costumam fazer.
Mas as leis mudaram essas práticas? Ou tentam mudar essas práticas?
Se essas práticas forem alteradas, as leis podem ser implementadas também de forma diferente. Portanto, isto tem a ver com o quê? Com a cultura jurídica. Portanto, temos, por um lado, uma cultura jurídica muito conservadora ainda, ainda muito saída, ainda muito saída de um Estado novo. Não houve muitas alterações na justiça após o 25 de Abril. Não sei se muitas pessoas têm essa noção. Quer dizer, as principais alterações foram as mulheres que passaram a poder aceder à magistratura, o Ministério Público autonomizou-se, deixou de ser um meio de acesso à magistratura judicial, depois houve um instrumento fundamental que foi a Constituição de 1976, com as alterações em termos do direito de família ao Código Civil em 1977 em que a mulher deixou de estar subjugada, como estava até então, ao chefe de família, era assim que se chamava, portanto, havia a figura do chefe de família, que era o homem, a mulher tinha que pedir autorização, pasme-se, a mulher tinha que pedir autorização ao marido para viajar para o estrangeiro, para trabalhar, o marido seria sempre o encarregado de educação dos filhos, portanto, havia ali um autoritarismo muito presente, com uma desigualdade de género e uma misoginia muito presente no nosso Código Civil, que só foi alterado em 1977, portanto, essa é efetivamente uma alteração legislativa que aconteceu com o 25 de Abril, e muito bem. Ou o Código Penal de 82, em que até 82, por exemplo, no homicídio – e isto é verdade –, em virtude de adultério, havia atenuantes a favor do homem por se chamar os chamados crimes de honra. Portanto, esta mentalidade foi mudando, mas veja-se, o 25 de abril foi em 74, em 77 foi a alteração ao Código Civil, em 82 ao Código Penal, em 87 ao Código de Processo Penal, em 95 ao Código de Processo Civil. E só em 95, só em 95, é que houve uma alteração, do meu ponto de vista foi o virar da página no olhar que a sociedade tem e o ordenamento jurídico, se bem que, lá está, ainda não passou totalmente ao papel em termos de cultura judicial, mas no virar da página da criminalidade sexual, quando a liberdade sexual passou a ser erigida em termos de bem jurídico protegido e passou a ser os crimes de violação e toda a criminalidade sexual passou a ser encarado, pelo menos passou a ser legislado, chamemos-lhe assim, porque há sempre as cotadas do macho latino e, enfim, o cacete com pregos daquele acórdão do desembargador Neto Moura, portanto, isso ainda vai estando…
Mas isso são leis. E a cultura de funcionamento dos tribunais?
Não, isto não são leis, isto é a aplicação da lei, está a ver? A lei já não diz isto, mas a cultura da aplicação da lei fez com que fossem proferidos estes acórdãos, mesmo quando a lei já não diz isto.
As leis já mudaram, mas a cultura de funcionamento dos tribunais não mudou, é isso que está a dizer?
Não mudou, é uma transformação lenta. Ou seja, há uma conjugação de fatores que torna difícil, efetivamente, uma mudança na justiça.
E são os atores?
Os atores, a cultura e a falta de vontade política. Porque como há uma resistência, sempre, dos atores a introduzir mudanças, porque está tudo muito nas suas quintinhas, há também uma falta de vontade política. Podia dizer que a justiça é o parente pobre, mas nem sei se é o pobre se é o temível, mas sei é que tem estado relegada para um plano absolutamente secundário e não tem havido uma reforma, uma transformação da justiça. Aquilo que tem havido é uma gestão. Uma gestão corrente, quase de mercearia da justiça, quase uma gestão corrente da justiça, e impõe-se que haja efetivamente uma transformação, uma reforma estrutural da justiça. Tenho defendido isso, é público, esta é a minha posição pública. Isto mexe com a cultura dos tribunais, dos DIAP, da investigação criminal, mexe com uma série de coisas e mexe com a vontade política. Porque aquilo que menos precisamos são leis. Nós temos belíssimas leis, nós as leis temos lá tudo.
E isso vale no que diz respeito aos direitos das mulheres como também no combate à corrupção de que estamos a falar.
Exatamente.
Ou seja, no fundo, é essa estagnação que existe a nível de mentalidade dos atores da justiça.
Exatamente. Há bocado tinha perguntado sobre os tribunais administrativos e fiscais, a jurisdição administrativa e fiscal. As pessoas pensam o que é que isto tem a ver com a corrupção e com os tribunais criminais? Tem tudo a ver. Se um cidadão para ir buscar uma licença à Câmara, para obter uma licença, resolver qualquer problema da sua vida, em que a parte contrária é a administração central ou local, portanto é o Estado, tem tudo a ver com o tribunal administrativo. E se o cidadão pensa assim, bom, em vez de demorar aqui quatro ou cinco anos para resolver um problema aos balcões e depois 15 ou 20 anos num processo nos tribunais, se calhar consigo chegar lá de outra maneira. E é aqui que entra a corrupção. Quando há bocado me perguntava sobre perspetivas para debelar e para combater quer a corrupção real, quer a perceção da corrupção, é a transparência. Os tribunais administrativos, a jurisdição administrativa e fiscal a funcionar em pleno, porque não funciona. Quando lhe digo a funcionar é porque ela está paralisada. Portanto, tem processos gravíssimos de negligência médica em que morreram pessoas com mais de 20 anos à espera, que é uma coisa absolutamente inimaginável. Portanto, o cidadão desespera. Desespera, isto já não é justiça, isto é denegação de justiça. E, portanto, toda esta parte é muito importante para o combate à corrupção. O combate à corrupção, como é que se faz? Prevenção. Como é que se previne? Educando as pessoas e alertando e denunciando as situações, dando exemplos. E o governo até fala disso no seu programa. Fala exatamente nisso, na questão da prevenção, na questão da educação, que já era uma coisa que vinha dos programas de trás, a prevenção e a educação no combate à corrupção e depois uma repressão que só pode ser feita com a eficácia da investigação criminal. É absolutamente inaceitável, não me ocorre outra palavra, que o cidadão quer seja culpado, quer seja inocente, e preocupa-me sempre muito mais o cidadão inocente como sou uma adepta da presunção de inocência, porque acredito firmemente nos princípios jurídicos racionais. O direito é uma ciência, não é uma razão de fé, não vou lá com adagias populares, portanto, é de uma razão. Por questões racionais, quero acreditar que, efetivamente, o combate à corrupção é feito com a eficácia no terreno e têm de ser dotados os órgãos de polícia criminal, todos eles, e também o Ministério Público, tem de haver ali uma articulação muito melhor, têm de deixar de funcionar em quintas, entre os órgãos de polícia criminal também, porque também funciona muito em quintinhas, têm de deixar, tem de haver uma autêntica cooperação e têm de estar dotados dos meios necessários. E quando falo de meios, falo de recursos humanos e sobretudo de perícias técnicas, porque a criminalidade económico-financeira faz-se muito à base da análise de perícias técnicas, análise contabilística, análise de estratos comerciais, ou seja, há um conjunto de operações comerciais e civis, de engenharias jurídicas que estão metidas na corrupção e na criminalidade económico-financeira e que é preciso que quem esteja a ver tenha uma visão global do ordenamento jurídico e que não pense só no tipo legal de crime, como ele está plasmado no Código Penal ou na legislação conexa. É preciso conhecer e dizer isto está aqui, mas vem dali, ou seja, identificar. E esta visão holística, chamemos-lhe assim, e com a análise designadamente também das perícias informáticas, não é aceitável que se estejam anos à espera de uma perícia informática, não é aceitável o que se está a passar, por exemplo, no processo Marquês ou no processo BES, que são dois processos que têm contaminado completamente todo o ordenamento jurídico. Espero que, porque estou convencida que muitos dos crimes irão prescrever, a solução do poder político não seja ir legislar em cima da perda do caso. Em cima do joelho, a quente, como aconteceu com as alterações que foram feitas no pós-processo Casa Pia e que resultem e redundem numa preterição dos direitos de garantia do cidadão. Porque os atrasos não estão por parte do cidadão, porque o cidadão tem prazos perentórios para cumprir. Tem sempre prazos perentórios para cumprir.
Aquilo que tem estado a dizer leva-me a pensar que estas iniciativas do ministro Pedro Duarte e da ministra da Justiça, Rita Júdice, são infrutíferas, porque tudo isso que está a dizer não depende de propostas que os outros partidos têm e que possam fazer ao governo para alterar o que quer que seja porque, na prática, onde é preciso mexer não são os partidos que vão ter de fazer sugestões.
Penso que o PSD deve ter o seu programa e deve ouvir os outros partidos, muito bem, concordo com a frase que não somos os donos da sabedoria e de todos os quadrantes poderão ouvir boas ideias e conhecimento.
Mas a ideia é que do género, nos próximos 60 dias digam lá o que pensam sobre isto que é para nós, eventualmente, mudarmos de ideias. É um bocadinho uma perda de tempo porque já está tudo mais do que diagnosticado.
Está tudo diagnosticado, está tudo diagnosticado. Toda a gente sabe o que é que os partidos políticos, o que é que as forças políticas pensam sobre todas aquelas matérias, portanto já se sabe, porque uma coisa é ter ideias programáticas. Isto está mal, isto assim não, deve ser outra coisa e depois é passar ao terreno. Por exemplo, recordo que em 2021, quando apresentámos, vi que uma das propostas do Governo tem a ver com acabar ou mitigar, não sei dizer com precisão a expressão, com os megaprocessos. Todos nós estamos de acordo, só que isso já está na lei. Em 2021 fizemos as alterações às regras de separação e de conexão dos processos, ou seja, o Ministério Público já tem todos os instrumentos que lhe permitem fatiar, chamemos-lhe assim em linguagem comum, os processos em vez de estar a fazer megaprocessos que são ingeríveis, que dão uma perceção muito má ao público. Porque o público o que é que pensa? Estes megaprocessos, regra geral, têm a ver com pessoas com visibilidade e as pessoas pensam – lá estamos na perceção –, os poderosos safam-se, os bons advogados utilizam expedientes dilatórios, são recursos atrás de recursos e depois vamos a ver, e quando analisamos os processos que causam esta perceção e esta ideia, todos estes processos têm tramitação processual anormal. Por exemplo, o que acontece no processo Marquês não acontece em mais processo nenhum. Estes prazos não estão no Código de Processo Penal. Ou seja, em milhares de processos que todos os dias tramitam nos DIAP e nos tribunais, não há nenhum como o Marquês. Portanto, não podemos legislar porque aconteceu uma excrescência que a ordem jurídica não soube resolver e que não soube de maneira nenhuma controlar. Por exemplo, a questão da instrução. Os prazos da instrução são perentórios e são muito apertados. Agora, quando temos prazos de instrução que se dilatam nos meses, nos anos e quando temos debates instrutórios que consubstanciam um julgamento, um pré-julgamento, que até lhe digo como advogada que tenho muita dificuldade em perceber, porque a defesa está a abrir completamente o jogo todo. E, efetivamente, só se percebe como um expediente dilatório, porque em termos de estratégia jurídica é evidente que não sortirá o efeito de despronúncia relativamente à acusação. Mas todas estas normas processuais, e aqui é muito importante as regras de separação e de conexão de processo que estão plasmadas no nosso Código de Processo Penal. E, lá está, temos a cultura jurídica, se o Ministério Público e se os juízes assim as aplicarem e os advogados também as requererem, não é? Portanto, também tem de haver aqui uma conjugação de esforços. Há aqui uma possibilidade de, em vez de termos um megaprocesso com não sei quantos casos, com 300 casos que nem têm conexão entre outros, vimos isto agora a propósito da Operação Influencer, não se percebe porque é que desde o princípio não foram separados. Pode ser julgado um a um com muita mais eficácia e com uma dignificação da imagem da justiça completamente diferente.
Mas mantendo a fase de instrução.
Mantendo a fase de instrução.
Ia perguntar sobre a fase de instrução. Não sei se leu as primeiras entrevistas dos novos presidentes do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e da Associação de Juízes, Nuno Matos e Paulo Lona, mas defenderam uma revisão e até mesmo uma extinção desta fase de instrução, alegando que, em termos gerais, só servia para atrasar os processos. Imagino que como advogada não deve concordar nada com isto, mas de qualquer forma, acha que podia aqui haver alguma alteração, nem que fosse cirúrgica, para mitigar essa perceção de que só serve para atrasar processos?
Acho que, e não é por ser advogada, é por conhecer bem a ordem jurídica e perceber o que é importante para o cidadão, porque se estivesse na perspetiva de advogada dizia-lhe assim: o Ministério Público quer aligeirar a investigação, o juiz quer julgar rapidamente e o advogado quer empatar. Não é essa a função dos atores judiciais. Portanto, enquanto cidadã e ainda por cima tendo sido legisladora, percebo bem a importância da instrução. E se a instrução for feita como está prevista no Código de Processo Penal, não tem problema nenhum. Até porque é raríssimo, raríssimo, na vida real, em 99% dos casos, requerer-se a abertura da instrução. Porquê? Porque os advogados sabem e as partes sabem que os juízes podem indeferir a produção de prova que já esteja no processo e essas decisões não são suscetíveis de recurso. Portanto, não têm interesse em estar a abrir o jogo da defesa, em estar a mostrar o que é que vão fazer em julgamento. Até porque se requerem a abertura da instrução, por exemplo, a questão das nulidades processuais seria ali conhecida e vão para julgamento com uma acusação e, por regra geral, com uma pronúncia da instrução. Porquê? Basta haver indícios suficientes para que haja, porque não é um julgamento, uma pronúncia. Portanto, em 99% dos casos a instrução não se coloca, a instrução só se coloca nestes processos, que são os processos que têm visibilidade. E por isso é que temo que estes processos vão contaminar uma coisa que está bem e que funciona bem no dia-a-dia do ordenamento jurídico, porque há regras. O prazo para recriar a abertura da instrução são 20 dias e se o cidadão não o cumprir preclude o direito de o fazer. Agora, os magistrados, quer da Magistratura Judicial, quer da Magistratura do Ministério Público, não têm prazos perentórios, têm prazos meramente indicativos, que diga-se que é uma das propostas que está no programa do Governo para que passem a ter prazos, portanto, para que passem a cumprir os prazos. E que também já vinha de trás e que vejo com bons olhos para haver aqui uma celeridade. Claro que isso vai ter de levar depois à contingentação dos processos, porque para cumprir os prazos cada juiz e cada procurador tem de ter um número confortável de processos para os poder cumprir, como é evidente, não é estarem afundados em processos e ter de cumprir os prazos, porque senão depois prejudica-se a qualidade e isso não pode ser de maneira nenhuma. Porque depressa e bem, não há quem e aqui chamo o adagio popular.
Nunca deixou de ser advogada, mesmo enquanto foi deputada. Tem uma perceção muito real daquilo que é o funcionamento da justiça dos tribunais. Houve um momento no Parlamento em que pediu um agendamento potestativo da justiça e fez um retrato, diria, muito negativo da forma como o caos estava instalado nos tribunais. O que lhe queríamos perguntar era se mantém a frase, se resta aos cidadãos fazerem justiça pelas próprias mãos, face a este fracasso da justiça?
Não disse nesse contexto, disse isso, mas não nesse contexto. Portanto, isso foi um agendamento potestativo, se bem me recordo em abril do ano passado, sobre a justiça, lá está, porque procurei sempre e o PSD procurou sempre pôr a justiça na ordem do dia para não estar relegada num canto esconso. Nessa minha intervenção corro as várias áreas da justiça, ou seja, falo desde a questão da paralisação, que é paralisação mesmo, dos tribunais administrativos e fiscais, falo, inclusive, dos registos e notariados com conservatórias que nem sequer abriam, tínhamos o protesto todo dos oficiais de registo. A senhora ministra da Justiça à data, a doutora Catarina Castro, nem sequer se fez representar, não esteve presente no Parlamento, o que acho que é muito mau, porque os ministros devem dar a cara e devem ir ali responder, portanto, a cadeira ficou vazia, isso foi uma coisa que na altura achei que estava mal porque devia ter dado a cara. E estávamos em plena, estávamos e estivemos até ao final do ano – e vamos ver se não vamos continuar –, com greve dos funcionários judiciais. Ou seja, naquela data já havia mais julgamentos e diligências que tinham sido adiados, e quando falo de diligências falo de providências cautelares, diligências de adoção, arguidos presos, processos de regulação de responsabilidades parentais. É tudo muito bonito, só se atrasa um mês, atrasa dois, atrasa dez, mas quando temos estes processos connosco vemos a importância. E aí a senhora ministra não revelou nenhuma aptidão para resolver o que quer que seja, portanto, efetivamente o retrato, os processos, o inquérito, que é um cancro, digo mesmo, a fase de inquérito, como está a ser tramitada, é um cancro e provoca imensos atrasos. Porque onde o processo atrasa muito, se vamos ver tudo, é no inquérito e por isso quando temos pessoas a recorrer, e sou advogada há 32 anos, quando me perguntam o que precisam de fazer, porque não é lícito o recurso à ação direta, ou seja, a pessoa não pode fazer justiça pelas suas próprias mãos, e eu digo que tem de fazer assim e assim, que tem de se dar entrada, por exemplo, com o no processo tribunal administrativo e tributário, e perguntam-me se resolvo a situação rápido. Mas depois não resolvo, porque não posso resolver, e tenho de dizer às pessoas que podem ter de esperar muito tempo, as pessoas vão vendo o tempo passar e ficam desesperadas nos tribunais de família e menores a mesma coisa, no tribunal criminal a mesma coisa. Quando alguém está do lado do assistente, ou seja, vemos sempre o lado do arguido, mas o queixoso, a vítima, o assistente, desespera e arrepela os cabelos, porque são anos e anos e anos sem que a justiça seja feita, portanto, o retrato da justiça efetivamente é um retrato negro. E sendo a justiça uma função de soberania do Estado, o Estado tem o império do Ius Puniendi, mais ninguém pode fazer justiça, só o Estado. Se o Estado falha, o que é que resta ao cidadão? Não pode ir fazer justiça pelas suas próprias mãos, portanto, o que é que há? Denegação de justiça. A pessoa fica cortada no seu direito de aceder à justiça. A imobilização que está a acontecer nos tribunais está a consubstanciar uma denegação de justiça. As pessoas ficam desesperadas porque não têm forma de resolver, porque são anos e anos e anos e custas judiciais altíssimas. O acesso ao direito para quem não tem possibilidades, nenhumas, nenhumas, portanto, as regras do acesso ao direito têm de ser alteradas. Perdi a conta às vezes que disse isso, mas o regulamento das custas tem de ser revisto e tem de se baixar de forma comportável, adequado a um país como o nosso, que é um país pobre. Basta ver o índice de pobreza. Portanto, esta justiça tem que acessível ao cidadão. O cidadão tem de poder aceder à justiça. Portanto, é nesta medida. Tive muita pena de traçar este quadro. Porque é que o tracei? Porque conheço os tribunais e sei que corresponde. E desafio as pessoas a falar com todas as pessoas, ou com a esmagadora maioria dos cidadãos que recorreram à justiça, e essas pessoas relatam-lhes, mesmo que tenham obtido ganho de causa, ou seja, mesmo que tenham ganho a ação, mostram-se, a maioria das vezes, insatisfeitas. A justiça não é para servir as pessoas que lá trabalham, a justiça é para servir as populações. É o acesso, é para fazer justiça, é para regular a paz social. A justiça existe para regular as tensões, para normatizar e para dar uma dimensão social à sociedade. E não se pode perder este norte, isto para mim é absolutamente claro. E o Estado tem-se demitido do exercício das suas funções, porque está em gestão. Já nem falo dos edifícios nem nada, falo da falta de decisões atempadas na vida das pessoas, com grande repercussão na vida das pessoas.
Tem havido muitos casos que envolvem política, que cruzam política com justiça e com comunicação social e há uma coisa que já falámos aqui hoje, que é um indivíduo é inocente até prova em contrário. Mas também podemos pensar que à luz atual é culpado mesmo que consiga provar a inocência, porque mesmo depois de absolvido acaba por ficar com uma aura em cima. Tivemos um caso agora recente de um primeiro-ministro que ainda não está resolvido. Temos outro na Madeira que envolve vários atores, seja na área da economia, seja no próprio governo regional. Já nos últimos dias com o novo governo há alguns casos com o ministro das infraestruturas e também agora uma assessora do governo. Estamos perante esta situação? Culpado mesmo com prova em contrário?
A pergunta que me coloca é extraordinariamente interessante, porque tenho dito muitas vezes que era importante haver uma reflexão, uma ponderação muito grande em termos de sociedade e em termos dos decisores sobre aquilo que se pretende efetivamente fazer. O que é, pergunto, ou onde é que fica o princípio da presunção de inocência? Qual é o poder? O poder é o poder que o Ministério Público também tem para afastar pessoas de ocupar determinados cargos públicos. Não estou a dizer que o Ministério Público o faça, que fique claro, o faça voluntariamente, que tenha sido essa a pretensão, mas a forma como está a ser entendido tem sido dessa maneira, ou seja, ninguém está livre de ter um processo criminal. Basta haver, por exemplo, uma denúncia criminal. Mas se temos uma denúncia anónima e a seguir perguntamos se fulano está a ser investigado e depois, se for replicado nos órgãos de comunicação social, essa pessoa fica com o estigma, porque aquilo que disse há bocado é bem verdade. A pessoa até pode ser, e conheço vários casos, como Miguel Macedo ou Azeredo Lopes, que foram absolvidos, mas em termos de senso comum, o que as pessoas pensam é que foram absolvidos porque são poderosos, porque não se provou, que não há fumo sem fogo. Ou seja, fica um estigma muito grande. E a absolvição não tem a mesma visibilidade que têm os pelourinhos da praça pública e isso é uma coisa que me incomoda. Portanto, acho que tem de ser feita uma ponderação muito grande, a saber os princípios da ética republicana, os princípios da transparência, os princípios também da mulher de César, que também aqui conta, ou seja, os governantes também têm de dar uma imagem. E, por isso, acho que é muito importante que tenhamos uma visão de seriedade e de escrutínio para o cidadão, mas temos de perceber se aquilo que está a acontecer é lícito. Ou seja, por exemplo, falou do caso da Operação Influencer, um primeiro-ministro com uma maioria absoluta, e estou aqui a falar e até sou insuspeita porque sou do PSD, mas o primeiro-ministro demitiu-se no âmbito de uma insurreição. Portanto, a investigação de que estaria a ser alvo, decorridos mais de cinco meses, não foi sequer chamado, não obstante ter requerido e as leis processuais também já o permitem, é outra das alterações que foram feitas na reforma de 2021, mas não foi chamado. E ouvi outro dia na televisão que ele gostaria de enquadrar e seria visto com muito bons olhos, até ir para a União Europeia, mas só o processo estivesse resolvido até junho. E isto frustra-me muito. Não pode haver poderes sem escrutínio. Não pode haver poderes em que as pessoas não percebam o que é que está ali. Tem sempre de haver uma prestação de contas. Essa prestação de contas tem de existir, portanto, temos de perceber o que é que está a acontecer, porque não se percebe. Repare, quando são dadas à estampa estas notícias, já para não falar na violação de segredo de Justiça, é suposto que a investigação esteja muito avançada e que esteja a ponto de se poder notificar a parte para se prestar a interrogatório. E se houver fortes indícios ser constituído arguido e depois, porque é a última parte do inquérito, são vistas as provas todas e depois é constituído arguido se houver fortes indícios. Não se pode, do meu ponto de vista, andar aí a apregoar que A, B ou C é suspeito, é arguido e depois não temos consequências a não ser queimar o bom nome. E, portanto, o que está a acontecer é que estamos a ver o nome das pessoas na praça pública, porque o que tem estado a acontecer tem sido uma autêntica morte civil de muitos cidadãos, e eu enquanto cidadã, enquanto advogada, repugno-me profundamente que isto esteja a acontecer, portanto, que alguém objeto de suspeita possa estar nesta situação sem que seja resolvido rapidamente. E há um tempo para a Justiça, a Sra. Procuradora-Geral da República referiu isso, só que o tempo da Justiça não pode ser o tempo para a justiça. O tempo para a justiça é o tempo de destruição da vida dos cidadãos, isso não é justiça, isso é tudo menos justiça, isto é prepotência, é arrogância. E não podemos aceitar, ou seja, tem de haver prestação de contas e as coisas têm de ser feitas de forma que o cidadão que está inocente veja rapidamente desfeitas e desvanecidas as suspeitas que sobre si impendem e que o cidadão que é culpado seja rapidamente submetido a julgamento. Sempre, sem preterição das garantias de defesa para que possa depois ser feita a justiça. Até porque, repare, estas pessoas têm família à volta. Imagino, todos somos pessoas, todos temos família, imagino o que é que os filhos, os maridos, as mulheres, os pais, sentem ao ver o bom nome referido dessa maneira e muitas vezes empolado. Estou a lembrar-me, por exemplo, do que aconteceu com a Dra. Patrícia Dantas, mas são casos em que as pessoas são envolvidas em coisas que depois nem correspondem à realidade. Portanto, a sua pergunta é o mais pertinente possível e lanço aqui um repto de fazer um programa onde se imponha uma reflexão e que se consiga perceber até onde se pode ir, até onde é que é legítimo e onde é que, efetivamente, se devem estabelecer linhas vermelhas para que o direito à honra, o bom nome das pessoas, possa subsistir e que as pessoas não estejam presas a um qualquer processo criminal que não ata nem desata. Porque se ele fosse célere, se isso resolvesse rapidamente, muito bem, agora que não ata nem desata, não, não pode haver uma espada intemporal em cima da cabeça.
Queria perceber como é que olha para o Parlamento atual e se está satisfeita com a maioria de direita e se conta ou não com aqueles 50 deputados do Chega para essa maioria de direita?
Olho com tristeza. E olho com tristeza porquê? Porque o PSD ganhou as eleições e fiquei felicíssima, obviamente, porque ao fim deste ciclo do PS no Governo entendo que não fizeram aquilo que se impunha, que tinham todas as condições para o fazer e que impõe-se virar a página. É preciso ter esperança, é preciso ter esperança no futuro, portanto, acho que o PSD consubstancia essa esperança. Mas quando vi a margem, porque ganhou, ficou sensivelmente 50 mil votos de diferença do PS, fico triste porque acho que com as atuais circunstâncias políticas que antecederam e que estiveram presentes na eleição das legislativas, era suposto que o PSD obtivesse um resultado muito mais robusto. Além de ir em coligação, portanto, tinha aqui também os votos do CDS e elegeu dois deputados do CDS e, de resto, mantém os 78 iguais ao do PS. Acho que o PS apesar de ter perdido muitos, se calhar regressou mais ou menos ao seu volume normal, porque tinha tido uma maioria absoluta anormal por circunstâncias diferentes nas anteriores eleições, mas desta vez tendo um governo implodido por dentro, com um primeiro-ministro, mal ou bem, mas agora falamos outra vez da perceção pública, que se demitiu por casos e casinhos, portanto, um desgaste terrível que o governo teve. Já perdi a conta às pessoas que saíram e entraram. O governo tinha todas as condições, tinha dinheiro, tinha o PRR, tinha maioria absoluta, tinha tudo para alavancar o país e nada fez e estas eleições decorrem exatamente nesta derrocada em que o cidadão se confrontou com o facto do PS não ter feito nada e o PSD, infelizmente, não conseguiu capitalizar estes votos para si. Vê-se numa situação em que está ali completamente trilhado no meio das várias forças políticas, em que por si só, sozinho, não vai a lado nenhum e, portanto, obriga a um jogo de cintura e a umas negociações muito contínuas, intensas e que não sei, enfim, vamos ver o futuro, o que é que vai acontecer e se vamos chegar a bom porto, porque me parece que está uma situação política muito instável em termos do Parlamento. Portanto, não gosto, claramente, não gosto desta configuração do Parlamento.
E deve abrir as portas ao Chega?
Sou uma moderada, sou uma social-democrata, acredito na política personalista, humanista, na social-democracia. Discordo de tudo o que seja extremo, os extremos não gosto. Acho que no equilíbrio, no bom senso, na sensatez, na moderação é que está o caminho e é essa a força que temos e ao Governo cabe conduzir um povo, conduzir uma nação, mesmo na forma de condução do povo, não é no exacerbar dos ódios, das desavenças, do apontar o que está mal de uma nação, não é no exacerbar de uma forma absolutamente exacerbada que se faz este caminho, não. E é perigoso, porque vemos o que é que está a acontecer lá fora com a extrema-direita. Também a história nos diz o que é que aconteceu com a extrema-esquerda. Portanto, no centro, acho que na social-democracia, que é a minha família, é aí que procuro que as soluções sejam encontradas.
Gostava de estar no Parlamento nesta altura?
Gostava de estar em determinados momentos. É paradoxal. Gostei muito de ser deputada, mas fui advogada a vida inteira, a minha vida é os tribunais onde estou diariamente, é o meu escritório. Saí da minha zona de conforto e vim para Lisboa, porque vivo em Coimbra, e aprendi todo, não o admirável mundo novo do Aldous Huxley, mas toda uma prática completamente diferente. Gostei muito. Apanhei duas legislaturas que foram interrompidas pelas razões que são conhecidas, sendo que a segunda o PS tinha maioria absoluta. Na primeira conseguimos fazer vários acordos e conseguir ter uma produção legislativa que foi muito importante, na segunda foi muito mais difícil, porque o PS tinha maioria absoluta e fazia exatamente aquilo que queria. Mas acho que há alturas, há debates que gostava de fazer porque é uma matéria que é importante, que me convoca o meu espírito de cidadania porque não sou uma pessoa de baixar os braços. Gosto de lutar por causas e também se calhar por isso é que sou advogada. Acho que é importante não nos remetermos à nossa zona de conforto, exprimirmos a nossa opinião, e cada vez mais hoje é difícil expressar uma opinião por causa das redes sociais e da turba, da chamada simpatia coletiva, das massas anónimas que sem dar a cara escrevem tudo e mais alguma coisa. Há debates que, sim senhora, gostava de fazer, há debates que nos convocam e que nos entusiasmam. Agora, acho que ser deputada não é uma profissão, portanto, está-se deputada e para mim é fundamental a independência económica. Isto vem a propósito de tudo, inclusive do livro que o doutor Passos Coelho apresentou, da questão das mulheres, a independência económica para mim é absolutamente primordial e por isso não podemos nunca estar dependentes da política e sou uma profissional liberal, ou seja, quando saí do Parlamento não tinha um emprego à minha espera. Tenho os meus clientes sendo profissional liberal e por isso foram estes anos, quase cinco anos, foi um esforço muito grande da minha parte e trabalhei muito, muito, muito na Assembleia da República e com muita alegria. Acho que saio satisfeita com o trabalho que fiz, podíamos sempre fazer mais e melhor, mas dentro daquelas circunstâncias acho que foi o possível. Mas há muita coisa, mudava também muitas regras, muitas coisas no Parlamento, há muitos debates que se calhar não deviam ser feitos no Plenário, devia haver mais trabalho de comissão onde se trabalhasse efetivamente as coisas do que irmos para o Plenário com declarações que já estão escritas e que não fazem mudar as opiniões. Acho que falta muitas vezes no debate profundo o conhecimento das matérias que se está a trabalhar. E isso é muito importante que seja feito e só é por norma é possível fazer nas comissões e nos grupos que trabalham e são trabalhos que são feitos.
Pretende continuar ativa na política e contribuir para o PSD?
Claro, estarei sempre disponível. Primeiro para ter uma colaboração cívica e de cidadania, porque acho que é importante, não nos devemos demitir de nos pronunciarmos e sobretudo se formos chamados a pronunciarmos, não é? Porque quando digo pronunciar não é propriamente estar ali nas redes sociais a falar de tudo o que apetece, porque acho que também deve haver um doseamento sensato relativamente a isso. Se me perguntarem a minha opinião dentro das áreas que domino e que conheço, obviamente que estarei disponível para colaborar, sentir-me-ia mal se assim não fosse. Portanto, acho que é um dever que temos para com a sociedade, participar na vida pública e isso devia ser muito imbuído nos jovens, desde a mais tenra infância, até com prevenção da corrupção. Saber o que é a vida pública e saber que a vida pública não é só entrar nas juventudes para depois virem até determinados lugares. Não, há que trabalhar, há que saber como é que as coisas funcionam para podermos participar e para podermos dar o contributo melhor de nós à sociedade. É assim que vejo a justiça, como é que poderei servir melhor a minha sociedade. Dentro deste espírito, obviamente que estarei sempre disponível para, dentro das minhas possibilidades, servir o meu país e servir a sociedade.
Surpreendeu-a as intervenções públicas recentes do Dr. Pedro Passos Coelho?
O Dr. Pedro Passos Coelho, de resto como ele disse, tem todo o direito de expressar a sua opinião. Posso discordar das opiniões de uma pessoa e discordo de muitas, como muitos discordaram das minhas. Portanto, acho que tem todo o direito de expressar a sua opinião e de falar, isto não há censura, e de falar quando muito bem entende. Portanto, a pergunta que me faz é no âmbito de um dever de lealdade para com o PSD, ou seja, quando se pergunta se alguém diz determinadas coisas e num determinado momento político, isto tem a ver sobretudo com o partido que está no governo e se essas declarações e esse tempo político, esse timing, podem ter repercussões no exercício da governação que está em curso. O Dr. Passos Coelho expressou bem as discordâncias que tem relativamente à atual direção do PSD e ao governo que está constituído e tem todo o direito de as fazer. Se me surpreendeu, não me surpreendeu, penso que vem muito na linha do que é a política do Dr. Passos Coelho.
Vem na linha ou nota uma evolução?
Nunca o tinha ouvido falar sobre estas questões da família e ele não escreveu nenhum texto. Presumo, quero presumir, que ele não subscreva de forma alguma o estatuto da mulher doméstica, não é? Portanto, acho que não pode um social-democrata, que sabendo que a igualdade entre os seres humanos, homem e mulher, são seres humanos absolutamente iguais, que tem sido uma luta que temos travado ao longo de séculos, que as conquistas que foram sendo feitas têm custado sangue, têm sido muito difíceis. Sabendo o esforço que todas as mulheres fazem para trabalhar, porque ainda estão muito oneradas para gerir as casas, gerir os filhos, virem agora quase como aquele estatuto do Bolsonaro, que até acho que tinham, se a memória não me falha, um ministério, uma coisa absolutamente extraordinária, por inacreditável, por aberrante, do lar, portanto, para a mulher doméstica. Foi uma coisa que considero um retrocesso civilizacional enorme. É evidente que as mulheres podem ficar em casa se assim quiserem, mas desaconselho vivamente que o façam. E agora aqui é a advogada a falar e vou dizer-lhe porquê. Perdi a conta aos divórcios que fiz em que as mulheres ficaram numa posição absolutamente secundária e menorizada porque não trabalhavam, ou seja, tinham estado a criar os filhos, cozinhavam, tratavam dos idosos. Claro que isto da mulher em casa resolve um problema que é do Estado, que são as creches e os lares de idosos. A mulher trata. Trata das crianças e trata dos idosos, só que não trata dela própria. E quando o marido se quiser divorciar, não só o marido tem um problema grande, porque voltamos aos divórcios antes de 2008 que eram divórcios de faca na liga, a expressão é esta, porque eram terríveis, porque teria sempre de se manter um nível de vida. Portanto, era mau, é mau para o homem e é muito mau para a mulher e é péssimo para os filhos. Portanto, isto não pode de maneira nenhuma acontecer. Ou seja, a mulher tem de ser absolutamente, tal como o homem, o ser humano tem de ser economicamente independente. E posso dizer assim que ficam aqui uns anos e trata dos filhos. Não é só essa questão, não se resolve com o subsídio que dá, porque há uma progressão na carreira, ou seja, a pessoa que está em casa depois acaba por ficar com um sacrifício muito grande. E louvo e presto uma homenagem terrível a todas as mulheres, porque a minha mãe esteve sempre em casa, a minha mãe nunca trabalhou fora de casa, presto uma homenagem, uma profunda homenagem, a todas as mulheres que se sacrificaram, que se sacrificaram em prol da família, mas o tempo mudou. Portanto, o tempo já não é este de maneira nenhuma, por isso, penso que o Dr. Pedro Passos Coelho não subscreverá, penso que foi o do Paulo Otero que disse que as mulheres tinham mais apetência para determinadas funções, penso que foi isso que disse, mas essa frase só me merece um sorriso sarcástico. E perguntava-lhe se é isso que pretenderia para uma filha dele e se um dia mais tarde visse uma filha dependente economicamente de um marido, um marido que até se podia dar ao luxo de ter outras terceiras pessoas por fora, porque a mulher não pode sequer discordar disso, porque quem trabalha e quem ganha e quem tem o poder económico, e agora não vou aqui chamar o partido comunista relativamente à força capitalista relativamente ao proletariado, mas é quase isso. Ou seja, a independência económica é absolutamente fundamental e as mulheres não podem nunca abdicar dela.
