O "animal político" adepto de power naps que sabia o que queria na vida e à mesa: era assim o resistente Mário Soares
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A vida pré e pós-25 de Abril exigia "coragem e determinação", mas estas foram "caraterísticas próprias" reconhecidas em Mário Soares desde cedo: quem o conhecia, descreve-o como um "homem de ideário", um "verdadeiro socialista democrático", mas também "um animal político capaz de travar mil batalhas", graças ao seu "discurso agregador". No fundo, "era mesmo um homem bom".
João Lopes Soares, ministro das Colónias, "sempre teve uma noção premonitória" em relação ao filho. Fundador do Colégio Moderno, fez questão que Mário Soares fosse acompanhado por "professores de eleição, mesmo fora da escolaridade".
"Como Agostinho da Silva, por exemplo - o grande filósofo -, que lhe dava aulas, acompanhando-o no Jardim do Campo Grande [agora Jardim Mário Soares], onde ele já morava na altura", recorda Vitor Ramalho, autor do livro 'Crónica de Uma Amizade Fixe'.
Esta educação permitiu-lhe obter uma "cultura invulgar", tendo-se tornado num assumido "leitor compulsivo". A expressão não é usada com ligeireza, já que, ao longo dos anos, conseguiu colecionar para a sua biblioteca pessoal mais de 50 mil livros.
Mário Soares "sabia o que queria na vida", mas não só: à mesa sempre mostrou ser um "verdadeiro português". Dotado de "um sorriso largo de quem ama a vida", o que gostava era "de boa comida".
"Adorava um bom bife a cavalo, pastéis de bacalhau e favas", revela o seu amigo.
Mais tarde, descobriu também prazer ao "ser questionado com perspicácia", sem nunca se ter coibido de "filosofar sobre a vida, a política e a situação atual de todos os países".
"Se o questionassem com leviandade, ele desprezava-as e esmigalhava-as, porque não tinha pudor em dizer o que pensava", conta a mandatária para a Juventude na candidatura do socialista às eleições de 1991, Margarida Pinto Correia.
É assim que, aos 18 anos, em 1942, inicia a sua atividade política, distribuindo propaganda comunista e do Movimento de Unidade Nacional Antifascista. Numa demonstração de "muita coragem", optou desde cedo "pela via política".
Mais tarde, em 1944, junta-se ao Partido Comunista Português - um laço que desata pouco depois - e é também assim que até 1974 impõe o seu contributo contra o regime ditatorial que assolou o país durante quase meio século.
Em 25 de Abril de 1974 cumpre-se o desejo de um país, mas também deste homem. A luta pela democracia atirou-o várias vezes para trás das grades.
Três dias após este dia histórico, Mário Soares regressa do exílio, em Paris, França, e é recebido com entusiasmo na estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Era já uma das caras da revolução.
Um ano antes, é fundado o PS, nos arredores de Bona, Alemanha. Mário Soares é eleito secretário-geral do partido político. E é assim que, após ter exercido funções como primeiro-ministro de três Governos constitucionais (1976/1978, 1978 e 1983/1985), é aprovado, por unanimidade, a sua candidatura à Presidência da República.
Com 51,8% dos votos, Mário Soares derrota Freitas do Amaral, em 1986, e torna-se o primeiro civil a ocupar a Presidência da República desde a queda da I República, em 1926.
Cinco anos mais tarde é reeleito com 70,4% dos votos. E é a convivência com o então chefe de Estado, nesta altura, que permite a Margarida Pinto Correia destapar uma faceta menos conhecida do homem que passou vários anos na estrada em campanha.
"Andávamos no carro a percorrer o país por todas as estradas possíveis e o dr. Mário Soares dormia com muita facilidade e fazia uma power nap [sesta rápida]. Os cinco minutos em que ele dormia eram ótimos porque acordava como novo", afirma.
Confessa por isso que, no início, ficava "estarrecida" com a hipótese de que Soares apenas fosse capaz de "balbuciar" discursos. Mas a realidade não era bem essa.
"Ele discursava numa terriola qualquer, entrava no carro, falava um bocadinho e dizia: 'Pronto, agora vou descansar.' E adormecia profundamente", aponta, acrescentando que, quando chegava ao destino pretendido, 20 ou cem quilómetros à frente, Mário Soares mostrava-se detentor de um "discurso inflamado", para surpresa de todos.
Mas os tempos da resistência deixaram-lhe marcas profundas na sua personalidade, moldando-a uma vez mais: passou a ter "uma necessidade instintiva de controlar o ambiente". Esta hipervigilância capacitou-o de "uma capacidade de antecipar e prever acontecimentos espantosa".
O socialista estava "habituado, desde a oposição, a perceber se havia algum pito escondido ou que estivesse num sítio onde podia caçá-lo", explica a antiga assessora do ex-Presidente da República, Estrela Serrano.
"Ele tinha um olhar que havia pessoas que diziam: 'O Presidente parece que não está a prestar atenção.' E eu dizia: 'Não, isso é uma coisa que vem da oposição. Ele tem necessidade de, instintivamente, controlar o ambiente onde está e ver, com uma vista de olhos rápida, mas estava a ouvir tudo aquilo que era dito'", esclarece.
O mesmo rigor era sentido na relação do cofundador do PS com os media, também adjetivada como "muito intensa": "Queria saber tudo o que se dizia, o que é o país menos ligado à imprensa escrita dizia, porque ele nunca saía de casa de manhã sem ter lido jornais nacionais e o Le Monde e outros [jornais] franceses, porque era a segunda língua dele."
Mário Soares ficava por isso "furioso" com fugas de informação vindas de Belém, pois considerava que estas eram uma "falta de confiança".
Foi a partir desta "vida cheia de acontecimentos" que nasceu o mote para a realização de um filme sobre o antigo Presidente da República: a película "Soares é fixe" incide sobretudo sobre a corrida renhida a Belém, em 1986, em que teve como principal adversário Freitas do Amaral.
O argumentista João Lacerda Matos, autor desta longa-metragem, conta também como foi escrever sobre o “Presidente de todos os portugueses”, que recorda como um homem que lutava pela união.
"Mário Soares estava lá também para depois, logo a seguir de receber os resultados, dizer que era o 'Presidente de todos os portugueses', e isso foi uma frase que, aliás, ficou e ainda hoje é utilizada. Sempre que um Presidente é eleito volta a essa frase", nota.
João Lacerda Matos enumera as razões que levaram à escolha do título do filme, destacando que 'Soares é fixe' "é, talvez, um dos maiores ou dos melhores slogans de sempre por tudo aquilo que engloba".
"É também a ideia de uma campanha eleitoral, que começa com muito poucas hipóteses de vitória, e através dessa mistura entre juventude e veterania, entre um animal político de capaz de travar mil batalhas e uma força que conseguiu ter junto dos jovens. Não é apenas o 'Soares é fixe' como o slogan, mas é também uma referência à participação de muitos atores, cantores, músicos e autores junto da campanha. Há uma onda de juventude e de vontade de permanecer na mudança que são, obviamente, muito atrativas para quem vai depois escrever uma história dramática que pretende ser uma visão ficcional daquilo que é o facto histórico e, portanto, tem sempre um lado de autor, não só de quem escreve o guião, mas também de quem realizou o filme", justifica.
O antigo chefe de Estado nasceu a 7 de dezembro de 1924, uma data que será assinalada esta sexta-feira (6 de dezembro) com uma sessão solene na Assembleia da República, além de um vasto programa que irá estender-se até ao final de 2025, com várias iniciativas espalhadas pelo país. Na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, será feita este sábado uma cerimónia de apresentação do III volume da Coleção Obras de Mário Soares - "Escritos da Resistência".
*com Joana Amarante, Cristina Lai Men e Inês Cortez