Tem 75 anos, nasceu sem braços e sem mãos, mas pinta desde a adolescência. Casou, ficou viúva há 11 anos, vive sozinha numa casa que não foi adaptada e não tem ajudas de ninguém. Nem quer. "Xailinho e cadeira? Nem pensar!" Porque "querer é poder", é a mensagem que faz questão de transmitir
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Maria de Lurdes Oliveira pinta com o pé. Numa manhã fria de novembro, levou a sua arte à Escola Básica 2,3 Miguel Torga, no Casal de São Brás, na Amadora. Perante os olhares espantados e curiosos de alunos do 8.º ano, sentados no chão, fez nascer do seu pé esquerdo, uma pequena hortênsia, que foi crescendo entre tintas, pincéis e muitas perguntas.
"Como é que pendura a roupa?", "como é que toma banho?", "como faz para beber?", "e para comer? como usa a faca e o garfo?", são apenas alguns exemplos.
Um traz uma pequena chávena, que Maria de Lurdes pendura no polegar do pé e prende com os outros dedos. É assim que bebe e, garante, "não cai". Aliás, foi "muito pouca" a loiça que partiu ao longo da vida. A maioria caiu do armário, ri-se a pintora.
Outro aparece com uma faca e um garfo. "Ver para crer." Sem hesitar, Maria de Lurdes prende um no pé direito, o outro no esquerdo. E, depois, é cortar, como qual pessoa dita normal. Normal, mas uma verdadeira "contorcionista", com "muita flexibilidade" em todo o corpo.
À medida que a vergonha cai e o à-vontade encurta distâncias, as perguntas de alunos e também de professores, ficam mais difíceis. "Qual foi o maior desafio que conseguiu ultrapassar?", quer saber uma das professoras. A artista hesita. "Agora essa foi difícil..." Faz-se silêncio por uns segundos e depois a resposta firme: "foi viver sozinha", depois da morte do marido. Recorda a chegada a casa, depois do funeral: "Encostei-me à porta e pensei: e agora, meu Deus?... Mas ainda cá estou. Aguentei."
À medida que fala, os pés gesticulam, quais verdadeiras mãos de um "comum mortal". E recorda o dia em que, após uma queda, teve de fazer um raio-x, pensando que tinha partido o pé. Um exame que acabou por ficar para o médico, que quis levá-lo para um congresso. "Isto não é um pé, é uma mão", afirmou o clínico.
"O mundo só é bonito pela diferença"
A campainha toca para o intervalo e, com ela, a "assistência" desfaz-se. Mas há quem chegue agora e se anuncie maravilhada. "Como consegue trabalhar assim?"
"É uma arte que eu amo!!!". Raíza tem 12 anos e os olhos brilham, ao ver como pinta Maria de Lurdes. A pintora agradece e sublinha a diversidade que faz o "mundo bonito", mas que "as pessoas não entendem".
Ao lado, há quem pense sobre aquilo que acabou de ver e ouvir. É o caso de Bruna Gomes. Aos 13 anos, considera importante este tipo de iniciativas na escola, porque "nos ajuda caso alguma coisa aconteça" e porque faz pensar "em como tratamos os outros".
De sorriso fácil, Luis Mizael, da mesma idade, anda numa cadeira de rodas. Nasceu com espinha bífida, um problema congénito da coluna vertebral, que o impede de andar de pé, "como vocês". Para ele, Maria de Lurdes, a pintora sem braços, é uma espécie de inspiração: "ela não se deixou cair (...) é uma pessoa que posso levar para a vida", quando "estiver mais em baixo".
São lições de vida que Fátima Cristovinho, responsável pela Educação Especial, gostaria que todos os alunos guardassem. Especialmente aqueles "que se vão abaixo, que estão desmotivados, que, muitas vezes, não dão o seu melhor" por razões mais ou menos justificadas. Para esta professora, o exemplo de Maria de Lurdes mostra que "temos que lutar, temos que insistir, temos que tentar várias vezes, porque vamos conseguir".
APBP - Associação de Artistas Pintores com a Boca e com o Pé
Maria de Lurdes Oliveira é apenas uma entre os cerca de 800 pintores que, em mais de 50 países de todo o mundo, fazem a Associação de Artistas Pintores com a Boca e com o Pé. A associação nasceu na Alemanha do pós-guerra, nos idos de 1950, por iniciativa de um artista paraplégico.
Em Portugal, no Natal e também na primavera, estes artistas costumam fazer chegar postais a casa de muitos portugueses. Postais que reproduzem pinturas originais destes artistas, pintadas com a boca ou com o pé.
São "amostras" enviadas por correio tradicional e que têm por objetivo "angariar" novos clientes. Quem quiser paga um mínimo de 5 euros pelos postais, preenche uma espécie de formulário com os dados pessoais, sinal de que quer apoiar a associação. A partir daí, torna-se "cliente" e pode encomendar muito mais coisas: calendários, blocos de notas, papel de embrulho e uma série de outros produtos.
Mas porquê o correio tradicional na "era do digital"? Margarida Martins, responsável pela associação em Portugal, explica que ainda acreditam que "é muito diferente ter na mão o papel físico". Embora a maioria não os use para desejar as boas festas.
Em alturas como o Natal, multiplicam-se os pedidos para demonstrações públicas, em escolas, por exemplo. Há muito quem prefira "ver para crer" que há mesmo quem não precise de mãos para pintar, nem sequer para fazer uma vida totalmente normal.
E, entretanto, a hortênsia "nascida" do pé esquerdo de Maria de Lurdes já se vê no papel branco ali mesmo em frente, preso no cavalete.