“Um ataque liderado pelos EUA ou Israel às instalações nucleares do Irão é um cenário plausível nos próximos meses”
Helen Thompson é uma académica inglesa que ensina na Universidade de Cambridge, onde é professora de economia política. A New Statesman nomeou-a para o “guia das 50 pessoas mais influentes na política progressista”. Acaba de publicar “Desordem: Tempos difíceis no século XXI”. Entrevista na TSF
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Helen Thompson… o seu livro Disorder, Hard Times in the twentieth first century, foi escrito e publicado antes do regresso de Donald Trump à Casa Branca. Seria agora um livro bastante diferente? A sensação de Desordem aumentaria?
Na verdade, estive a pensar nessa questão esta semana. Penso que, de certa forma, o livro não foi suficientemente sombrio, se é que me faço entender, no sentido em que estava a tentar situar Trump 1 e outros acontecimentos da década de 2010 num longo contexto histórico. E penso que foi possível ver certas linhas de ruptura que se foram construindo até esse momento. E não achei que fosse assim tão difícil explicar de onde veio a primeira versão de Trump. Penso que há alguns aspectos da segunda versão de Trump que podem ser explicados da mesma forma, particularmente em relação à China e à centralidade da China como concorrente geopolítico dos Estados Unidos (EUA) e ao choque que isso representou para a classe política americana. Penso, no entanto, que há aspectos de Trump 2, e diria muito particularmente a questão do Canadá, para os quais não tenho uma explicação em Disorder. Por isso, penso que, se o estivesse a reescrever, teria de dedicar mais tempo às preocupações dos EUA no hemisfério ocidental e à sua história. E, de certa forma, excluí sistematicamente essa possibilidade ao fazer da Eurásia, isto é, da Europa e da Ásia, o espaço geopolítico central, se quisermos, com o qual me estava a envolver. Por isso, penso que tentar ter em conta Trump 2 exigiria uma grande reformulação do livro.
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Na introdução, assume que falta algo neste livro, sobre as ramificações políticas da experiência religiosa e cultural da Europa e da América. Porque é que acha que isso é tão importante num livro que trata principalmente das implicações políticas da economia e dos recursos?
Bem, penso que a guerra da Ucrânia é um bom exemplo disso e no sentido em que o que a guerra da Ucrânia demonstrou foi, num sentido político e não num sentido militar decisivo, a resiliência política da nação ucraniana e a sua inaceitabilidade para a Rússia. A Rússia vê a Rússia como um Estado civilizacional que não tem lugar para acomodar o que Putin considera serem reivindicações fracas de nacionalidade como a Ucrânia. E o que eu tinha em mente quando concebi o livro era que talvez pudesse dizer algo sobre essa relação entre a longa história e as disputas por território. E foi essa parte que tive de retirar do livro, o que foi irónico, uma vez que em Inglaterra, ou na Grã-Bretanha, devo dizer, a edição de capa dura saiu no dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia e, obviamente, eu tinha muito a dizer sobre as ramificações energéticas dessa invasão e a questão do território contestado e o facto de estas antigas reivindicações históricas de território em nome de impérios e nações não estarem resolvidas. Essa foi a parte que deixei de fora e que, de certa forma, não devia deixar de fora.
Será que podemos prever um mundo em que o petróleo e o gás não tenham qualquer importância relevante? Mas será que também podemos dizer que estamos muito longe disso?
Penso que é muito difícil imaginar um mundo em que o petróleo e o gás não sejam importantes. Não estou a dizer que, num futuro bastante longínquo, isso não aconteça, mas mesmo nos cenários mais optimistas do net zero 2050, o mundo continuaria a utilizar uma quantidade considerável de petróleo e gás. E há claramente áreas inteiras, por exemplo, aviões e navios, certas produções industriais, em que estamos muito longe de poder substituir o petróleo e o gás por outra coisa, devo dizer.
O ambiente político no Médio Oriente poderia ser diferente e mais pacífico se os Estados Unidos não tivessem abandonado o acordo nuclear com o Irão?
Não estou convencida disso. Penso que existe um conflito fundamental entre o Irão e Israel e, em certa medida, entre o Irão e a Turquia pela influência no Médio Oriente. No caso de Israel, obviamente, trata-se também de uma questão de continuidade da existência de Israel e da necessidade de se defender contra um regime que lhe é extraordinariamente hostil, no caso do Irão. Penso que se pode dizer que, no período de 2019 a 2020, em particular, o comportamento do Irão foi mais agressivo do que teria sido se Trump tivesse mantido o acordo de armas nucleares, porque a resposta do Irão à pressão económica máxima foi atacar no Golfo Pérsico e, de facto, encorajar os Houthis a fazer o mesmo. Por isso, penso que, num sentido muito específico, se pode dizer que existe uma relação entre o comportamento do Irão e o que Trump fez. Por outro lado, penso que o quadro geopolítico geral no Médio Oriente é moldado pela posição estrutural do Irão como potência hostil a Israel e como potência revisionista em relação à política de vários outros países do lado ocidental do Golfo Pérsico.
Existe um perigo crescente de um ataque liderado pelos EUA ou por Israel às instalações nucleares do Irão?
Penso que essa possibilidade não deve ser excluída. Penso que é um cenário plausível nos próximos meses. Quero dizer, seria muito perigoso. Penso que seria muito difícil para Israel fazer isso sozinho. Penso que não o poderá fazer sem o apoio militar dos EUA, dadas as distâncias a que o Irão se encontra de Israel. No entanto, penso que é possível imaginar um cenário em que Trump estaria disposto a apoiar um ataque ao programa nuclear iraniano. Penso que Trump, porque é esse o seu instinto, não irá entrar em guerra, tentará primeiro aplicar sanções mais duras e outros meios para tentar fazer com que o Irão não avance com o seu programa nuclear. Mas penso que não devemos excluir a possibilidade de ele estar disposto a apoiar um ataque israelita.
Pensa que os Estados Unidos receiam que o Nord Stream possa ser uma espécie de revivalismo daquilo que o geógrafo britânico Halford Mackinder referiu em 1904 no seu livro Geographical Pivot of History?
Sim, quero dizer, penso que os americanos têm uma série de preocupações diferentes relativamente ao Nord Stream. Penso que os americanos receavam, pelo menos alguns membros da administração Obama e algumas pessoas próximas de Trump, que a Alemanha estivesse a desviar-se para a Rússia. E depois, no mundo em que a China e a Rússia se aliaram, que fosse essa a direção da Alemanha, inclusive devido à sua relação económica com a China. Penso que também é verdade que algumas das pessoas no Senado dos EUA que pressionaram fortemente para que fossem impostas sanções ao Nord Stream, como Ted Cruz, o senador do Texas, porque também tinham uma compreensão bastante afiada dos interesses comerciais das empresas de gás de xisto dos EUA, e queriam que os países europeus comprassem mais gás natural liquefeito dos EUA. Por isso, se o Nord Stream não existisse e os gasodutos fossem difíceis do ponto de vista europeu, eles teriam mais incentivos para recorrer aos EUA. E, como sabemos, quase todos os países europeus estão agora a comprar mais gás natural liquefeito dos EUA (GNL) do que compravam antes da invasão da Rússia.
Então a destruição do Nord Stream foi do interesse do Ocidente, dos EUA e da Ucrânia?
Sim, penso que é muito difícil perceber qual foi a razão russa para destruir o Nord Stream. Tentei manter-me afastada dos pormenores de quem o fez explodir. Mas penso que, no balanço das probabilidades, é improvável que tenham sido os russos a fazer explodir o projeto.
Pensa que a queda da Ucrânia como Estado soberano começa com os acordos entre a Rússia e a Alemanha sobre o Nord Stream? Citou o ministro da defesa polaco, comparando-o ao pacto nazi-alemão-soviético...
Não, não creio. Penso que o acordo enfraqueceu significativamente a posição da Ucrânia, uma vez que houve uma perda de receitas com o funcionamento do Nord Stream 1, tal como aconteceu com o Turk Stream. Penso que a vontade alemã de dar prioridade à sua segurança energética em detrimento das necessidades da Ucrânia foi bastante reveladora, no sentido em que a Alemanha teria preferido manter a sua relação com a Rússia do que ter de lidar com as dificuldades da soberania da Ucrânia. Mas quando a crise chegou, o governo alemão, embora penso que com relutância, afastou-se da posição do Nord Stream. E, na verdade, Schultz pôs efetivamente fim ao projeto Nord Stream 2. O projeto já tinha sido efetivamente encerrado por razões técnicas, como as dificuldades em mantê-lo aberto, mas mesmo alguns dias antes da invasão, o projeto Nord Stream foi revelador das inclinações alemãs para dizer que a defesa da Ucrânia ‘não é algo com que nos queiramos envolver’. Mas quando foram realmente obrigados a escolher, não deram prioridade absoluta à relação com a Rússia. A posição da Alemanha antes do conflito era a seguinte: ‘pensamos que é possível encontrar uma solução pacífica para o conflito entre a Rússia e a Ucrânia através dos Acordos de Minsk, o que nos permitiria dar prioridade à energia barata, como a proveniente da Rússia, que é algo que nos interessa muito’. Não me parece que, a partir do momento em que adoptaram o Nord Stream 2, se tenham comprometido a dizer que não atribuem qualquer valor à soberania da Ucrânia. Penso que se tratou mais de uma ilusão de que a paz poderia ser mantida do que de dizer que são indiferentes à soberania da Ucrânia.
No início do terceiro capítulo, Eurasia Redesigned, mencionou a frota russa do Mar Negro a entrar no Estreito de Bósforo e os russos a apoiarem Bashar al-Assad e a atacarem as milícias apoiadas pelos EUA na Síria, sem que a administração Obama tenha feito nada. Mas também podemos falar das famosas linhas vermelhas, caso Assad utilizasse armas químicas, e ele utilizou-as, e acabou por não acontecer nada do lado dos EUA. A administração Obama acabou por preferir trabalhar com a Rússia para acabar com a guerra civil. Não terá sido um erro crasso?
Penso que não é fácil, em retrospetiva, ou mesmo na altura, justificar a posição de Obama em relação à Síria. Poderíamos dizer que o problema foi ter anunciado as linhas vermelhas em primeiro lugar, e que ele estava a anunciar algo que nunca teve os meios para defender, pelo que o problema não é tanto o que aconteceu quando as linhas vermelhas foram ultrapassadas, mas o facto de, logo à partida, as linhas vermelhas terem sido anunciadas.
Penso que, de um modo geral, o problema com a política para a Síria, que não só o governo dos EUA, mas também os governos britânico e francês apoiaram, foi o facto de não terem os meios para derrubar Assad ou, de qualquer forma, para controlar o tipo de pessoas que lutariam para derrubar Assad na Síria. E podemos ver agora quais são as consequências disso, em termos do que se está a passar na Síria. E a posição em que os americanos se colocaram, desde a retirada do Iraque, a primeira retirada do Iraque, quero dizer com isto, em 2011, é que querem usar o poder militar no Médio Oriente para moldar as coisas de acordo com os seus interesses, mas não querem sacos de cadáveres a voltar para os Estados Unidos. Por isso, tudo tem de ser feito apenas pelo poder aéreo, o que significa que é necessário que os combatentes locais no terreno façam o trabalho duro, o que implica fazer escolhas difíceis sobre quem vamos apoiar. Em 2014-15, a situação na Síria era de facto louca, com a CIA a apoiar rebeldes que estavam em desacordo com os que o Departamento de Estado apoiava. Por isso, penso que toda a abordagem da Síria foi uma confusão, e penso que não se pode realmente separar a forma como a administração Obama acabou por, quase até aos últimos meses da sua presidência, dar prioridade e tentar cooperar com os russos na Síria, do facto de Obama também querer o acordo nuclear com o Irão, para o qual precisava da ajuda russa. Foi muito difícil para Obama ter uma política externa no Médio Oriente que não dependesse, de uma forma ou de outra, da ajuda russa. E isto estava a acontecer na mesma altura em que a política dos EUA deveria ser de confronto com a Rússia sobre a anexação da Crimeia. Portanto, não foi só no Médio Oriente que as coisas não bateram certo, também não bateram certo no que diz respeito à Ucrânia.
Está confiante no sucesso destas negociações sobre a Ucrânia?
Não, não estou. Não estou porque penso que não é de todo claro que Trump tenha cartas na mão para levar Putin a negociar. Posso ver que existem alguns incentivos para que Putin chegue a um acordo. Mas se são decisivos, tendo em conta os ganhos militares no terreno, pelo menos, que os russos têm feito ultimamente, não tenho tanta certeza.
Começámos a nossa conversa e, no início, mencionou a China. Gostaria de lhe perguntar também sobre a importância da aquisição do porto de Gwadar, na costa paquistanesa, pelos chineses... Qual é a importância desse facto para a estratégia chinesa em matéria de petróleo e gás?
Penso que é justo dizer que esta estratégia ainda não foi bem sucedida para eles até agora. A sua importância reside no facto de se tratar de um porto na orla ou além do Golfo Pérsico, um porto paquistanês que permitiria construir um oleoduto terrestre, através do Paquistão, o Corredor Económico China-Paquistão, como é designado. E a grande vantagem seria que a China evitaria que os petroleiros tivessem de sair, como fazem atualmente, do Golfo Pérsico para o Oceano Índico, através do Estreito de Malaca, e para o Mar do Sul da China. E o Estreito de Malaca tem sido identificado desde pelo menos 2003, se não antes, como a grande vulnerabilidade marítima da China em qualquer conflito com os EUA, porque os EUA poderiam bloquear o Estreito de Malaca por ser tão estreito. Assim, a China ficaria privada das suas importações de hidrocarbonetos do Médio Oriente. O racional deste objetivo é encontrar uma forma de transportar petróleo, em particular do Médio Oriente, sem ter de recorrer à via marítima. Segundo sei, a construção deste oleoduto tem-se revelado bastante difícil. Além disso, a China está envolvida na complicada política de controlo interno no noroeste do país. Mas o seu objetivo estratégico, penso que é claro, é tentar minimizar o dilema do Estreito de Malaca que a China enfrenta.