Pacheco de Amorim sobre o 25 de Novembro: "Há um grande vencedor que foi o PCP"
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“Aquilo ardeu como palha!” Entre cigarros, Diogo Pacheco de Amorim recorda o papel do movimento Maria da Fonte no Verão Quente de 1975. Era na altura dirigente do gabinete político do MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) e garante que o movimento chefiado por António de Spínola nunca ordenou qualquer atentado à bomba. "Tanto quanto eu saiba", sublinha. O 25 de Novembro, esse, acompanhou-o numa cabine telefónica: "Passámos lá o dia."
Dois dias depois, do outro lado da linha, estava Jaime Neves: "Não conseguimos tudo o que queríamos, pá." Quando Novembro passou, a violência política da direita aumentou. "Isso eu não sei explicar. Pessoas que se soltaram do MDLP…", atira.
Durante longos anos sonhou com um império "pluricontinental": "Quando não se tem grandes objetivos, viver é uma coisa muito complicada. Era uma utopia? Se calhar era. Mas acho que aos 75 anos podemos sorrir do que achávamos possível aos 26."
Em Novembro, as colónias já eram independentes e o PCP não foi ilegalizado, razões para Pacheco de Amorim acreditar que foram os comunistas quem saiu a ganhar.
Onde estava no dia 25 de Novembro de 1975?
Estava em Madrid há uns meses largos. Estava no gabinete político do MDLP.
Houve envolvimento dos militares com o MDLP?
É difícil dizer-lhe tudo, porque o MDLP estava compartimentado. Havia uma parte política, o gabinete político que fazia análise política diária para o general Spínola. Havia as FAE [Forças de Ação Externa] que estavam preparadas para o caso de as coisas correrem mal e haver uma tomada de poder por parte do Partido Comunista ou da extrema-esquerda ou de ambos, então era uma reserva de intervenção. E havia a RAI (Rede de Ação Interna) que cobria o território a nível distrital, recolhia informações e aquelas que interessavam à parte militar mandavam para a parte militar e aquelas que interessavam à parte política mandavam para o gabinete político e depois, digamos, era encaminhado para o general Spínola.
Qual era a leitura que o gabinete político fazia do pré-25 de Novembro?
A leitura política que fazíamos, pelas informações que tínhamos, era que se preparava um golpe da extrema-esquerda. Duvidávamos se com ou sem o Partido Comunista e achávamos pouco provável haver um golpe que metesse no mesmo barco o Partido Comunista e a extrema-esquerda. Mas as informações todas que tínhamos levavam a que a conclusão fosse essa: preparava-se um golpe. Nós não sabemos exatamente as razões e os contactos. Sabíamos que havia contactos entre o general Spínola, entre alguns oficiais do general Spínola e os oficiais do Grupo dos Nove, entre o general Spínola e o doutor Mário Soares. Sabíamos que havia um permanente contacto, porque, no fundo, tinha uma parte, se quiser civil, da resistência dentro dos partidos organizados, principalmente liderada pelo Partido Socialista. Havia uma parte militar, o Nove e, portanto, ia havendo contactos informais permanentes entre o MDLP, a parte civil e o Grupo dos Nove, levados a cabo ou por uns ou por outros. Era um conjunto de contactos informais. Como havia contactos também estes bastante mais, aliás, como é sabido, orientados dentro de uma relação muito estreita que existia entre o Cónego Melo e o Alpoim Calvão. Portanto, aquele chamado movimento Maria da Fonte, que se reunia à volta do Cónego Melo, havia ali uma grande interação entre a Maria da Fonte e o MDLP.
Por exemplo, a célebre reunião num convento ali perto de Braga…
Onde acabou no telhado com dois oficiais presos e o Alpoim Calvão conseguiu safar-se. Isso fazia parte e estava entre esses contactos permanentes ou muito regulares que havia entre o Alpoim Calvão, alguns dos oficiais fuzileiros que estavam ligados ao MDLP e o Cónego Melo. E foi um bocado entre os dois que ocorreram os incêndios às sedes que correspondiam aos ataques que, a sul, o Partido Comunista e a extrema-esquerda, mas principalmente o Partido Comunista, faziam às sedes e a militantes de partidos da direita. O que se tenta fazer no Norte foi criar um equilíbrio, se quiser, de terror. Isto é uma palavra muito forte para que as pessoas percebessem que o poder real não estava apenas nas mãos do Partido Comunista e da extrema-esquerda. Criar, num terreno pouco favorável ao Partido Comunista e mais favorável ao movimento de direita, um santuário que permitisse haver uma retirada, em caso grave de tomada de poder. Depois, se isso não funcionasse, então aí entravam as FAE do MDLP, como uma última hipótese de reagir.
As FAE estão ligadas à CODECO?
Eu julgo que não estavam ligados ao CODECO. Fazem-se muitas ligações e muitas inventadas. Conhecíamo-nos uns aos outros e tal, mas não havia qualquer estratégia comum. Os famosos ataques bombistas, tanto quanto eu saiba, não houve nenhum diretamente mandado pelo MDLP.
Mas foram feitos por pessoas do MDLP, não?
O que se passa é que havia uma quantidade de tipos que se aproveitavam da confusão para vinganças particulares, para, cobrando umas massas largas, chatear em terceiros e criavam cobertura política a essas suas atividades que não tinham nada de política. E depois havia uns fanfarrões que diziam "eu fiz isto, fiz aquilo" e que não tinham feito nada, para impressionar a namorada, para impressionar as raparigas.
A convicção de que haveria um golpe de extrema-esquerda ou do Partido Comunista ou eventualmente até dos dois juntos, vem de onde?
Vem de contactos entre alguns oficiais e o Grupo dos Nove, de algumas conversas em nível político do general Spínola e mais duas ou três pessoas que eu não quero estar aqui a nomear, porque ainda estão vivas, e não tanto de elementos recolhidos pela RAI. Isso era mais de a situação política ao nível do que o Partido Comunista estava a preparar. Já em cima dos acontecimentos, o Jaime Neves telefona para lá a dizer: "pá, se isto correr mal, nós vamos avançar. Se isto correr mal, há lugar para" já não me lembro quantos, mas umas centenas, que eram 200 ou 300 ou coisa assim do género. Mas isso já foi mesmo em cima, três dias antes, ou coisa assim do género.
Souberam nessa altura do golpe ou já sabiam antes?
Sabíamos antes que se estava a preparar alguma coisa e que se estava a preparar a resistência a essa alguma coisa. Agora, se era para 25, 26, 27, 30, ou mais à frente, não sabíamos. O general Spínola talvez soubesse. Estou a falar pelo que chegava ao gabinete político. Agora, quando o Jaime Neves telefona, aí ficámos a saber que era para o dia seguinte ou para dois dias depois.
E como é que se prepararam?
Estávamos calmamente à espera. Enfim, não era calmamente porque aquilo era jogar ao cara e coroa, porque a relação de forças não era clara. Aliás, era tão pouco clara que o Partido Comunista aparentemente só percebeu que a relação de forças lhe era desfavorável no decorrer da operação. Portanto, para nós em Madrid, pelo que sabíamos, aquilo não era muito claro quem é que poderia vencer. Acompanhávamos com alguma ansiedade. Graças a deus correu bem. Houve dois momentos que acabaram por prejudicar muito. Primeiro a ilegalização do Partido do Progresso a 28 de setembro. Há uma quantidade de pessoas que fica sem voz e não eram os saudosistas. Eram da direita conservadora e liberal, como eu. A única coisa que nos interessava era que achávamos que era fundamental a manutenção do Ultramar, não nos termos em que estava a ser feito. Depois, tem o pacto MFA/partidos. Não só liquidaram os partidos à direita, como os próprios partidos de centro, se quiser, ficaram limitados.
Como é que acompanhou o dia estando em Madrid, foi vendo as notícias?
Íamos sabendo por telefone, era uma cabine telefónica. Passámos lá o dia, iam-nos ligando daqui a dizer, está assim, está assado, está cozido, está frito. E julgo que o general Spínola, no Brasil, acompanhava da mesma forma. O Alpoim Calvão não sei onde estaria. Não estava em Madrid nesse dia…
Estaria mais perto…
De Portugal? Admito que sim, admito que estivesse mais perto. Mas foi assim que fomos seguindo. E um outro telefonema do Jaime Neves, dois dias depois: "Não conseguimos tudo o que queríamos, pá, mas conseguimos alguma coisa pronto, ok…"
E quem foram os vencedores do 25 de Novembro?
Há um grande vencedor que foi o Partido Comunista Português: as províncias ou as colónias, como quiser chamar, passaram todas diretamente para a órbita da União Soviética. A extrema-esquerda, no 25 de Novembro, foi liquidada completamente. Enfim, sobraram depois umas coisas mais folclóricas do que outras. Manteve a Constituição, sobreviveu aos outros partidos comunistas europeus mais 30 anos, não é por acaso. Entre os grandes vencedores, depois tem aquilo a que nós chamamos o bloco central: o PS e o PSD. Não se consegue nomear um juiz do Tribunal Constitucional que não seja apadrinhado por PS e PSD.
O que é que a direita ganhou?
A direita ganhou, no 25 de Novembro, o facto de o país não entrar não só numa guerra civil. Se o Partido Comunista tomasse o poder ou a extrema-esquerda tomasse o poder, nós passávamos diretamente para um regime totalitário. Ou seja, o país não ficou como queríamos, ou seja, a Constituição que julgava que devíamos ter e a presença que a direita conservadora devia ter. Não estou a falar de extrema-direita, de saudosistas do antigo regime, havia meia dúzia…
Esses saudosistas andavam, pelo menos, encostados ao MDLP?
Não. Não consigo encontrar lá ninguém no gabinete político, não havia um único na parte militar. Eu conhecia bastantes, eram todos adeptos da política do general Spínola, especificado no “Portugal e o Futuro”. Onde é que poderá encontrar alguns saudosistas? Em movimento espúrios, esporádicos que havia, mas eram dois ou três amigos que fumavam uns cigarros e diziam “amanhã vamos fazer uma revolução” e podiam lá fazer uma revolução. Eram dois ou três, não conseguiam, portanto, eram movimentos sem significado.
Os ataques da direita, os incêndios, as bombas aumentam muito em 1976…
Curiosamente, aconteceu isso que está a dizer: quando praticamente não havia nada até ao 25 de Novembro, começou a haver. Eu não sei explicar. Pessoas que se soltaram do MDLP… Depois, havia o ELP (Exército de Libertação de Portugal) também e era mais militar, era mais fogoso. Mas depois havia vários grupos. Esses provavelmente sentiram com 25 de Novembro que tinham sido de alguma forma defraudados e é provável que tenham começado a reagir mais duramente, mas isto é uma mera suposição. Uma coisa que eu posso garantir é que o MDLP, ou se quiser estruturas diretivas do MDLP, o gabinete político e pelo que sei da RAI, aquilo tudo cumpriu as ordens do general Spínola. Agora, os braços que ficaram por aí, não sei, confesso que não…
Havia contactos do MDLP com os Estados Unidos?
O general Spínola começou por ser, na reação ao Verão Quente, uma aposta dos Estados Unidos. O embaixador Carlucci depois desviou para o doutor Mário Soares. Pareceu-lhe que era mais simples ir por ali, funcionava melhor e, portanto, se quiser, apoio financeiro e apoio logístico e político, o MDLP perdeu em função do doutor Mário Soares. Se foi bom, foi mau, não sei dizer. Pode ter sido a melhor solução, não estou a fazer um juízo de valor. O 25 de Novembro é evidente que teve catalisadores, o doutor Mário Soares, o Grupo dos Nove, mas foi feito pela quantidade gigantesca de pessoas em manifestações, em vários pontos do Norte, contra o Partido Comunista e contra as sedes da extrema-esquerda. Não sei se o Grupo dos Nove e o doutor Mário Soares conseguiram fazer alguma coisa se não fosse todo este ambiente que foi criado.
O Maria da Fonte e essa estratégia que também foi testada em Itália, são uma preparação para a guerra civil?
Não, eu julgo que não. O Maria da Fonte, no fundo, como é que surge com o Cónego Melo? O D. Francisco Maria da Silva, arcebispo Braga, vem de Roma e chega ao aeroporto e é obrigado a despir-se. Dois ou três dias depois, convoca uma manifestação, deve ter sido já o Cónego Melo, e aparece na varanda do Paço Episcopal completamente paramentado a dizer isto acabou. E aquilo pegou como fogo em palha.
Podia ser uma ratoeira, deixá-los criar a comuna de Lisboa para depois contra-atacar…
Pois podia…
E nunca houve essa tentação do lado da direita?
Era demasiado arriscado. Era correr demasiados riscos com a população, pois a guerra civil é o vizinho que se quer vingar do vizinho, porque fazia barulho até às 05h00, é o tipo que se quer vingar do outro que lhe sacou a mulher ou a namorada. As guerras civis têm o grande horror e são mortíferas por causa disso. E nós, nessa altura, estávamos com o pavor à guerra civil, exatamente porque sabíamos que tudo isso se iria passar. Nós estávamos a olhar com algum respeito para essa possibilidade e havia que fugir dela.