É este ano que pela primeira vez em Portugal os criptoactivos vão ser taxados em sede de IRS, pelas mais valias que geram aos contribuintes.
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Os rendimentos de 2023, quando se preencher a declaração do IRS deste ano, é obrigatório que os investidores em criptoactivos incluam os valores das mais-valias. Deste modo termina um vazio legal e estas mais-valias são enquadradas por uma norma que recebeu o contributo da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas (APBC), presidida por Nuno Lima da Luz.
De acordo com o presidente da APBC “O que nós fizemos foi propor a nossa solução de tributação à Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais. A proposta foi acolhida, houve bastante abertura para perceber os nossos receios e as nossas considerações. A proposta foi aceite e, portanto, tornou-se Lei ao entrar no Orçamento do Estado do ano passado (2023). Portanto, todos os todas as mais valias calculadas durante o ano de 2023 vão ser tributadas no imposto declarado este ano (2024). O nosso racional era semelhante aquele regime que tínhamos para as ações, quando eram detidos por mais de 12 meses, também não se pagava mais-valias”, adianta Nuno Lima da Luz.
A principal criptomoeda existente, a BitCoin, atingiu esta semana um novo máximo de sempre, acima dos 69 mil dólares, um ativo que se apresenta volátil já que há três meses estava nos 16 mil dólares.
Apesar desta realidade Nuno Lima da Luz, compara a Bitcoin com o Ouro de nova geração. A Bitcoin, “considerado o Ouro 2.0 é uma evolução natural do ouro, portanto, é tudo aquilo que o ouro é, mas melhor, portanto, é uma evolução natural. É um Ouro que podemos de maneira completamente a sem necessitar de intermediários, fazer passar uma propriedade. De uma pessoa a para uma pessoa B”, defende.
Quanto às fraudes que envolvem criptomoedas, Nuno Lima da Luz defende que essas fraudes não envolvem diretamente a tecnologia até porque “também tivemos a Dona Branca. As pessoas vão à espera de dinheiro fácil ou de lucros fáceis e rápidos e de enriquecer da noite para o dia e como em tudo na vida, isso é muito complicado, portanto, sem trabalho, sem investigação, sem estudo, é difícil alguém enriquecer, a menos que tenha um golpe de sorte. E o que acontece é que há muita gente que se vai nessa ânsia desse enriquecimento rápido e se deixa depois levar por qualquer tipo de fraude”
Nuno Lima da Luz é presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas (APBC), desde julho de 2022. Formado em Direito, é associado como advogado na Quatrecasas, especializado nas áreas de novas tecnologias, onde se inclui blockchain e ativos virtuais.
A Bitcoin atingiu esta semana um novo máximo de sempre, para cima dos 69 mil dólares. A que é que se deve este fenómeno?
Deve-se ao facto de haver cada vez mais uma procura crescente sobre esto ativo em particular. Deve-se muito também ao facto de nos Estados Unidos terem sido aprovados e já estarem a ser comercializados estes produtos, os ETFs com Bitcoin, em mercado spot, algo muito ansiado por toda a indústria nesse ponto de vista. Não os mais puristas, obviamente, porque querem estar desligados deste mundo tradicional financeiro, mas muitos investidores, ou quem acredita neste tipo de propriedade digital, já esperava por este tipo de aumentos. Ou seja, tem havido um grande influxo de capitais para estes ETFs, que no fundo, aquilo funciona em regime de cash redemption, portanto, as pessoas metem dinheiro, o fundo compra as Bitcoins, guarda-as e as pessoas detêm parte. É um ETF normal, de qualquer tipo de commodity. Portanto, com esta comercialização deste tipo de produtos nos Estados Unidos, houve claramente uma procura ainda maior. E agora, por parte de pessoas menos ligadas à indústria em si, acabamos por ter outro tipo de instituições mais conservadoras a ter alguma exposição a este tipo de ativo.
No entanto, a moeda digital tem sido alvo de grande volatilidade. Em novembro de 2021 a Bitcoin estava abaixo dos 16 mil dólares, depois de em novembro de 2021 ter estado acima dos 67 mil dólares. Como é que se explica esta volatilidade?
Há várias razões. A primeira é que ainda não há muita gente que tenha este ativo. Portanto, não está suficientemente disperso. E não estando suficientemente disperso, criam-se estas situações, que às vezes podem parecer dispares, ou estas grandes flutuações de preço. Isso é uma das razões. Outra tem a ver com a própria lógica e funcionamento. Agora, com este tipo de ativo, temos aqui duas condicionantes, e com a aprovação dos ETFs também. Temos as pessoas que fazem auto-custódia do ativo e que o têm e guardam por si só. E depois temos estes ETFs que têm de comprar em nome de um terceiro, em nome do cliente final, deste tipo de produtos financeiros. E pode haver aqui depois alguma assimetria também desse ponto de vista. Portanto, há uma procura muito grande por estes fundos, que compram em grandes quantidades e detêm esse ativo em grandes quantidades. A maneira depois como vendem ou fazem esse redemption, essa troca de ativos, depois também vai variando. Não funciona, então, nos trâmites do mercado normal, dos mercados financeiros norte-americanos normais. A par e passo, temos também as pessoas que têm estes ativos ou têm um centralized exchange, uma bolsa centralizada, ou fazem auto-custódia e depois passam para esse tipo de plataformas centralizadas. Isto faz com que haja grandes flutuações de preço e possa haver uma volatilidade também maior.
Então é muito especulativo...
Não, qualquer bem que compremos hoje mais barato para vender amanhã se torna especulativo. Essa é a própria definição de especulação, não é? As pessoas mais fiéis a este ativo e que consideram Bitcoin como o melhor asset mundial em termos de propriedade para guardar a longo prazo, não veem isto desse ponto de vista puramente especulativo. Mas há pessoas que o veem. Como também há especulação em carros, em casas, qualquer bem serve para fazer especulação. Portanto, se compro hoje a um preço e tenho a intenção de o vender amanhã, mas se é mais caro, isso é a própria definição de especulação.
Os resultados de investimentos em Bitcoin justificam os novos ultramilionários, em parte. É uma das justificações para os novos ultramilionários, segundo dados da Wealth Report, um estudo realizado pela Knight Frank. Não teme que se crie uma perceção na sociedade de que este tipo de investimento é dinheiro fácil de ganhar?
Pode haver essa tendência, mas a verdade é que isto também comporta muito risco. Portanto, tão depressa é fácil ganhar como é fácil perder.
Então é uma espécie de casino?
Algumas coisas sim. Alguns ativos podem ser, porque não têm nenhuma base subjacente sólida, além desse caráter puramente especulativo ou até de brincadeira. Há uns tokens que se chamam até memecoins, que assentam só em ter figuras de Keynes ou Shiba Inu, Dogecoin, Pepcoin. Há muitos tokens. Temos tokens que realmente não têm nenhuma base sustentável ou sólida, mas depois temos milhares de projetos sólidos. Temos, por exemplo, Filecoin, temos Arweave, que basicamente são protocolos que servem para guardar informação de uma maneira descentralizada. E já nem falo na Ethereum, que depois serve como GSFI para pagar uma computação descentralizada a nível mundial, onde podemos ter o nosso software a correr por cima dessa rede. E depois temos, efetivamente Bitcoin, que muitas das vezes acho que fica aquém da própria definição de Bitcoin, mas muitas das vezes é considerado o ouro 2.0. Há uma evolução natural do ouro. Portanto, é tudo aquilo que o ouro é, mas melhor, é uma evolução natural. É um ouro que podemos, sem necessidade de intermediários, fazer passar uma propriedade de uma pessoa A para uma pessoa B.
Mas com maior volatilidade em termos de preço?
Sim, desse ponto de vista ainda não se atingiu esse caráter de moeda, mas também dificilmente será uma moeda nesse sentido. Apesar de já termos um país que adotou enquanto legal tender, não propriamente uma moeda soberana, mas legal tender, ou moeda de curso corrente, no sentido de que – e é a nossa definição do euro aqui, por força do Tratado de Funcionamento da União Europeia –, ninguém se pode recusar a receber Bitcoin como meio de pagamento para um determinado produto ou serviço. E El Salvador adotou. Há muita gente que tinha sido contra e que criticou, depois com esta volatilidade, lá está com esse aumento substancial de valor de cada bem, desse ativo. As pessoas agora têm tendência depois a usar um bocadinho.
Uma situação que quase levou o país à bancarrota…
Não foi por isso, obviamente, há várias teorias. A verdade é que depois também há uma afronta a muitos poderes instituídos, mas também não podemos ir pela parte política, obviamente. Mas quer dizer, sem fazer uma avaliação da governação de El Salvador ou desta presidência atual, o facto é que foi uma aposta que tem atraído também muita gente para ir lá viver, muitos nómadas digitais e muitos believers, muita gente que acredita neste tipo de ativo tem ido para lá viver. Enfim, o país, e não sou especialista em El Salvador nem na política nacional interna, mas acho que as coisas até têm corrido bem. Mas não é por aí. Ou seja, Bitcoin como moeda soberana, talvez não funcione para já porque era preciso haver muito mais adoção e o valor ser um bocadinho mais estável, desse ponto de vista. Mas depois também não podemos comparar Bitcoin às moedas que temos no modelo Keynesiano onde vivemos, que podemos imprimir aquilo que quisermos e depois trazendo o impacto inflacionista que as pessoas depois sofrem.
Falou ainda há pouco que uma das razões para esta inflação, para este valor mais inflacionado agora das Bitcoins, foi a autorização do regulador de mercados dos Estados Unidos, desde o início do ano, para os ETFs, que no fundo são uma espécie de fundos negociados em bolsa de Bitcoin. Explique melhor o que é que são os ETFs, o que são e o que é que na prática vai acontecer, o que é que mudou?
Queria só fazer uma correção antes. O ativo, a Bitcoin, não está inflacionado por definição e algoritmicamente isso é impossível mudar, a menos que façam outra parecida e já fizeram muitas sem sucesso. O bem em si é deflacionário, o algoritmo é deflacionário, portanto a tendência é essa. O valor não está inflacionado, o valor é aquele que o mercado e que a lei da oferta e da procura estabelece, portanto, não consigo concordar que está inflacionado. Tem muitos fatores externos que influenciam. Vale o que vale, vale o que as pessoas querem dar, vale o preço pelo qual as pessoas o querem vender.
É só de recordar, por exemplo, que em 2021, quando a Bitcoin alcançou o valor histórico que estava até esta data, tinha sido Elon Musk, em declarações, que também levou a uma grande subida naquela altura do valor da Bitcoin.
Sim, pode ser ou pode não ser, isto nunca se sabe. Não é por um mero tweet do Elon Musk que as coisas sobem de valor ou não, quer dizer, pode haver mais apetite, mas se Warren Buffett vier dizer que a Coca-Cola é bom investimento, obviamente também vai fazer influenciar o preço das ações da Coca-Cola. E digo Coca-Cola como qualquer outra empresa onde o Warren Buffett ou outro investidor invista, isto vale o que vale. Boas notícias atraem investimento, más notícias sobre determinado produto ou serviço ou empresa, enfim…
Mas isto só para esse ponto, em relação às ETFs, a terminologia é Exchange Traded Fund, basicamente a maneira de funcionar, e para ser muito conciso e fácil de perceber, basicamente compramos partes representativas do underlying asset, do ativo subjacente que é guardado. O que as pessoas fazem é que compram ações, ações ou partes ou unidades desse fundo, e com esse dinheiro, esse fundo, o que faz é adquirir Bitcoin ou através de mercados OTC, over the counter, ou mesmo em exchanges, guarda essa Bitcoin e dá uma parte representativa desse fundo à pessoa. A pessoa guarda aquilo, tem exposição ao ativo, sem o comprar diretamente e sem ter de fazer a custódia por si só. O que pode ser às vezes motivo também de muita gente perder, e já se perdeu muita Bitcoin, dos 21 milhões de Bitcoins que pode haver no máximo, algoritmicamente, grande parte já foi perdida e nunca mais vai ser recuperada, certamente. Portanto, ajuda também a que o preço possa subir, lá está, porque se torna mais escasso. Mas basicamente é isso, o ETF é isso. Agora, a grande vantagem que trouxe é que, para já, abriu as portas a todo o mercado que havia nos Estados Unidos, que até aqui estava vedado porque não tinha nenhum produto que fosse legalmente aceite ou que fosse sólido desse ponto de vista. Agora temos a SEC, que é a nossa CMVM lá do sítio, a autorizar este tipo de produtos, e, diga-se com alguma relutância e após decisões judiciais, em contrário, mas ainda assim foi três para dois em termos de votação e com votos de vencido à mistura e tudo. Mas a verdade é que aceitou, também era difícil ir contra a BlackRock.
Aceitou com cautelas, não é? Dizendo aos investidores que fiquem também cautelosos em relação aos muitos investidores, em relação aos muitos riscos associados à Bitcoin.
Lendo o prospeto percebe-se que tem algumas situações. Lá está, isto é um produto tecnológico, nasce digital e morre digital, portanto, tem as suas cautelas que é necessário que as pessoas tenham noção, mas não quer dizer que haja problemas. A rede tem mostrado bastante resistência desde que foi lançada.
Estamos a falar dos Estados Unidos, mas em Portugal como é que se tem portado o regulador? A CMVM e o Banco de Portugal são dois reguladores. Como é que eles se têm portado nesta questão deste mercado? Não no caso dos ETFs, que ainda não chegaram à Europa, mas no caso da questão da regulação da própria moeda digital?
Por acaso queria corrigir esse ponto também, porque como não é muito noticiado o nosso mercado europeu comparado com o dos Estados Unidos é relativamente pequeno, portanto, é diferente. As nossas empresas mais valiosas nem chegam sequer ao top 5 das empresas mais valiosas do mundo. Temos a Novo Nordisk, que acho que é a mais valiosa da União Europeia, e agora fruto também de um grande avanço que teve por causa de um medicamento específico, mas a verdade é que nem está no top 10, acho eu, das empresas mais valiosas do mundo em termos de capitalização de mercado. Bom, isto para explicar aqui o contexto europeu. Mas na verdade já temos ETPs, Exchange Tradeable Products e até ETFs de Bitcoin na Europa. Temos um da Jacobi, por exemplo. Portanto já temos isso, e da 21Shares também, já temos esse tipo de produtos há muito tempo, só que os americanos não têm exposição a este tipo de produtos, portanto, têm de ter exposição aos produtos que são comercializados dentro dos Estados Unidos. E era esse o elemento que faltava, porque toda a gente sabe que no mundo inteiro o grande capital está nos Estados Unidos, portanto, era este o elemento que faltava.
Como é que se têm portado os reguladores cá? A nossa CMVM, do conhecimento que tenho, é muito aberta a estas novas tecnologias e a estes novos mercados. O Banco de Portugal sempre um bocadinho mais cauteloso, se bem que são jurisdições completamente diferentes, portanto a CMVM tem um pelouro para instrumentos financeiros, o Banco de Portugal mais do ponto de vista de estabilidade monetária e mais do ponto de vista da moeda efetivamente, são coisas um bocadinho distintas. Mas têm tido uma abertura e bastante abertura nestes temas também. Agora, ao contrário dos Estados Unidos, lá a definição do que é um instrumento financeiro é bastante diferente também da nossa. Na União Europeia está tipificado o que são instrumentos financeiros, nos Estados Unidos não, têm de passar aqueles que vocês já devem conhecer, o AUE Test, aquele teste que vem de uma decisão judicial já dos anos 30, nos Estados Unidos. Ou seja, o conceito de instrumento financeiro ou de contrato de investimento acaba por ser muito disperso, ou muito vago, e é um bocado um catch-all definition, portanto cabe lá tudo. E a grande discussão até aqui tem sido essa, se os criptoactivos são instrumentos financeiros ou são securities desse ponto de vista, e a SEC tem andado a batalhar nisso, tendo tido algumas decisões judiciais favoráveis, outras menos favoráveis. E esta direção atual da SEC tem sofrido alguns reveses nesse campo.
Mas a verdade é que, para voltar aqui, porque dá para falar de muitas coisas e demos muitas voltas, tenho a ideia, e porque trabalho também muito nestes temas diretamente com os reguladores cá em Portugal, sei que têm uma abordagem calculosa, mas ao mesmo tempo acolhem muito bem estas novas iniciativas. E a própria União Europeia, com o regulamento dos mercados em criptoactivos, que acaba por ser uma espécie de transposição ou de um copy-paste da diretiva dos mercados financeiros, pelo menos na parte de funcionamento, nas obrigações que têm as empresas que trabalham nesta área, que operam este tipo de produtos em contexto de mercado. Portanto, esse regulamento também vai trazer aqui alguma clarividência e clarificar algumas normas e, no fundo, estabelecer como uma área legitimada, vamos dizer assim, uma área completamente legitimada esta área que trabalha com criptoactivos.
E, sei que a CMVM é muito aberta à inovação tecnológica, a novas ideias, a novos produtos e o que interessa é promover o mercado e criar condições de mercado, sempre numa lógica também de proteger um bocadinho o consumidor final. Mas proteger não no sentido de o impedir de fazer investimentos, mas esclarecê-lo, ou permitir que esteja esclarecido dos investimentos que faz. E é isso que faz falta, penso eu.
Tem havido até agora uma espécie de vazio em relação à tributação dos rendimentos provenientes de criptoactivos. Vai avançar este ano essa tributação. A Autoridade Tributária está preparada para arrecadar as mais-valias com ativos digitais?
Não sei se estão ainda devidamente preparados, mas também não é por falta de iniciativa das associações aqui em Portugal. Queria só clarificar e fazer também essa nota. Muito recentemente, e isto começou a ser discutido no seio da Autoridade Tributária a pedido da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, uma maneira de tributar este tipo de ativos, que até então parecia haver uma espécie de um vazio legal. É discutível se havia ou não de facto, mas parecia haver um vazio legal neste campo. E nós, a PBC, o Instituto New Economy e a Aliança Blockchain, decidimos juntar-nos e criar a FACE, a Federação das Associações de Criptoeconomia em Portugal, e estabelecer esse aponto com a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais e dizer, meus amigos, calma, temos aqui uma grande comunidade que trabalha nestes temas, que vive puramente de trabalhar nestes temas e trabalhar em projetos relacionados com criptoativos e tudo mais. Isto é uma indústria e é uma indústria que está a crescer organicamente em Portugal. Portanto, se vamos caminhar para a proposta que a Autoridade Tributária avançou, isto vai matar o ecossistema em Portugal e vamos perder toda essa riqueza. Riqueza no seu sentido mais amplo, das pessoas que cá vivem, do negócio que geram, dos empregos que dão. Portanto, o que fizemos foi propor a nossa solução de tributação à Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais. Foi acolhida, tivemos várias reuniões, discutimos bastante o tema, explicámos, houve bastante abertura para perceber os nossos receios e as nossas considerações. A proposta foi muito bem aceite e, portanto, tornou-se lei, entrou na Lei do Orçamento do Estado do ano passado. Portanto, todas as mais-valias calculadas durante este ano ou durante o ano transato de 2023.
Ou seja, a primeira vez que o Estado vai receber mais-valias vai ser este ano?
Exatamente. As que forem, porque as pessoas podem simplesmente ter obtido mais-valias por ativos que já tinham há mais de um ano e aí não há mais-valia, o que é bastante bom, e é um bocado semelhante – e foi essa a nossa ideia também –, àquele regime que tínhamos para as ações, para os valores mobiliários, quando eram detidos por mais de 12 meses também não se pagava mais-valia.
Não há retroatividade em relação à recolha dessas mais-valias para ativos anteriores?
Não, a lei tributária, desse ponto de vista, não é retroativa. Portanto, quem tinha tokens há mais de um ano, por exemplo, imaginemos que eu tinha comprado bitcoin em 2010 e agora queria vender tudo. Então, não pagaria, não havia aí nenhuma mais-valia subjacente. Portanto, acabou por ser muito bom. A verdade é que o ano passado o mercado não estava assim tão interessante para fazer esse tipo de vendas ou realizar qualquer mais-valia. Do ponto de vista operacional ou técnico, ainda aguardamos alguns esclarecimentos e já propusemos, enquanto FACE e também enquanto Federação, essa linha de diálogo para tentar esclarecer aqui maneiras de efetivar.
E os contribuintes, aqueles que compraram ou negociaram bitcoins apenas por experiência e que não estão, de facto, ainda cientes das implicações que têm e de que, no fundo, têm de declarar este rendimento ou estas mais-valias, acha que vai gerar aqui alguma confusão?
Diria que sim, mas é para isso que existem os fiscalistas e contabilistas, que sugeria consultarem antes de fazer qualquer tipo de submissão das declarações. Consultem um fiscalista e tentem perceber como é que isso funciona. Como lhe disse, estamos a tentar estabelecer essa linha de diálogo com o Governo, ainda que saibamos que no domingo as coisas podem mudar de figura. Mas já nos mostrámos dispostos, porque há muita coisa que se mantém, não é mudo ao Governo, mas as estruturas intermédias, as direções, os organismos públicos, instituições públicas, mantêm-se. Portanto, queríamos mesmo perceber, porque os formulários já saíram, mas ainda há bastantes dúvidas na indústria de como é que se faz esse reporte e queríamos esclarecer, nem que fosse estabelecer um FAQ, um Frequently Asked Questions, que a própria AT podia libertar ou publicar, para se perceber um bocadinho como é que funciona, porque é uma nova experiência para a AT também.
Olhando para o impacto ambiental associado à atividade de mineração, concorda com medidas de penalização desta atividade, nomeadamente em sede fiscal?
Não de todo. Aliás, não concordo com nenhuma medida, até porque há centenas de estudos onde referem o efeito positivo ou benéfico que a mineração de Bitcoin tem, não só na ajuda no balanceamento de rede. O BCE há pouco tempo fez um tweet sobre Bitcoin, a dizer que Bitcoin não era grande coisa e tudo mais e agora, como sabem, há os community notes. E nesse community note que foi apresentado pelos internautas, pelos utilizadores do Twitter, que agora se chama X, foram fazer fact checking a esse tweet e a essa análise que o BCE fez, e entre essas factualidades encontram-se vários factos, vários estudos sobre o impacto positivo que tem, o impacto benéfico que tem a mineração de Bitcoin. Portanto, não concordo de todo que deve haver sequer uma penalização ou que se considere a mineração de Bitcoin como tendo em si impacto negativo, e não terá mais certamente que a utilização agora de GPUs para utilizar nos algoritmos de inteligência artificial, que também já se fala muito nisso, na água que vai gastar e tudo mais. Mas agora vivemos esses tempos, não é? Qualquer coisa tem impacto ambiental.
Em que ponto é que está a aplicação do MICA, que são os mercados de ativos criptográficos, isto na tradução portuguesa de Markets in Cryptoassets, que tem sido um longo processo legislativo, comunitário, para trazer mais transparência e segurança para os investidores neste ecossistema das criptomoedas na zona euro. Em que ponto é que está?
Portanto, o regulamento de mercados em criptoativos já está em vigor. Está agora num hiato de adaptação, não só a nível de cada um dos Estados-membros, que precisa ter uma lei de execução para definir quantidades é que vão ser competentes para fazer essa relação à supervisão. Também depois a parte substantiva relativamente às coimas e multas associadas, portanto, ao elemento sancionatório do próprio regulamento. A verdade é que o regulamento já está em vigor. Só se tornará aplicável, ou seja, é faseado. Torna-se aplicável agora em final de junho a quem queira ser um emitente das chamadas stablecoins ou asset reference tokens, portanto, tokens referenciados a ativos ou tokens referenciados a uma moeda estável, uma moeda fiduciária, neste caso.
E o que é um token?
Um token é uma representação digital de valor. Basicamente é essa a definição, que pode ser transacionada, numa rede ou na internet. Portanto, acaba por ser essa a definição que está no MICA. Um token pode ser muitas coisas. Pode ser um non-fungible token, um token não fungível, que representa, ou seja, o próprio nome indica, não tem esse cariz de fungibilidade, como tem um token de bitcoin, por exemplo, ou de ethereum. Um token pode assumir todas as realidades que queiramos, porque basicamente é uma representação digital de valor e essa representação ou se esgota em si mesma, que é o caso de bitcoin, ou então representa um ativo subjacente. Mas acaba por ser isso. É uma maneira de conservarmos ou de representarmos valor ou um direito sobre algo, de uma maneira digital, e depois transacionada numa determinada blockchain ou numa rede, numa cadeia de blocos. Acaba por ser essa a definição de token. Mas só para terminar a pergunta que me tinha colocado, portanto, para essas entidades que queiram ser emitentes desse tipo de ativos, torna-se aplicável já agora em junho, ou seja, as medidas de supervisão e as obrigações já vão ser verificáveis a partir de 1 de julho, vá. Portanto, quem não cumprir pode ser sancionado. E para os demais operadores de mercado, para todo o resto das obrigações, torna-se aplicável no dia 1 de janeiro de 2025. Depois há aqui nuances. Pode haver aqui períodos onde quem já está registado ao abrigo da lei de branqueamento de capitais pode depois ter aqui um período chamado grandfathering, ou seja, um período de carência onde pode continuar a operar ainda que não seja ao abrigo do regulamento. Mas há muita coisa ainda por esclarecer a nível dos Estados-membros. Esperamos que Portugal, até ao final do ano, lance a sua lei de execução e que permita esclarecer onde é que quem se quiser registar enquanto operador de mercado, enquanto cryptoasset service provider ou prestador de serviços em criptoativos, como é que o faz e em que moldes.
Apesar de isso ainda não estar consagrado, o Banco de Portugal já deixou claro no ano passado em diferentes avisos, que aqueles que prestam serviços de pagamento ou emitem moeda eletrónica realizam serviços que não são regulados e supervisionados e que não beneficiam da proteção dos utilizadores de serviços de pagamentos. Estamos aqui perante um mercado de moeda paralelo ao dinheiro soberano? O mercado dos criptoativos?
Não, porque moeda soberana está definida. Ou seja, não se pode comparar este tipo de moedas às moedas normais que as pessoas usam. Como disse, há vários tokens, há dezenas de milhares de tokens diferentes. Uns não têm mais nenhum propósito do que puramente esse carácter especulativo, outros servem, os chamados tokens utilitários, servem para usarmos como fichas na Feira Popular. Ou seja, troco os meus euros ou dólares por aquelas fichas da Feira Popular e depois uso para gastar como quiser nas diversões que há na Feira Popular ou pontos de uma rede de supermercados. Enfim, tem essa componente. O token está definido para ser usado dessa maneira, como pagamento para um determinado produto ou serviço que alguém tenha definido. Claro está, posso comprá-lo e achar que aquilo vai ser utilizado por centenas de milhares de pessoas e nunca utilizo aquele produto ou serviço, mas depois aquilo tem um mercado secundário, porque tenho de o comprar de qualquer maneira. E posso guardá-lo puramente com esse fator especulativo. Não quer dizer que esse seja o principal foco da criação do token.
Aí estamos a falar quer de sapatilhas ou de arte.
Qualquer coisa. Por exemplo, aquelas plataformas que guardam ficheiros ou informação descentralizada, aquilo pode ter um token que uso para aceder ao serviço. Só que aquele token depois é vendido no mercado, numa Binance, numa Coinbase, numa Kraken, e posso adquirir aquilo por lá, porque há alguém que tem aquele token e que me quer vender a um determinado preço. E assim abre todo o mercado secundário. Procura e oferta. Mas aquilo funciona puramente como uma feira da ladra de tokens onde as pessoas compram e vendem de uma maneira algo livre. Agora, lá está, cumprindo a legislação de anti-money laundering para prevenção de branqueamento de capitais e tudo mais, as pessoas identificam se têm uma conta. Mas depois compro e vendo aquilo que quiser. E se quiser, uso esses tokens num determinado produto ou serviço.
Mas essa liberdade, essa feira da ladra, não potencia um mercado de fraude?
Em que sentido? Mais do que a moeda fiduciária, dificilmente. Quer dizer, a maior parte de fraude, de evasão fiscal ou de compra de coisas ilícitas é feita em grande escala com euros e com dólares. Não vejo as mesmas questões a ser colocadas desse ponto de vista. Isto é uma franja muito, muito pequena. E há vários estudos sobre isso. É uma franja muito, muito pequena da utilização deste tipo de ativos para fins ilícitos, apesar de ser outra pedra de arremesso também bastante utilizada. Mas depois os dados e a factualidade comprovam exatamente o contrário.
À Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas chegam muitas queixas de pessoas que foram burladas, que foram enganadas, que se sentem defraudadas?
Sim, infelizmente sim. Mas lá está, mais uma vez, não por nada que esteja diretamente relacionado com a tecnologia ou este tipo de ativo. Como sabem existem muitas burlas, sempre houve burlas na sociedade, desde que haja uma assimetria de informação. Há alguém que sabe mais sobre um tema, está mal-intencionado e comete esse crime. Tanto que o crime de burla está tipificado, pelo menos no nosso código penal, desde os anos 80. E não havia sequer internet nos anos 80.
Portanto, não é uma coisa que esteja aqui reduzida ao mundo dos criptoativos. Infelizmente, há muita gente que é defraudada. Que é defraudada por criminosos e nós tentamos ajudar dentro do possível.
Mas é o chamado conto vigário…
Também tivemos a dona branca, também era um conto vigário. As pessoas vão à espera de dinheiro fácil ou de lucros fáceis e rápidos e de enriquecer da noite para o dia. E comem tudo na vida e isso é muito complicado. Portanto, sem trabalho, sem investigação, sem estudo, é difícil alguém enriquecer. A menos que tenha um golpe de sorte. E o que acontece é que há muita gente que vai nessa ânsia desse enriquecimento rápido e se deixa depois de levar por qualquer tipo de fraude. Mas, enfim, não é nada que possa dizer que está diretamente ligado a este tipo de realidades. A verdade é que é um tema que as pessoas veem nas notícias. Quando a Bitcoin está em valores de máxima, torna-se apetecível e os jornais abrem e grandes parangonas e os meios de comunicação social falam todos do ativo. Quando está em baixa, só segue. Não serve para fraudes ou para coisas esquisitas. As pessoas vão atrás disto e depois esperam enriquecer também de uma maneira rápida. Mas isso nem com este tipo de ativos, nem com outros.
Os provedores de serviços de ativos virtuais queixam-se da dificuldade na abertura de contas nos bancos portugueses. Temos uma banca tradicional que não é cripto-amiga, por assim dizer?
Posso dizer que sim, mas também não é muito amiga, diga-se de passagem, do consumidor tradicional. Acho que tem de se revitalizar e tem de se digitalizar e adaptar aqui aos novos mundos e ao novo perfil de consumidor final. Temos muita coisa que ainda é feita de uma maneira demasiado burocrática. Temos muita pressão das fintechs que acabam por ser muito mais ágeis na maneira como operam este negócio da banca tradicional. Acho que tem de haver essa adaptação. Em relação aos cripto-ativos, tem sido algo que a associação tem manifestado o seu desconforto, obviamente. Porque, lá está, temos uma série de prestadores de serviços nesta área que estão registados junto do Banco de Portugal, que acaba por supervisionar depois a área da banca comercial. E a verdade é que atualmente, até algum prestador desse género que esteja registado queira abrir uma conta junto a um banco português, nem que seja para pagar as utilities, para pagar a água, a luz, o papel que usa no escritório, para pagar salários, depois vê dificuldades porque depois os departamentos de compliance levantam algumas questões. Apesar de ser uma área regulada, portanto, as mesmas obrigações que um prestador de serviços dessa área tem em termos de prevenção de branqueamento de capitais, têm as mesmas que tem um banco. Ainda que depois tenha, se calhar, um resultado de negócio ou uma operação líquida bastante inferior. Portanto, têm de ter os mesmos custos, têm de ter as mesmas obrigações. Não se percebe essa disparidade ainda, mas é algo que temos de solucionar.
Tinha dito que, em relação à Bitcoin, muitas delas se perderam e no caso da Ethereum aconteceu exatamente a mesma coisa, em que mil milhões de euros nesta moeda digital foram completamente perdidos devido a erros de digitação, erros de utilização, contratos com bugs e muito mais. Estima-se que represente cerca de 0,5% de toda a oferta em circulação. Estas perdas criam aqui uma elevada espécie de exposição à perceção de risco?
Posso dizer que sim, ou seja, concordo em certa medida. Este novo tipo de ativos importa, se quisermos essa responsabilização ou autorresponsabilização, se fizermos nós a nossa custódia desses ativos, e traz um novo paradigma desse ponto de vista. Portanto, a descentralização, por um lado, é boa porque não precisamos de intermediários, conseguimos comprar e vender Bitcoin em mercados peer-to-peer, sem sequer precisar de uma bolsa centralizada para o fazer e sem ter de passar por aquele crivo do IML e tudo mais. Portanto, como se vendesse um par de ténis na rua a alguém que me pagasse por eles. Portanto, desse ponto de vista, não há problema. Mas depois tem essa lógica também, temos de ter cuidado com a maneira como guardamos esses ativos, se usamos o modo como preservamos a nossa chave privada que nos dá acesso, ou que nos autoriza às transações. Enfim, pode comportar esse risco elevado, mas também temos muitos operadores. Podemos guardar em bancos já, bancos já prestam esse tipo de serviço de custódia, inclusivamente em Portugal. As pessoas que não queiram ter essa exposição ao risco podem continuar a usar os mecanismos tradicionais para guarda de valores. Portanto, não é algo que seja problemático. E agora com os ETFs é outro exemplo, uma maneira de estar exposto e de ter, ainda que indiretamente, o ativo, sem o deter, na realidade.
Ou seja, sem poder pôr e dispor dele de uma maneira quase imediata. Mas acho que sim, pode comportar um bocadinho o risco, mas também responsabilizar as pessoas e dar-lhes essa literacia para terem noção daquilo que têm e guardarem bem a sua propriedade.