Construir mais casas não é solução para crise habitacional: ao Governo falta "focar nas pessoas e não no imobiliário"

Rita Chantre/Global Imagens (arquivo)
Ouvida no Fórum TSF, a arquiteta Helena Roseta lamenta que muitas vezes as câmaras municipais optem por "avançar à bruta com a demolição" de casas em "áreas urbanas de génese ilegal" e sublinha que "violência" é não garantir às famílias que nelas habitam uma "alternativa"
Nos últimos dias têm sido várias as notícias que dão conta da ocupação de terrenos baldios para a construção de casas abarracadas um pouco por todo o país, a par da ocupação de edifícios devolutos para o mesmo fim. No Fórum TSF, especialistas alertam que o que está a faltar para a resolução da crise na habitação é "focar nas pessoas e não no imobiliário".
Na segunda-feira, a TSF deu conta que o Bairro Marinhas do Tejo, em Loures, corria o risco ser demolido nessa mesma manhã, um local onde vivem cerca de 60 pessoas. Já na terça-feira, a PSP e a ASAE realizaram uma operação de fiscalização a uma antiga escola em Massamá, no concelho de Sinta, onde viviam mais de cem pessoas e 37 famílias. Nesta antiga escola, havia 50 quartos que eram cobrados a 500 euros por mês cada. Esta quarta-feira, as suspeitas recaem sobre um antigo edifício de escritórios em Queluz.
Helena Roseta, arquiteta e uma das vozes mais escutadas nesta matéria, nota desde logo que a lei de bases da habitação dita que ao Estado "compete" criar condições habitacionais para as famílias que habitam "áreas urbanas de génese ilegal ou núcleos precários". Lamenta, contudo, que o país assista, em vez disso, às Câmaras Municipais a avançarem "à bruta" com a demolição dessas casas.
A demolição não pode ser feita assim. Tem de ser feita com um processo de realojamento. Podem demolir se for uma coisa abusiva, alguém que roubou, assaltou e se instalou lá. Estas pessoas não usaram qualquer violência. A violência que existe é a nossa sociedade não lhes garantir nenhuma alternativa de habitação.
Além desta crise de valores que tem contribuído para agravar o problema, a arquiteta avança que há pessoas obrigadas a sair de casa para que as câmaras possam construir edifícios sem regras. Questiona, por isso, o que é feito do dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destinado à habitação.
"Alerto para uma lacuna: temos um enorme programa chamado PRR com milhões de euros. Todos os dias nos falam dos milhões do PRR. Há dois ou três mil milhões só para habitação, estão a ser construídas ou reabilitadas 26 mil casas e eu não ouço uma palavra nem do IHRU [Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana], nem do Governo sobre quem é que vai para essas casas, como é que é feito o realojamento, e se as necessidades que foram identificadas pelos municípios estão a ser cobertas por estas casas", nota.
Em causa está, por isso, a construção de "uma data de habitações", que depois poderão "não vão servir às situações mais prementes". Esta situação é inaceitável, defende, até porque implica "desperdiçar recursos" e não respeita os direitos humanos.
Arquiteto e urbanista, Tiago Mota Saraiva tem uma leitura idêntica da situação. Entende que a estratégia seguida até agora não tem dado resultados e a prova disso mesmo é que a construção de mais casas não implica uma descida dos preços.
Defende que o país devia estar "fundamentalmente" focado "nas pessoas e não no imobiliário" e alerta para uma perda de "inúmeras qualidades" do ponto de vista da "sensibilidade humanista".
Sublinha ainda que em Portugal existem 723 mil casas vazias, sendo que 15% estão localizadas em Lisboa e não são segunda habitação, nem mesmo alojamento local. Avança também que dois terços dessas "com pequenas ou nenhumas obras" estariam "disponíveis para serem habitadas". Mas nem só de alertas se fizeram as suas declarações, pelo que Tiago Mota Saraiva apresenta três soluções para a resolução desta crise.
Primeiro, é preciso entender que Portugal "não precisa de construir muito mais". Antes, deve atribuir uma nova vida a estas casas vazias e, sobretudo, definir "tetos de renda" como já fazem outros países europeus.
Para Jorge Malheiros, investigador do Instituto de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, o problema é mundial, mas o caso português demonstra um falhanço claro e dá exemplos de medidas que considera erradas.
A "preocupação" com a alteração da lei dos solos é uma delas. Lamenta o argumento de que "é necessário construir mais habitação e não apenas habitação acessível" e garante que a mudança "visa apenas ter uma oferta maior para os segmentos que já podem pagar habitação".
A possibilidade de haver transmissibilidade das licenças do alojamento local no ato de compra e venda dos imóveis é também alvo de críticas.
"Há dois processos que contribuem para o aumento dos preços da habitação que têm que ver com componentes exógenas - externas - à procura da população residente: o aumento da procura turística, a expansão fortíssima do alojamento local e a procura externa da habitação, designadamente impulsionada por mecanismos como os vistos gold e a existência de nómadas digitais", atira.
Para a tarde desta quarta-feira esteve previsto um debate de urgência pedido pelo PCP sobre habitação, mas não houve consenso na Conferência de Líderes e, por isso, foi adiado.
