"O Irão é tratado como pária pelos EUA, mas à Arábia Saudita, onde está o vosso adorável Cristiano Ronaldo, fazem vista grossa"
Foi investigadora da SOAS em Londres e agora é da London School of Economics (LSE). Ghoncheh Tazmini investiga sobre temas relacionados com o Irão, nomeadamente o alinhamento iraniano-russo. Autora de vários livros, vive atualmente em Portugal e veio aos estúdios da TSF para uma entrevista exclusiva
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Como encara estas conversações entre os EUA e o Irão?
Vejo-as de uma forma muito positiva, mas, como é óbvio, procedo com cautela, tal como o Ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano também declarou. Mas, de um modo geral, penso que se trata de um quebra-gelo que há muito se impunha.
É muito provável que um dos factores que fez avançar estas conversações, ou estas negociações, tenha sido a boa relação entre a atual administração dos EUA, Donald Trump, e Vladimir Putin. Isso significa que, de alguma forma, os russos aproximam os americanos dos iranianos. Se for esse o caso, é realmente impressionante, porque, como diz no seu livro, foi o facto de a primeira administração Trump ter abandonado o JCPOA (Plano de Ação Conjunto Global, um acordo internacional firmado em 2015, entre o Irão e o P5+1 (China, França, Alemanha, Rússia, Reino Unidos e Estados Unidos) que empurrou o Irão para os braços da Rússia e da China...
Sem dúvida. O Irão não teve outra escolha que não fosse virar para leste e promover alianças regionais, não diria alianças, mas colaborações, sejam elas sociais, económicas ou de segurança. Sem dúvida que a relação com a Rússia se fortaleceu.
Mas foi em grande parte por ter sido deixado de lado pelo Ocidente, com a porta completamente fechada, especialmente depois das outras tentativas de ressuscitar o que restava do acordo.
Porque nos primeiros momentos, houve uma espécie de solidariedade até certo ponto, as potências europeias que assinaram o acordo com o Irão, mantiveram-se fiéis ao JCPOA…
Tentaram adotar, por exemplo, um mecanismo de pagamento chamado Instax. Tentaram continuar as conversações em Viena, para trás e para a frente, até, penso eu, 2022, altura em que ainda havia discussões em curso. E depois, simplesmente, não houve mais esperança. Depois o Ocidente, o chamado Ocidente político, envolveu-se na guerra da Ucrânia. E isso deu um enorme impulso à relação entre o Irão e a Rússia. E essa tem sido a orientação até agora. E agora estamos numa encruzilhada, onde não acredito em nada, não haverá uma mudança de jogo em particular, não diria que o Irão vai de repente correr de volta para os braços do Ocidente. Mas penso que, com estas negociações, se trata de uma pequena janela que pode trazer muitos benefícios para ambas as partes.
Permita-me que volte um pouco mais ao passado antes de abordar as perspectivas actuais. A dada altura, o Presidente Joe Biden quis reavivar o acordo nuclear. Mas o que é que correu mal?
Penso que não conseguiram chegar a um acordo sobre os aspectos técnicos. O Irão não cedeu em certos princípios e queria que o acordo nuclear fosse sempre uma questão de princípio. Também queriam o reconhecimento de que tinham cumprido o que quer que fosse, em termos de verificação, de vigilância, e que estavam a marcar a sua posição.
Teerão queria um compromisso político do Ocidente de que o acordo se manteria, mesmo que houvesse uma mudança política nos Estados Unidos.
Sim, claro, porque tem de ser um acordo que sobreviva ao mandato presidencial. E também um acordo que não possa ser rasgado tão facilmente, o que é realmente o cerne da questão.
Agora, é uma questão de confiança. É uma questão de, se o Irão ceder, que garantias terá? E suspeito que, quando entrarem nos pormenores técnicos do novo acordo, que se espera que seja o mais importante, irão sublinhar isso, esse será um dos principais pontos de fricção.
No seu livro de 2023, tenta realçar os aspectos que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia podem trazer para as relações entre o Irão e o Ocidente. E também mencionou que queria dar algumas luzes sobre essa parceria estratégica. A minha pergunta é precisamente esta: a parceria com a Rússia e com a China é realmente estratégica? Ou é apenas algo mais conjuntural?
Eu acho que a relação com a Rússia é diferente da relação com a China. Penso que a relação com a China pode ser descrita como puramente transacional. É um grande comprador de petróleo iraniano. Não existem pontos de convergência ideológica profundos e enraizados.
E isso é algo que a Rússia e o Irão partilham. No meu livro, falo sobre isso; a Rússia e o Irão têm algo a que me refiro como sinergia ideacional, que se baseia na ideia de que há certas percepções que tanto a Rússia como o Irão partilham sobre a ordem internacional e o ambiente de segurança. E é isso que realmente os une. É aí que existe esta associação simbiótica, em que ambos acreditam que se encontram num ambiente internacional que não defende os seus interesses e que, por isso, alimenta a sua segurança ontológica e as questões existenciais
Partilham a mesma segurança ontológica...
Sim, é a perceção de que as suas identidades civilizacionais estão em risco, que as suas histórias estão em risco, e que a ordem internacionalista liberal atlantista ocidental, liderada pelos EUA, quer simplesmente branquear toda a gente e criar uma espécie de narrativa singular de como os Estados devem ser, que orientação os Estados devem ter, e eles simplesmente não a subscrevem, são mais orientados para a soberania nas suas opiniões. E foi isso que os uniu de facto.
A República Islâmica do Irão nunca foi realmente reconhecida pelas nações da Europa Ocidental, ou chamemos-lhe o Ocidente político. Por isso, há este receio, que também a Rússia nutre, de esforços de mudança de regime, de revoluções coloridas patrocinadas pelo Ocidente, de revoluções de veludo, de intervenções militares ocidentais sempre sob o pretexto de preocupações humanitárias. E, por isso, acreditam que o Ocidente, o sistema ocidental, se baseia na hipocrisia, em dois pesos e duas medidas.
Por isso, têm esta ideia que os fundamenta e, aconteça o que acontecer agora, ambos subscreverão a ideia de que o Irão e o Ocidente nunca serão totalmente amigos, porque simplesmente o Ocidente não aceita o Irão e o seu modelo político. E o Irão nunca se submeterá às normas e padrões sociais, culturais e políticos que pensa que não se aplicam ao país. Isto não quer dizer que o Irão não tenha a sua própria evolução interna.
E temos assistido a isso ao longo dos anos, tem o seu próprio dinamismo, temos agora um presidente orientado para as reformas, com uma mentalidade mais aberta. Assistimos a todos os fluxos e refluxos no que se refere à modernização do Irão.
Podemos classificar Massoud Pezeshkian como um reformista?
Não, não o classificaria como reformista. Em primeiro lugar, os reformistas têm uma identidade particular, tornaram-se uma marca particular no Irão, muito associada ao antigo Presidente Saeed Mohammed Khatami. Mas eu diria que temos um presidente pragmático. E a sua visão baseia-se nas realidades políticas e nas realidades sociais.
O que é também uma corrente política definida no Irão, os pragmáticos?
É isso mesmo.
Mais ligado a Hashemi Rafsanjani?
Eu não ligaria Pezeshkian a nenhum grupo em particular. Mas diria que, se vamos falar de Rafsanjani, temos de pensar no contexto em que ele chegou ao poder. Era a época da reconstrução após a guerra Irão-Iraque. Portanto, circunstâncias muito diferentes.
A criação de mais liberdades sociais não estava na ordem do dia, não era uma prioridade. Mas agora vemos que a juventude iraniana quer mais liberdades e quer aproximar-se do Ocidente, não quer estar tão isolada como está. Portanto, há essas exigências que este Presidente está pronto a abordar. Mas o problema é que as questões de segurança nacional, a instabilidade regional, tornaram-se mais importantes, tornaram-se as prioridades da agenda.
E as questões de segurança nacional interferem na forma como os ramos mais conservadores do poder podem estar mais abertos ou menos abertos a mudanças e à concessão de liberdades cívicas?
Acho que há uma correlação direta, sim. Sem dúvida. Penso que existe uma correlação direta. Quando houve o movimento ‘liberdade, vida, mulheres’, é evidente que não se tratava apenas do véu, tornou-se uma questão de segurança nacional. E houve outros grupos e forças externas que se envolveram. E depois houve questões de mudança de regime. E quando isso está em causa e em cima da mesa, ou se torna uma ameaça, então é evidente que o Estado se torna altamente securitizado.Por isso, vão ser ainda mais rigorosos com os seus regulamentos no que diz respeito, por exemplo, ao hijab. O hijab é um símbolo da revolução. É um símbolo do regime. Por isso, vão ser ainda mais rigorosos. Mas há uma correlação direta, sim. E eu sempre disse que se os europeus tivessem tido uma mente mais aberta ou se o Ocidente tivesse sido mais matizado na forma como via o Irão...
Mais inteligente?
Não vou dizer isso. O Ricardo já o disse, mas está bem. Penso que teríamos mais convergência, mesmo a nível cultural, até aos dias de hoje. Quero dizer, olhamos para o cinema iraniano e vemos como é progressista. E todos os filmes, séries e programas que o Irão produz têm de passar pelo Ministério da Cultura e Orientação. Por isso, vemos a complexidade e as nuances e como os temas e tópicos são amplos e profundos. Bem, tem de ser um Estado muito sofisticado para compreender que estas são as questões que precisam de ser abordadas. Não está a reprimir. Não os está a censurar.
É claro que existe censura, mas também existe um ambiente muito florescente em que estas questões, que eu, como alguém que está a ver a partir da Europa, penso, uau, isto é uma grande mudança em relação há 10 anos. E isso mostra uma evolução gradual e tranquila, sem qualquer tipo de olhar para o Ocidente ou a copiar o Ocidente e ficar intoxicado pelo Ocidente. É apenas algo interno.
Mencionou a relação entre o Irão e a Rússia e eu sei que a sua tese de doutoramento foi sobre a comparação entre a Revolução Bolchevique e a Revolução Islâmica. No entanto, essa relação nem sempre foi pacífica entre o Irão e a Rússia...
Não, existe um grande antagonismo histórico e estamos sempre a assistir a isso.
Até podemos vê-lo numa série que foi para o ar há dois ou três anos, que mostra claramente que os russos tomaram conta de partes do Irão e que muitas pessoas ficaram descontentes com isso durante a Segunda Guerra Mundial. E era muito claros ao descrever a autoridade russa e o pessoal militar russo como sendo agressivos e repressivos e apenas uma força imperial no nosso país. E isto numa altura em que a Rússia e o Irão ainda estavam envolvidos na diplomacia e em diferentes tipos de interações. Mas isso mostra que este antagonismo histórico, não o estamos a negar, está lá. E é por isso que eu não lhes chamo aliados, nem sequer penso que sejam necessariamente parceiros estratégicos. Porque quando se usa a palavra estratégia, estamos a incluir algumas componentes militares, a aliança tem outros significados que vão no sentido do complexo industrial mais militar.
O que eu digo é que estão alinhados, e têm este alinhamento dinâmico, o que significa que ambos têm os seus próprios interesses políticos reais. Mas, ao mesmo tempo, têm raízes que os unem. E isso explica por que razão os iranianos têm queixas contra os russos no que se refere à entrega dos mísseis terra-ar S-300, à central eléctrica que foi adiada durante muitos anos em Natanz. Os iranianos vêem muita duplicidade por parte da Rússia, mas isso faz parte da sua história e faz parte da sua prerrogativa de fazer o que pensam ser do seu interesse. Não estou a negar que o Irão vai fazer o que for do seu interesse. Simplesmente, existem certas estruturas ideológicas que os uniram, nomeadamente uma convergência de segurança que domina esta relação.
Mas, a certa altura, diz que se a primeira administração Trump não tivesse abandonado o JCPOA (o acrónimo para o programa nuclear iraniano, em inglês), provavelmente não estaríamos a ver o Irão a vender drones Shaded à Rússia.
Não sei se o disse dessa forma. O que penso ser pertinente aqui é que assistimos a uma aceleração da orientação do Irão para leste. Assistimos a muito mais reuniões e encontros diplomáticos e à Organização para a Cooperação de Xangai e aos BRICS, e depois aos corredores de transporte logístico e a todas estas discussões, a uma enxurrada de actividades diplomáticas que faziam parte integrante desta nova campanha. E isso também se reflecte nas repúblicas da Ásia Central. Por isso, o que estou a sugerir é que, em vez de procurar o comércio ou a diversificação económica com os europeus, vimos a bandeira firmemente colocada a leste.
Por outro lado, desde que os missionários presbiterianos, desde o século XVIII, havia muito boas relações entre a América e a Pérsia.
Sem dúvida, sim.
Isso só mudou radicalmente em 1979, com a revolução islâmica.
É verdade. E isso foi, mais uma vez, podemos entrar na revolução e na crise dos reféns e em todas as outras coisas. Mas também temos de nos lembrar que tudo isto começou nos anos 50 (Mohammed Mossadegh foi derrubado em 1953 por um golpe de Estado que foi orquestrado pela CIA e o Reino Unido, conhecido como Operação Ajax), quando o primeiro-ministro democraticamente eleito do Irão foi deposto.
Com a ajuda da CIA.
Com a ajuda da CIA. E assim, claro, os iranianos ficaram marcados por essa memória amarga. E os EUA voltaram a colocar o Xá no poder. E tudo isto foi visto como duplicidade e interferência. Isso deixou a sua marca e até foi algo que não foi atribuído aos americanos pela população iraniana. Os americanos não eram vistos dessa forma, mesmo em termos de cultura popular. Eram tidos em maior estima. Mas depois, os iranianos desenvolveram mais um carácter político. E isso, claro, ganhou ritmo depois da revolução.
Agora estamos a assistir a isto, a estas conversas que considera positivas, ou que podem ser positivas, a certa altura, no meio de tempos verdadeiramente disruptivos. Como vê a ordem internacional atualmente? Porque liga-se ao que estamos aqui a discutir. Parece que a Rússia, alinhando-se à China, está de alguma forma a tentar reverter o que era visto como uma hegemonia do sistema ideológico e de poder ocidental…
Talvez haja um aspecto contra-hegemónico nisso. E acho que o Irão também tem isso. Porque eles partilham essa visão de que há todas essas bases americanas na região deles, no quintal deles, enquanto deveriam ser os Estados locais a garantir a sua própria segurança. Eles deveriam criar a sua própria arquitetura de segurança. E não fazem isso, e os iranianos não estão felizes com isso. E isso também alimentou a doutrina estratégica e militar iraniana na região. Sim, isso está correto. Eu diria que isso é definitivamente algo que eles têm tentado evitar.
Se o Presidente Zelensky dissesse que a Ucrânia não se juntará à NATO, isso seria suficiente para evitar a operação militar especial da Federação Russa. A Ghoncheh afirma que esse é o argumento da Escola de Realismo Estrutural em Relações Internacionais...
Como Mearsheimeir, sim…
Mas, na sua opinião, esse argumento não é válido?
Acho que esse é um argumento muito forte. Mas não acho que essa seja a única razão que teria descartado completamente a operação militar especial, como lhe chamam. Mas acho que a importância dessa frase é que, após a desintegração da União Soviética, em 1991, o que vimos foi que, em vez de integrar a Rússia numa arquitetura de segurança europeia ocidental, o Ocidente viu o ambiente de segurança pós-Guerra Fria como um ambiente de expansão, de expansão da NATO, e não de integração da Rússia na NATO, não de integração da Rússia Num arranjo de segurança completamente novo. E esse foi o problema. Então, isso tem uma longa história. E eu discuto isso no meu livro, que se trata de provocar, de manter a Rússia de fora, de tratá-la como uma estrangeira. E isso foi algo que Gorbachev também mencionou quando falou sobre uma casa europeia comum, redefinindo os parâmetros da Europa, as fronteiras da Europa, trazendo a Rússia para dentro.
Mas essa ideia quase desapareceu depois de Gorbachev...
Absolutamente. E então tivemos, em vez de uma Guerra Fria, uma Paz Fria, que era apenas o status quo. E a Rússia viu como essas provocações ou tentativas de marginalizar ainda mais a Rússia no que diz respeito à sua segurança. Então, há muita coisa por trás disso. Há também a questão do nacionalismo étnico e todos aqueles outros fatores que também eram questões territoriais. Mas vejo isso muito como uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia que se desenrola em solo ucraniano.
O facto de a Rússia se ver como um império ou como uma civilização pode ser um problema, mas a falta de reconhecimento da Rússia como uma potência, maior ou menor, também foi, principalmente por parte da Europa e da perspetiva europeia, também foi um erro, não foi?
Acho que sim. Não acho que a Rússia estivesse à procura de se restabelecer como um império. Mas acho que o que ela queria era ser uma participante ativa. E vemos isso hoje. Ela quer ser uma mediadora.
E quer ser tratado como uma parte negocial... eu não diria que quer ser tratado como uma superpotência, certamente, mas quer ser tratado como uma grande potência, como um país que em algum momento foi uma grande potência. Então, você não pode simplesmente dizer-lhes: "Bem, sabem, estamos aqui a colocar bases, sei lá, bases de defesa antimísseis cada vez mais perto de vocês, das vossas fronteiras, vamos criar revoluções coloridas em estados que estavam no vosso quintal, ou sob os vossos auspícios. Não se deve interpretar isso como uma provocação. Mas claro, eles viam as coisas dessa forma.
Tivemos - e isso era um problema da perspetiva russa - a maneira como o Ocidente lidou com a questão do Kosovo no final dos anos 90. E o reconhecimento do Kosovo em 2008. Ao mesmo tempo, tivemos os russos na Geórgia, na Abkházia e assim por diante. Então, houve uma crescente falta de confiança de ambos os lados?
Sim. E essa narrativa da Rússia tornou-se mais forte e mais convincente. E essa também é uma das razões pelas quais ela se aproximou do Irão, ideologicamente, digamos assim.
Como é que isso afetou o o Irão?
Porque ambos são contra revoluções coloridas e campanhas de promoção democrática patrocinadas pelo Ocidente, que são altamente duvidosas, especialmente naquela época, porque viam isso apenas como uma forma de, antes de tudo, interferir na soberania nacional de um país e também servir aos interesses dos seus próprios Estados, o que significava colocar no poder fantoches que se curvariam aos interesses europeus ou americanos.
A geografia pode ser um destino, mas será que algum dia a Ucrânia conseguirá sair do chamado mundo russo?
Não sei. Hoje em dia, com Trump, realmente não sei que direção vai tomar. Isso seria altamente especulativo da minha parte.
Não sei quem o pode adivinhar agora, com todo esse vai e vem que Trump está a fazer ultimamente, e se haverá um avanço na história da Ucrânia agora, tantas coisas estão em jogo. Temos o acordo nuclear, a guerra na Ucrânia, essa guerra tarifária e, então, todas essas mudanças globais que são tão transformadoras, e todas estão tão interligadas. Então, vamos ver o quanto Trump está disposto a ceder e eu coloco isso entre aspas.
Quando diz que tudo está inter-relacionado, não devemos dissociar o que está a acontecer, ou a maneira como as coisas estão a evoluir no Oriente Médio, do que está acontecendo na Ucrânia?
Bem, eu diria que, por exemplo, no acordo nuclear, a Rússia também pode atuar como mediadora, como diplomacia de bastidores, porque, neste momento, também está em negociações com os americanos sobre a guerra na Ucrânia, que também tem, novamente, um impacto na economia global. E também, nesse caso, pode usar isso como alavanca para levar as negociações iranianas a uma direção que seja de interesse do Irão, se houver um impasse, ou se houver tecnicalidades ou certas questões que não possam ser resolvidas tão facilmente.
E acho que isso lhes dá uma pequena carta na manga.
E nós nem estamos a falar do papel que a China desempenhou na tentativa de se aproximar do Irão e da Arábia Saudita, o que era algo impensável há uns anos…
A China também assumiu o papel de mediadora entre países que, sabe, ninguém imaginaria que eles teriam o poder de reconciliar.
E essa é uma grande diferença desde 2015, desde o primeiro acordo nuclear. O Irão está, de certa forma, numa posição melhor, embora todos gostem de dizer que o Irão sofreu um golpe tão grande por causa do Hezbollah ter sido atingido ou do Hamas ter sido enfraquecido.
Mas a realidade é que, em 2015, a Arábia Saudita e o Irão não estavam em bons termos. E agora, com esse grau de normalização, pelo menos têm as embaixadas a funcionar. O Irão, em 2015, foi fortemente sancionado. E estava apenas a navegar no terreno econômico-financeiro em termos de o que quer que estivesse a tentar fazer para contornar as sanções ou o que quer que fosse.
No entanto, estava a tentar sobreviver ou a vender o seu petróleo. Mas, ao mesmo tempo, também, enriqueceram o seu urânio, então têm mais cartas na mão.
Poderíamos dizer que, em algum momento no futuro próximo, o Irão conseguirá ter ou manter seu programa nuclear porque a Arábia Saudita também quer ter o seu programa nuclear civil?
Não acho que seja interrelacionado. É uma questão de soberania nacional. É uma questão de direito. Os iranianos acreditam que têm direito à energia nuclear pacífica, civil, para fins pacíficos e civis. Pelo menos estou a falar daquilo em que a elite acredita, ou, na verdade, muitos segmentos da população também veem isso como um direito. Mas não vejo que isso esteja ligado à Arábia Saudita.
É uma linha que eles sempre seguiram. Não acho que vão usar isso como pretexto.
Eu não diria que o Irão está a usar isso como pretexto, porque, como disse, não precisa. Mas é mais fácil para os EUA que o Irão mantenha um programa nuclear pacífico, se a Arábia Saudita começar a desenvolver o seu próprio…
Não sei sobre isso. Quer dizer, se você pensar na Arábia Saudita e no Irão, bem, o Irão tem sido tratado como um estado pária pelos EUA, certo? Questões de direitos humanos ou o que quer que eles digam. Mas quando se trata da Arábia Saudita, fazem vista grossa. Quer dizer, vocês tem lá o vosso adorável Cristiano Ronaldo. Então, penso que os padrões são um pouco diferentes quando se trata desses dois países. E penso que é muito determinado pelos interesses em jogo
Estamos a falar de uma aproximação entre os EUA e o Irão, ou pelo menos eles estão a levar isso adiante, essas negociações, com ou sem ajuda russa. Mas não podemos esquecer que o amigo americano na região é Israel. E a relação entre Israel e o Irão não é nada boa.
Nada, nada boa. E mesmo agora, pior ainda, eu diria, com o que está a acontecer em Gaza, o Irão agora tem uma perspetiva que é clara: Israel é um Estado de apartheid, etno-supremacista, envolvido num genocídio, e a Europa está a fazer vista grossa. E isso mudou toda a equação. Então, quanto ao que vem a seguir, não estou em posição de dizer, mas é definitivamente complicado.
Ao mesmo tempo, Israel pode estar a dizer que o Irão é um Estado terrorista que apoiou o Hamas, que atacou, mantém reféns e assim por diante. É possível prever uma relação diferente entre esses países? Ou somente se houver uma mudança radical nas respetivas lideranças?
Não vejo uma mudança radical nessa perspectiva de liderança, portanto isso nega completamente a sua hipótese.
Costuma ir ao Irão?
Não vou há algum tempo, mas estou a planear ir. Com certeza.
Já falou um pouco sobre esse novo ambiente político. Como é que vê o país neste momento? Quero dizer, socialmente?
Penso que o país, quer dizer, pelo que eu entendo e pelo que os meus parentes e amigos me dizem, as pessoas aprenderam a sobreviver apesar das sanções, apesar da inflação. Sabe, simplesmente sobrevivem.
Mas isso não quer dizer que não seja desconfortável ver a desvalorização da moeda. É muito difícil para os iranianos comuns.
As sanções realmente afetam o país...
Afetaram de muitas maneiras, especialmente quando se pensa na campanha de pressão máxima de Trump e como isso impactou a vida dos iranianos comuns. Está a afetar pessoas comuns que têm problemas básicos, não está a mudar a política, o que é algo que, sabe, muitos especialistas em sanções e na eficácia das sanções dirão. Mas os iranianos prosperaram. Estão a progredir bem. Mas, claro, sempre há... os iranianos estão confinados porque há essa espécie de Espada de Dâmocles, que é, eu diria, o regime de sanções e toda essa retórica. E o próprio Irão é vítima, de muitas maneiras, da instabilidade regional.