Uma empresa familiar e um alegado conflito de interesses: o caso que levou à queda de Montenegro
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A 10 de março de 2024, Luís Montenegro foi eleito primeiro-ministro de Portugal. Agora, um ano e um dia depois, está perto de ver cair o Governo da Aliança Democrática (AD), coligação composta pelo PSD e CDS. Duas moções de censura, apresentadas pelo Chega e pelo PCP, rejeitadas e uma moção de confiança, proposta pelo próprio Executivo, igualmente chumbada, ditam uma crise política com eleições antecipadas já apontadas pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para o mês de maio. Tudo ocorreu no espaço de pouco mais de duas semanas e por causa de uma empresa familiar criada por Montenegro quando ainda não tinha assumido a liderança dos sociais-democratas ou a chefia do Governo: a Spinumviva.
A polémica começou a 15 de fevereiro, quando o jornal Correio da Manhã avançou que a família de Luís Montenegro era detentora de uma empresa imobiliária. A controvérsia está, precisamente, no objeto social muito abrangente da mesma, que prevê a prestação de serviços de “consultoria de gestão, orientação e assistência operacional às empresas ou a organismos (inclui públicos) em matérias muito diversas”, como “o comércio e a gestão de bens imóveis, próprios e de terceiros, incluindo a aquisição para revenda, arrendamento e outras formas de exploração económica”. Prevê igualmente a “exploração agrícola, turística e empresarial, a exploração de recursos naturais e produção agrícola, predominantemente vitivinícola”.
Apontava-se, assim, um potencial conflito de interesses, tendo em conta as alterações à lei dos solos, promovidas pelo Governo. Essas alterações permitem, entre outros aspetos, a reclassificação de solos rústicos para solo urbano, desde que para fins de habitação ou conexos. Uma situação que, nas palavras do PS, é "muito semelhante" com a de Hernâni Dias, o ex-secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território que acabou por demitir-se após ter sido, segundo Luís Montenegro, “imprudente” ao criar duas imobiliárias familiares (já depois de integrar o Governo).
A celeuma instalou-se, com a oposição, nomeadamente o PS e o Chega, a pedirem explicações ao primeiro-ministro.
Mas, afinal, que empresa é esta?
A Spinumviva, empresa de consultoria, foi criada em janeiro de 2021 por Luís Montenegro e pela mulher, Carla Montenegro, e registada com a morada e número de telemóvel do próprio. Nessa altura, o agora primeiro-ministro detinha 62,5% do capital social, enquanto a mulher e os dois filhos, Hugo e Diogo Montenegro, detinham 12,5% cada.
O capital social é de seis mil euros e a sede é em Espinho, local onde Montenegro tem a sua morada pessoal. Em resposta ao Correio da Manhã, o chefe de Governo afirmou que, “na altura da constituição da empresa”, o objetivo era “incorporar na sociedade o património” herdado dos pais e “revitalizá-lo”, algo que “acabou por nunca se realizar” devido ao regresso à vida política.
A 30 de junho de 2022, pouco mais de um mês depois de ter sido eleito presidente do PSD, o primeiro-ministro renunciou à gerência da Spinumviva, transmitindo a sua quota à mulher e aos filhos. De sublinhar que Luís Montenegro está casado em comunhão de bens adquiridos com Carla Montenegro, a principal sócia, o que significa que o chefe do Executivo poderia beneficiar de eventuais proveitos dos negócios – algo que reforçou ainda mais a polémica.
Os serviços e clientes da Spinumviva
A 28 de fevereiro, a própria firma revelou os nomes dos seus clientes e os ramos de atividade.
"As empresas que mantêm um vínculo permanente com a consultora Spinumviva, Lda, na área da implementação e desenvolvimento de planos de ação no âmbito da aplicação do Regulamento Geral de Proteção de Dados são: Lopes Barata, Consultoria e Gestão, Lda; CLIP - Colégio Luso Internacional do Porto, SA; FERPINTA, SA; Solverde, SA; Radio Popular, SA.", lê-se num comunicado enviado à TSF.
Os serviços prestados variam, segundo a empresa, entre os mil e os 4500 euros, valores que “atendem à dimensão e complexidade dos trabalhos com cada cliente”. A Spinumviva enumerou ainda 25 ramos de atividade em que prestou serviços, sublinhando que a relação comercial com os seus clientes "teve início numa altura em que o Senhor Dr. Luís Montenegro era sócio e gerente desta sociedade, mas não tinha qualquer atividade política".
A ligação com a Solverde
De acordo com o jornal Expresso, a troco de “serviços especializados de compliance e definição de procedimentos no domínio da proteção de dados pessoais”, o grupo Solverde pagava, desde julho de 2021, uma avença mensal de 4500 euros à Spinumviva.
O grupo que se dedica à área dos casinos e da hotelaria, com sede em Espinho, afirmou ao mesmo jornal que os serviços são fornecidos por “profissionais qualificados” e que os montantes pagos “enquadram-se dentro dos valores de mercado”.
Luís Montenegro foi, entre 2018 e 2022, como advogado, o representante do grupo Solverde nas negociações com o Estado para o prolongamento do contrato de concessão dos casinos de Espinho e do Algarve. O contrato termina no final deste ano, sendo normal o lançamento de um novo concurso para a concessão, algo que ainda não aconteceu.
Durante o debate da primeira moção de censura, apresentada pelo Chega, o primeiro-ministro foi questionado pelo líder do PS, Pedro Nuno Santos, sobre a possibilidade de um dos clientes da empresa familiar ser o grupo Solverde.
Em resposta, Luís Montenegro reiterou:
É público que sou amigo dos acionistas dessa empresa. Portanto, eu estarei sempre inibido, impondo-me a mim mesmo todas as restrições, inibição total, de intervir em qualquer decisão que impacte diretamente com essa empresa.
Ainda com a polémica em cima da mesa, a Solverde decidiu, a 5 de março, pouco antes do início do debate da segunda moção de censura, apresentada pelo PCP, rescindir o contrato existente "em proteção do seu bom nome".
As respostas de Luís Montenegro (ou a falta delas)
O eventual conflito de interesses e a “clara e evidente falta de ética na conduta do governante”, como afirmou André Ventura, levaram os vários partidos políticos da oposição a exigirem “explicações cabais e esclarecedoras”. Desta forma, o Chega decidiu avançar com uma moção de censura ao Governo.
A primeira censura ao Governo
A 21 de fevereiro, no Parlamento, Luís Montenegro explicou que a Spinumviva foi criada para toda a família antes de ser líder do PSD e adiantou que os seus imóveis não têm enquadramentos relacionados com as alterações à lei dos solos, negando, assim, possíveis conflitos de interesses. Referindo-se à moção de censura apresentada pelo Chega como “um tiro ao lado”, o primeiro-ministro referiu ainda que a empresa familiar de consultoria não pode ser considerada uma imobiliária.
Questionado por Pedro Nuno Santos, que apelou a Montenegro que não deixasse "nenhuma margem para dúvida, nenhuma suspeita sobre o primeiro-ministro de Portugal", porque "quem não deve não teme", o chefe de Governo optou por não divulgar, naquele momento, os clientes e os serviços prestados pela Spinumviva. Estas informações apenas foram divulgadas uma semana depois pela própria empresa.
Tal como esperado, apenas o Chega votou a favor desta moção de censura, com o PCP a abster-se e os restantes a votarem contra.
Montenegro faz comunicação ao país
Os esclarecimentos prestados por Luís Montenegro na Assembleia da República pareciam não ser suficientes. Por isso, a 1 de março, decidiu fazer uma declaração ao país, sem direito a perguntas dos jornalistas, para comunicar “decisões pessoais e políticas”. Na residência oficial, em São Bento, e acompanhado pelos ministros em peso, Luís Montenegro revelou que a empresa passaria a ser gerida pelos filhos, deixando a mulher de ser sócia-gerente, e que mudaria a morada da sede.
Além disso, admitiu avançar com uma moção de confiança ao Governo caso os partidos da oposição não esclarecessem se consideravam que o Executivo "dispunha de condições para continuar a executar" o seu programa. A moção de confiança foi, depois, anunciada durante o debate da segunda moção de censura, proposta pelo PCP.
Depois de elencar um conjunto de indicadores que considerou demonstrarem que Portugal está “forte e recomenda-se”, Montenegro defendeu que, “com a incerteza internacional e os desafios que a Europa enfrenta, colocar este país em movimento (…) numa crise política é difícil de perceber”. Dirigindo-se aos portugueses, Luís Montenegro garantiu que ele próprio e o Governo vão continuar a “assegurar a estabilidade” para continuarem focados na resolução dos “reais problemas” da população.
Mas, como sempre, só estaremos cá com a vossa confiança e com a vossa legitimidade. Sinto, sinto mesmo, que é essa a vossa vontade, sinto que é a vontade maioritária dos portugueses que o Governo continue a executar o seu programa, mas cabe à Assembleia da República e aos partidos políticos nela representados interpretar também a vontade dos portugueses. É esse apelo que daqui lançamos
Logo a seguir a esta declaração, os partidos políticos reagiram de imediato, com o PCP a anunciar uma moção de censura. O PS lamentou que Paulo Raimundo "tenha mordido o isco lançado pelo Governo". Em declarações aos jornalistas, o líder do PCP defendeu que o "Governo não está em condições de responder aos problemas" de Portugal e "não merece confiança", mas sim censura.
A segunda censura em 12 dias
E assim chegamos a 5 de março, dia da discussão da segunda moção de censura em menos de duas semanas. Logo na abertura do debate, Luís Montenegro anunciou que o Governo iria avançar com a proposta de uma moção de confiança, uma vez que não tinha ficado “claro" que os partidos políticos dão ao Executivo condições para continuar.
Pedro Nuno Santos confirmou que o PS votaria contra a moção de confiança, acusando Montenegro de preferir eleições a enfrentar uma comissão parlamentar de inquérito, tal como tinha sido proposto pelos socialistas a 3 de março. Também André Ventura afirmou que o primeiro-ministro anunciou a moção de confiança por "medo do escrutínio" e sublinhou que o Chega "jamais lhe daria qualquer voto de confiança".
Como era esperado pela segunda vez, a moção de censura foi chumbada no Parlamento com os votos contra do PSD, o CDS e Iniciativa Liberal, as abstenções do PS e do Chega e os votos a favor do PCP, Bloco de Esquerda, Livre e PAN. No final do debate, Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações aos jornalistas, em Viseu, admitiu o cenário de eleições legislativas antecipadas "para 11 ou 18 de maio", caso a moção de confiança fosse rejeitada, tal como aconteceu (sem surpresas) esta terça-feira.
Crise política desenhada
O país caminha para novas eleições, mas qual foi a estratégia do Executivo para a gestão da crise política? O ministro da Presidência explicou. Durante o debate da segunda moção de censura, António Leitão Amaro esconde-se atrás de uma folha de papel, na qual consta um rascunho daquela que seria a aparente estratégia do Executivo.
Daquilo que é possível ler na imagem, da autoria do fotojornalista Manuel de Almeida, da agência Lusa, estava previsto uma entrevista às televisões para que o Governo fosse sujeito ao escrutínio da comunicação social, assim como um Conselho de Ministros para duas coisas: apresentar medidas para o país e aprovar a moção de confiança. O último ponto do rascunho que Leitão Amaro segura é precisamente o debate do voto de confiança.
A imagem gerou polémica e levou o ministro a reagir numa publicação na rede social X (antigo Twitter) antes do Conselho de Ministros da passada sexta-feira, em que foram aprovadas as PPP para cinco hospitais e três novas entidades das Finanças.
Campanha ainda não arrancou, mas já se faz caça ao voto
Já no passado sábado, em plena crise política, Luís Montenegro admitiu que está “pronto para ir terra a terra, português a português, responder por tudo aquilo que tem de responder”.
Estou pronto para explicar que jamais estive no Governo se não em exclusividade. Chega a ser absurdo argumentar em sentido contrário. Alguém imagina que o primeiro-ministro possa ter estado no Governo e ter feito outra coisa ao mesmo tempo?
Reforçando que não cometeu qualquer ilegalidade, Montenegro disse que tem sido acusado "sem fundamento" de ter sido avençado por um cliente da Spinumviva. Falou, por isso, em notícias que surgem "enviesadas, com erros, incorreções e, muitas vezes, até com falsidade". O primeiro-ministro denunciou ainda aqueles que se "apressam a replicar" esta retórica e a fazer delas "verdades absolutas”, criticando o "oportunismo político".
Parece que o primeiro-ministro tem a responsabilidade de ter trabalhado. Não me parece que fique mal ao primeiro-ministro ter trabalhado, não me parece que fique mal ao primeiro-ministro que possa dizer em que é que trabalhou ou que tenha decidido que uma parte do trabalho que lançou possa ser delegado para membros da sua família.
O chefe de Governo garantiu ainda que não fez "nem mais nem menos" do que faria "qualquer português" na sua situação, reforçando que cessou funções na empresa familiar antes mesmo de assumir a liderança do PSD.