Isabel do Carmo: "Abstenção é asneira. Poderei tê-lo feito no passado, mas este não é o momento para problemas de consciência"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre o voto. Isabel do Carmo rejeita o sentimento de "pânico", mas confessa que vê com "muito medo" o crescimento da extrema-direita
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Médica de formação e revolucionária por vocação, Isabel do Carmo, fundadora das Brigadas Revolucionárias, garante que a abstenção "é uma asneira" e sublinha que, neste momento, "cada voto à esquerda é um voto contra a extrema-direita".
"[A abstenção] é uma asneira. Eu poderei tê-lo feito no passado, porque realmente não tinha convicção por um motivo ou por outro em qualquer dos partidos, mas, neste momento, não estamos em momento para estarmos com grandes escolhas e grandes problemas de consciência", alerta, em declarações à TSF.
Ainda que admita que no passado a falta de "convicção por qualquer um dos partidos" a pudessem ter afastado das urnas, afirma que hoje em dia o cenário é outro e, por isso, não há tempo a perder com "grandes escolhas e grandes problemas de consciência".
"De facto, em muitas eleições votei em branco, porque não quis deixar de votar, além do mais porque votar é um prazer. Votar num país onde nunca se votou e agora poder-se ir lá e pôr o voto na caixa é ótimo", justifica.
Isabel do Carmo recorda, assim, as bases que sustentaram a possibilidade das primeiras eleições livres em 25 de Abril de 1975: o povo que vivia num país em ditadura, sem liberdade de expressão e com o medo de ser preso e torturado pelas suas ideias não podia "estar à espera que as coisas mudassem por si próprias". A resistência foi quase uma imposição.
"Quem vive num país em ditadura onde não há liberdade nem de expressão, seja ela qual for, no espaço público ou através de meios comunicação, quem vive sob a pressão pelo facto de se opor ao regime poder ser preso e a prisão significar a possibilidade de tortura de segredo, e que, além dessas questões relacionadas com a liberdade, tinha sob o ponto de vista social, um panorama péssimo ao nível da saúde, da alimentação, então não tem outra solução. A única coisa que pode fazer é lutar contra esse regime e foi o que eu fiz e continuaria a fazê-lo, se não fosse o 25 de Abril", salienta.
Ainda assim, para as eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, as Brigadas Revolucionárias, que Isabel do Carmo fundou, não se apresentaram a eleições, mas a ideia esteve em cima da mesa.
"Isso foi discutido dentro das Brigadas que tinham o partido, que era o PRP [Partido Revolucionário do Proletariado]. Havia pessoas que eram a favor de nos candidatarmos. Outras não. Mas a maioria achou que não havia condições para nos candidatarmos e que as eleições, naquele momento, eram feitas. As pessoas queriam votar e votaram massivamente e estavam a exercer, pela primeira vez, esse direito, mas as condições não prometiam um bom esclarecimento", revela.
Já atualmente, o foco agora está em "fazer uma maioria de esquerda na Assembleia", até porque hoje existem mais "condições para haver unidade do que houve no passado".
"Apesar de saber que os problemas, mesmo com o Governo mais à esquerda — que tem sido o Partido Socialista —, tenham dificuldade em resolver-se, o melhor período para a resolução de alguns problemas foi com a presença da chamada geringonça no poder", defende.
Isabel do Carmo afirma por isso que "este é o momento" de votar, sobretudo porque o que está em causa é a luta contra a extrema-direita: "Este momento é importante, porque significa, além do mais, que é uma forma individual, mas é uma forma de combater a extrema-direita e a direita. Em 2018 não tínhamos extrema-direita no Parlamento. Nem sonhávamos que havíamos de ter. E, agora, cada voto à esquerda é um voto contra a extrema-direita."
Rejeitando o sentimento de "pânico", confessa que vê com "muito medo" o crescimento desta fação política um pouco por todo o mundo. O receio é de que se "comecem a instalar" regimes antidemocráticos, que são "sempre maus para as pessoas". "Foi sempre e continua ser", diz.
A revolucionária aproveita assim para desconstruir o discurso destes políticos: o "tópico da corrupção" tem servido de gancho para explicar o "mal-estar social que existe atualmente". Esta situação surge, contudo, pela falta de políticas de combate às desigualdades, nomeadamente no que aos salários, habitação e saúde diz respeito.
"O tópico da corrupção é qualquer coisa que lhes serve para se colocarem contra todos os políticos atuais, atribuindo a esses políticos atuais as questões sociais de que as pessoas, com toda a razão, se queixam. Isto é um truque importante porque passa-se a vida a discutir corrupção — os tais casos e casinhos — sem discutir as coisas fundamentais. E esta é uma arma da extrema-direita", explica.
Munições que de resto têm estado aliadas à convicção do "falso nacionalismo, à falsa questão da raça, considerando que a nação é que é genuína e que tudo o que é estrangeiro é perigoso". A extrema-direita assume-se como o "guardião das tradições, da nação e da pureza", mas Isabel do Carmo lembra que aquilo que o salazarismo fez foi normalizar uma situação social extremamente precária.
"O salazarismo era uma extrema-direita que considerava a situação social das pessoas era para ficar assim: era inevitável, era natural. Era natural as pessoas terem fome, era natural as pessoas não terem saúde, era natural serem pobres. E, nesta tradição da extrema-direita, esta naturalização de que era fatal ser pobre, não ter saúde, haver desigualdade, isto que não é expresso no discurso da extrema-direita, é, no entanto, algo a que vai ter a extrema-direita porque aproveita o mal-estar que existe social", reforça.
A médica critica por isso a "incapacidade de pensamento crítico" que afeta a generalidade da sociedade, abrindo caminho à exploração destes ideais.
"Nada disto é verdade, mas é importante fazer este discurso porque as pessoas que têm mal-estar, que acham que os imigrantes lhes roubam os locais de trabalho ou que lhes roubam subsídios de uma forma completamente fantasiosa, são sensíveis a isto", nota.
Os Estados Unidos da América são um "exemplo" muito concreto daquilo que pode acontecer quando se elegem Governos conservadores. Desde logo, "há um agravamento das desigualdades" que é explicado pelo "proteção" oferecida pelos "mais ricos" a estes modelos de governação.
"Quando a extrema-direita, como é o caso dos Estados Unidos, toma o poder, protege os muito ricos e toma medidas que vão fazer com que os pobres sejam mais pobres. Portanto, o combate inicialmente é de populismo, culpar a corrupção por todos os males, de explorar o desassossego social dos povos, atribuindo à esquerda e aos intelectuais de esquerda as culpas disso e considerando que os políticos que levam a isso são todos corruptos. Este é o discurso de combate para tomarem o poder e, depois de tomarem o poder, temos aí o caso de [Donald] Trump, que já nos está a explicar como é que é a extrema-direita quando toma o poder", argumenta. À Europa resta-lhe "olhar para lá para ver o que é que acontece" e aprender com esta realidade.
Ainda hoje, adianta, há muitos direitos que a médica não dá como garantidos. Apesar da "evolução" proporcionada pelo 25 de Abril, houve "coisas que ficaram por resolver": desde logo a desigualdade, o funcionamento integral do Serviço Nacional de Saúde e a crise na habitação.
"Nunca foi garantido um SNS integral a funcionar como deve ser. (...) Acabaram os bairros de lata com João Soares na Câmara Municipal de Lisboa, mas neste momento já temos bairros nas periferias, em que as pessoas fazem casas com madeira ou com tijolo. Portanto, voltamos a ter casas que não são boas casas de habitação", lamenta.
Para a área da Saúde, onde está mais confortável, a médica prescreve um "remédio" que, administrado, resolvia "grande parte do problema" no setor: as profissões que trabalham por turnos "têm de ser tratados sob o ponto de vista salarial de uma forma diferente", há "falta de médicos especialistas" e os poucos que existem acabam por servir o sistema privado porque lá as remunerações são "o dobro" e é preciso criar um "registo de saúde eletrónico com um processo clínico único, em que houvesse intercomunicabilidade entre todas as instituições de saúde".
Sobre a alteração proposta pelo PSD e CDS à Lei de Bases da Saúde, onde está previsto que os imigrantes tenham restrições no acesso ao SNS, Isabel do Carmo fala em injustiça.
"Se há pessoas que estão em Portugal a residir e a trabalhar - li nos jornais que são um milhão e meio -, têm de ter direito ao SNS. E a verdade é que não têm. Não têm porque se forem a uma urgência, sobretudo se forem numa emergência aos hospitais, entram, depois não sei se pagam se não pagam, agora, centros de saúde não têm, porque precisam de um documento da junta de freguesia para terem acesso a um centro de saúde e a junta de freguesia só lhes passa esse documento se se se. Nós temos visto o tempo que tem levado o instituto respetivo [AIMA] para legalizar as pessoas. E é muito injusto", considera.
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF desafia 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt