Sampaio da Nóvoa: “O cenário pior nas presidenciais seria uma segunda volta entre Gouveia e Melo e André Ventura”
Quase dez anos após ter alcançado mais de um milhão de votos nas presidenciais, António Sampaio da Nóvoa olha para as eleições de fora. Numa entrevista à TSF e ao JN, não esconde o desconforto com a situação política
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Estamos em plena campanha eleitoral para as autárquicas. A discussão sobre estas eleições foi prejudicada por termos tido um amplo debate em torno das presidenciais?
Houve uma sucessão de atos eleitorais e inevitavelmente as coisas acabam por se confundir em determinados momentos. No entanto, é muito importante dizer que estas autárquicas são talvez das eleições mais importantes das últimas décadas. A existência hoje de um partido claramente antidemocrático leva à necessidade de haver uma grande convergência dos democratas. O apelo que eu teria a fazer neste momento, a duas semanas das eleições, é um apelo de convergência progressista em torno dos mais bem posicionados para baterem os candidatos dessa força antidemocrática. Gostaria muito, muito, que no dia 12 de outubro, à noite, estivéssemos a celebrar a eleição de 308 presidentes da câmara todos vindos de forças democráticas.
Decidiu não avançar como candidato presidencial. A sua decisão prende-se com o apoio que acredita que o PS dará à candidatura de António José Seguro?
Tem a ver com muitas circunstâncias, mas alguns amigos dizem-me… “Estás demasiado amarrado ao que foi a campanha de 2016.” Foi uma campanha muito limpa, foi uma campanha muito bonita, foi uma campanha independente, foi uma campanha sem apoios partidários. Eu não tive apoio partidário para recolher uma assinatura.
Mas foi dada liberdade de voto no PS, apesar de haver uma candidata vinda do partido.
Exatamente. Alguns partidos perceberam que as eleições presidenciais têm de ser mais do que uma lógica estritamente partidária. Claro que foi muito importante naquela altura o apoio de Mário Soares, de Jorge Sampaio, de Ramalho Eanes.
O apoio do presidente do PS.
O apoio do presidente do PS. Neste momento, nem Mário Soares nem Jorge Sampaio estão cá, infelizmente.
Mas não sentiu outros apoios significativos de forças e personalidades de esquerda?
Senti muitos apoios e muita gente a falar. Não foi por isso que eu tomei aquela decisão que anunciei no dia 13 de agosto. Foi por sentir que podia eventualmente ser visto como um fator de divisão ou como um fator de fragmentação e eu nunca serei, na sociedade portuguesa, um fator de divisão ou de fragmentação. Se posso dar alguma coisa aos portugueses, é sempre numa perspetiva de convergência democrática, de uma independência que se constrói também com os partidos. É desse sentido de convergência que precisamos também nas presidenciais. Julgo que seria dramático para a nossa democracia a passagem de uma pessoa que tem revelado claramente tendências antidemocráticas, de ódio, de violência, de agressividade, à segunda volta. É muito importante essa convergência para que isso não aconteça.
Falou no risco de fragmentação, mas ao não avançar não abriu espaço a mais candidaturas à esquerda, como a de Catarina Martins?
O apelo que eu tenho a fazer a todos os candidatos que estão no terreno é que falem uns com os outros, que encontrem uma base de diálogo, que encontrem alguma coisa que nos permita ir às eleições com ânimo, com esperança e não apenas cumprir um dever partidário de votar no candidato do meu partido ou do outro partido. A possibilidade de que toda a gente fala, e que eu não quero imaginar, de uma segunda volta das presidenciais entre Gouveia e Melo e André Ventura seria uma derrota brutal para as correntes progressistas.
Como é que interpreta o almoço que foi mantido entre Gouveia e Melo e André Ventura?
Não quero muito pronunciar-me sobre candidatos concretos. Mas é verdade que num primeiro momento Henrique Gouveia e Melo parecia um candidato interessante, não estou a dizer que fosse extraordinário, mas tinha um currículo, uma história, e a maneira como tratou das questões da covid foi muito interessante, nomeadamente enfrentando negacionistas, etc. Mas em campanha, ao longo deste último ano, tem sido um ziguezague permanente, uma hesitação permanente, uma aproximação a forças antidemocráticas e de repente um piscar de olho a forças mais progressistas, tem-se mostrado um candidato, nesse sentido, pouco fiável e confiável nas suas posições. E por isso eu digo que o cenário pior para uma eleição presidencial seria imaginarmos uma segunda volta entre Gouveia Melo e André Ventura. A nossa democracia tem dois pilares essenciais, o Partido Socialista e o Partido Social Democrata. A fragilização de qualquer um destes partidos é uma péssima notícia para a democracia.
Mas é já nesse cenário que estamos, a partir do momento em que o PS passou a ser a terceira força.
Exatamente, é esse cenário que temos de combater, precisamos de um PS forte, robusto, bastião das liberdades e da democracia, precisamos de um PSD com a sua matriz social-democrata forte, que se alternem no poder, mas que sejam capazes de grandes compromissos para o país. E, na verdade, tanto a candidatura de Marques Mendes como a de António José Seguro podem ser difíceis e contribuir para uma certa diminuição, tanto de um partido como de outro. Talvez menos do PSD, porque está no Governo, mas pode ser um elemento muito nefasto e muito negativo para o PS, nomeadamente se não passar à segunda volta.
É por essa razão que entende que devem ser unidos esforços em torno de António José Seguro e foi uma das razões para não avançar.
Exatamente. Devem ser unidos esforços e devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que André Ventura não esteja na segunda volta das presidenciais. Se conseguirmos, nas autárquicas, criar uma barreira à eleição de presidentes de Câmara vindos do Chega, se conseguirmos, nas presidenciais, impedir a passagem à segunda volta, eu acho que recolocamos o Chega e as forças antidemocráticas no seu lugar. E o seu lugar é um lugar importante, mas representam pouco mais de um quinto dos votos dos portugueses. É desproporcional o tempo que ocupam na comunicação social.
Como olha para o papel dos media e a presença do empresário Mário Ferreira no almoço de que já falámos?
É desproporcional a interrupção de programas para darem notícias de Chega, a maneira como o Chega controla a agenda da comunicação social e parece que estamos todos a contribuir.
Controla pelo excesso de exposição?
E porque se lhes desculpa tudo. Eu ouvi vários comentadores, alguns dos quais eu admiro e aprecio, a desvalorizarem as propostas, ideias, declarações que André Ventura fez neste encontro em Espanha, em que disse que queria ir caçar imigrantes, o que é crime, em que disse que queria prender o primeiro-ministro, e eu vi as pessoas dizer, ah, isto são excessos de comícios feitos no estrangeiro. Não podemos desculpar isto. Não é um excesso retórico, são declarações criminosas e antidemocráticas.
A verdade é que em várias matérias tem havido um alinhamento entre o Governo e o Chega. Como é que podemos falar em convergência democrática ou em barreira ao Chega, quando o PSD assumiu que dialoga com todos?
Há uma coisa que nós sabemos da história. As grandes tragédias, nomeadamente os grandes totalitarismos, aconteceram pelo silêncio, pela conivência, pela cumplicidade de muita gente. E Portugal está muito adormecido. É preciso acordar os portugueses. É preciso combater um certo fatalismo. Eu nos últimos dias ouvi várias vezes de amigos próximos, “Ó António, já tivemos 50 anos de democracia e de Estado Social, já não foi mal”, “Ó António, a história é cíclica, vêm agora uns, vêm depois outros”, como se fosse uma fatalidade cairmos outra vez numa ditadura e recuarmos décadas no nosso desenvolvimento e no nosso país. Eu, pela minha parte, não estou disposto a perder o país que nos deu tanto esforço a construir, um país de dignidade, um país de democracia com imensos defeitos, sim, mas um país do qual nos orgulhamos. Se viermos do 25 de Abril até agora, provavelmente temos os 50 melhores anos da história de Portugal. Eu não estou disposto a perder este país sem luta, sem combate.
Como é que recuperamos, nessa ideia de convergência, eleitores zangados com os partidos que, na sua perceção, os desiludiram ao longo do meio século?
Recuperam-se com duas ou três coisas. A primeira é a confiança, e é por isso que as autárquicas são tão importantes. Nas autárquicas, na esmagadora maioria dos casos, há um conhecimento da pessoa, há uma confiança naquela pessoa concreta. Depois, conquista-se com boa governação e estabilidade. O grande problema que tivemos em Portugal e que abriu as portas a este populismo foi a instabilidade. Três dissoluções da Assembleia da República em pouco mais de três anos é uma violência brutal sobre a democracia.
Marcelo Rebelo de Sousa avaliou mal?
Quando falamos das dissoluções, utilizamos a metáfora da bomba atómica. A metáfora é feliz, porque quando se lança uma bomba atómica, arrasa-se muita coisa. E as três bombas atómicas lançadas em três anos foram uma violência democrática absolutamente imensa. As pessoas sentiram-se abandonadas, zangadas, e isso foi o pasto fértil para estes populismos.
Será uma marca inevitável de Marcelo Rebelo de Sousa?
Eu tenho uma enorme admiração por Marcelo Rebelo de Sousa, acho que é uma personalidade exemplar do ponto de vista democrático. É um homem de grande cultura. Fez discursos muitíssimo bons, ainda esta semana, na Assembleia Geral das Nações Unidas, um belíssimo discurso. Tem os valores certos, os princípios certos, mas não resistiu à intervenção diária, à intervenção constante.
Não despiu completamente a pele de comentador?
Ele um dia disse que uma das suas funções principais era ser um pica-balões. Isto é, sempre que há um problema, eu vou lá tentar esvaziar o balão. Na verdade, nunca esvaziou o balão. Encheu sempre, e ao encher ficou prisioneiro das palavras e as três dissoluções tornaram-se inevitáveis. Sem quebrar nenhuma confidencialidade, no tempo em que estive no Conselho de Estado e em que fui obrigado a pronunciar-me sobre algumas dessas dissoluções, fui sempre contra. A estabilidade é um valor maior para criar a confiança e o sentido de governação. E depois há um terceiro ponto que tem faltado de forma nítida na política portuguesa, que é uma ideia de futuro. Faltou nos governos dos últimos anos. Falta no Governo atual. E um presidente da República, na nossa arquitetura constitucional, devia justamente intervir menos no presente, a não ser nas questões do regular funcionamento das instituições democráticas, e devia ser portador de grandes consensos na sociedade, no prazo de 30, 40 anos, para conseguirmos construir um país que tem tudo para ser um dos melhores do mundo. Temos uma sociedade que é melhor do que o Estado e que a política. Precisamos de libertar essa sociedade. Estamos sempre a recomeçar, estamos sempre a deitar fora o caminho que fizemos. É este país do desperdício de oportunidades.
Há nesse desperdício uma responsabilidade de quem nos governa e governou.
Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Se me perguntar quais são duas das grandes personalidades deste país, nas últimas décadas da política, é muito fácil dizer-lhe Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Durante quase uma década, de 2015 até 2023, os portugueses deram-lhes confiança, renovaram a confiança, e sentiram-se abandonados. Faltou ali qualquer coisa, a governação não teve o ânimo, o ímpeto…
António Costa falhou ao país, nomeadamente quando se demitiu?
Sinto que falhou ao país até antes de ser demitido. Aquele último governo já não tinha fôlego, já não tinha ideia de futuro. A maneira como o próprio PRR foi construído foi muito mediana, sem grandes prioridades, sem grandes estratégias.
E como é que o PS pode sair da crise em que mergulhou?
Não vou dar conselhos a partidos, sobretudo a partidos nos quais nunca estive integrado. Agora, há um problema de fundo com os partidos em Portugal, viraram-se muito para dentro deles próprios.
O PS deve ser o parceiro do Governo para aprovar o orçamento, ainda que Luís Montenegro possa não excluir o Chega dessas conversações?
Não diria a mesma coisa há 10 anos, mas a cada momento temos de perceber onde é que está o problema principal, qual é a ameaça principal. Hoje a ameaça principal está claramente definida e portanto, sim, devemos fazer tudo para assegurar estabilidade. Não quer dizer que concordemos com tudo, não quer dizer que estejamos de acordo com tudo. É bom que haja uma crítica, porque isso faz parte da democracia. A democracia é a promessa de uma liberdade total, mas deve ser feito tudo para assegurar a continuidade deste Governo até ao final da legislatura.
Não há o risco de deixar o Chega liberto de responsabilidades, com mais espaço para ser oposição e crescer?
Não acredito nisso. Eu acho que o problema de Portugal está na estabilidade, ou ao contrário, na instabilidade que foi criada nestes últimos anos. Se conseguirmos dar estabilidade e uma boa governação, se conseguirmos um governo que mantenha o seu rumo...
Falou do cenário otimista de duas derrotas sucessivas do Chega. Vamos supor que no dia 13, pelo contrário, acordamos com o Chega fortalecido no território. Como é que, nesse caso, nos posicionamos?
Resistindo, tentando fazer tudo o que for possível para unir as forças democráticas, para honrar aqueles que nos trouxeram liberdade e aprofundando isso.
O resultado nas autárquicas deve ser tido em conta na avaliação que os candidatos presidenciais fazem dos jogos de forças?
Quaisquer eleições têm uma leitura política. Claro que os candidatos que estão no terreno, as pessoas, os partidos, os movimentos, os cidadãos, devem fazer uma leitura disso. Até antes desse dia, a conversa já é necessária agora. É necessário que falem.
Acredita que haja ainda uma desistência por parte de alguns dos candidatos?
Não sei. Não estou na cabeça deles, não estou dentro dos partidos. O que me custa muito em Portugal, e creio que às vezes isto está a acontecer, é que os partidos, na sua lógica interna, fecham-se na sua concha e às vezes preferem salvar a pele do que salvar o país. De repente um partido que tem 3% conseguiu um candidato que teve 3,5% e é uma vitória extraordinária, o país pouco importa.
Esse recado encaixa-se por exemplo no PCP e na forma como recusou coligações?
Encaixa-se de um modo geral em todos os partidos. A maneira como não se renovaram, não construíram novas gerações de quadros, não se abriram à sociedade, não conseguiram construir outras dinâmicas, é um dos fatores que nos trouxe aqui. Mas chegados aqui, a prioridade das prioridades é combater esta espécie de fatalidade, de inevitabilidade que o André Ventura muito inteligentemente tem deixado passar junto de toda a gente, mas que não é nem nenhuma fatalidade, nem nenhuma inevitabilidade. Precisamos de corrigir as imperfeições, já disse no discurso do Dia de Portugal em 2012, já lá vão 13 anos, quando utilizei a imagem de que há muitos Portugais dentro de Portugal. E se em 2012 havia muitos, em 2025 ainda há mais Portugais de desigualdades, de pobreza.
Quais são as nossas maiores assimetrias? Sociais ou territoriais?
São sociais. Há hoje um nível de vida médio aceitável em Portugal. Não é bom, mas é aceitável. Mas há bolsas de pobreza e de miséria absolutamente inaceitáveis. E também de pobreza e de miséria nos imigrantes, naqueles que acolhemos, o que é igualmente inaceitável. Há uma fratura social muito forte e há também as grandes desigualdades territoriais. Eu que nasci em Valença, que vivi no Minho, no Porto, em Coimbra, em Aveiro, em Lisboa e em Oeiras, que fiz várias voltas ao país ao longo da minha vida, às vezes estou em Arouca e dizem-me que é o interior dos interiores. Arouca em linha reta deve estar a 35 km do mar.
Essa desigualdade é a causa maior do ressentimento que tem dado espaço ao Chega.
A desigualdade é uma das causas maiores, aquela sensação de que não podemos conduzir a nossa vida, que não temos os instrumentos, os lugares para habitar, os lugares para trabalhar, etc., junto com a ideia de abandono. A ideia de que nós elegemos certas pessoas para cuidarem de nós, porque é esse o princípio da democracia, e sentimo-nos abandonados.
As redes sociais e o contexto internacional são fatores a ter igualmente em conta. Ou seja, Portugal não está sozinho relativamente aos extremismos e à polarização.
Toca em dois pontos absolutamente centrais. Primeiro, esta utilização do digital. O último relatório feito em França, no quadro da Assembleia Nacional Francesa, sobre o TikTok é absolutamente assustador. Isto é, o efeito que tem, nomeadamente nos jovens e nos mais pequenos, numa espécie de um controlo das mentes que é assustador. Nós não sabemos lidar com o digital. O digital é uma espécie de máquina extraordinária que puseram nas nossas mãos em muito pouco tempo e nós não sabemos o que fazer com isto. E receio que o mundo digital seja um mundo contrário ao da democracia. Porquê? Por duas razões principais. Porque a democracia é um exercício de tempo, de maturidade, de diálogo.
E o digital é um espaço de velocidade.
O digital é o contrário disso. E a democracia precisa de uma segunda coisa que é essencial, que são as mediações institucionais. O digital é o contrário disso tudo, é o instantâneo e é o direto. Eu receio que a democracia tal como a conhecemos esteja em sérios riscos face ao mundo digital, se não aprendermos muito rapidamente a lidar com ele. E depois, claro, os fenómenos internacionais. Julgo que estamos a assistir, com grande pena minha, a uma espécie de fim de uma época, que tem três datas. 1945, Nações Unidas, cooperação, multilateralismo. 1948, direitos humanos. 2015, agenda 2030 da sustentabilidade. Julgo que estamos a assistir ao fim de uma época destas três datas.
Quando anunciou que não seria candidato, disse que nunca virará as costas nem falhará ao seu país e que a cidadania exige coragem. Não lhe faltou coragem no momento de avançar?
A coragem está cá e estará sempre. Eu não tenho medo. Ao dar esta entrevista, estou a fazer uma intervenção pública cidadã, a pedir a convergência, a apelar aos candidatos das autárquicas, que são de uma importância extrema para os próximos anos, e aos candidatos presidenciais, estou a fazer o papel que julgo que me compete. Nos últimos 15 anos da minha vida, tenho tido uma grande proximidade com o general Ramalho Eanes. E em muitos momentos da minha vida, eu pedi-lhe conselho. Raramente dá, porque é uma pessoa de uma elegância, de uma delicadeza, de uma postura, mas ouve. A única coisa que ele me disse sempre foi: “Tome a decisão que lhe parece mais acertada, mas diga sempre que nunca falhará ao país se for preciso. É preciso que os portugueses saibam que não são abandonados e que se for preciso as pessoas estão cá”. E eu digo a mesma coisa. Não tenho nenhum plano. Se for preciso travar combates, estarei para os combates que for preciso travar.
