Diamantino Antunes, o bispo de Tete, em Moçambique, fala dos massacres e dos mártires do passado, da violência em Cabo Delgado e dos desafios presentes e futuros de Moçambique, um país onde são mais os candidatos a sacerdotes católicos, que os lugares disponíveis nos seminários
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Dom Diamantino Antunes é o bispo de Tete, no Norte de Moçambique. Sente que pairam ainda por lá os fantasmas dos massacres que ali foram praticados pela tropa portuguesa em tempos de guerra colonial? Foi já há meio século...
Sim, há meio século, um massacre, os mais conhecidos o massacre de Wiriyamu e o massacre de de Mocumbura. Mocumbura foi antes, em 1971, e Wiriyamu em 1972. Ambos na província de Tete e na diocese de Tete, onde sou bispo. A história e o tempo ocupa-se de sarar as feridas e eu penso que sim, que são aspetos negativos da nossa presença em Moçambique. Mas penso que os fantasmas já estão exorcizados. Isso é fruto de um trabalho de cooperação e de diálogo entre os dois estados que, não esquecendo a história, olham para o futuro. E nós como igreja estivemos presentes dando a conhecer estes massacres. Eu, pessoalmente, também a quando dos 50 anos do massacre de Mocumbura, menos conhecido com os missionários que estão lá, que voltaram há pouco tempo já depois dessa data: os missionários Padres de Burgos. Fizemos uma cerimónia e arranjamos o túmulo e fizemos um ato de reconciliação, estando presentes familiares e outros testemunhos. No que diz ao massacre de Wiriyamu é mais conhecido pela proximidade da Tete e pelo impacto que teve a nível internacional pelo número das vítimas. Penso que é parte da história de Moçambique, mas penso que é importante é pensar no futuro.
Acha, portanto, que a guerra colonial está definitivamente enterrada em Moçambique?
Enterrada, não direi, mas penso que superada e estamos num patamar de de relação entre os dois povos que consideram mais importante ver o positivo, o futuro do que olhar ao passado e aos seus fantasmas. Eu também experimentei isso, que essa superação é possível. Eu, quando fui nomeado bispo de Tete, nunca tendo trabalhado na diocese de Tete, sendo português, eu senti também um certo medo. Como é que vou ser recebido? Qual vai ser a reação do povo? E sinceramente, fui recebido bem, ultrapassou as minhas expectativas e importante, de facto, é trabalhar, é manter relações com todos, sermos pessoas de de consenso e trabalhar para o desenvolvimento daquele povo que necessita. Necessita muito.
Dom Diamantino: por estes dias levanta-se entre nós a polémica política sobre as restituições de obras de arte e outras, às antigas colónias portuguesas. Como é que o atual Bispo de Tete, que é português, reage à polémica que segue cada vez mais alterada entre nós?
Sobre a situação das obras de culturais, de arte, acho bem, havendo condições para as conservar em Moçambique. O que é uma dificuldade, temos também que ser realistas. Porque é evidente que com tantas necessidades que o país tem prioridades, sem dúvida, nem sempre a cultura ou os museus ou os espaço de memória, têm os meios para poder conservar e preservar a memória histórica. Então eu digo, sim, é um ato de reparação, havendo condições para as acolher e conservar.
Dom Diamantino Antunes acaba de lançar um livro que se intitula “Martírio e liberdade: os mártires de Chapotera”. Quem são estes mártires e que livro é este “Martírio e liberdade”?
Os mártires de Chapotera são dois missionários jesuítas que foram mortos no dia 30 de outubro de 1985 em plena guerra civil Ou incivil porque foi uma guerra incivil, com muita violência, com muita morte. Quem eram estes dois mártires de Chapotera? Chapotera é o nome da aldeia onde eles viviam e foram mortos. E quem eram eles? Um moçambicano, o padre João de Deus Kamtedza, o primeiro sacerdote jesuíta moçambicano, o homem que optou já em idade madura por ser sacerdote missionário, fez a sua formação em Portugal e em Espanha e voltou em 1964, ao seu país, voltou à província de Tete, ao distrito de Angónia. Ele sempre trabalhou como missionário. Foi um homem que desenvolveu muito a língua e a cultura do seu povo – o povo angone -, e que se dedicou totalmente à evangelização e a promoção do Homem através da da educação e do empenho cívico, seja antes da independência e depois da independência. O padre Silvio Alves Moreira era dez anos mais novo do que ele - nasceu em 1941 em Reunião, Santa Maria da Feira. Era um jesuita português, foi ordenado em 1972, já próximo da independência. Envolveu-se com um espírito de grande abertura no que diz respeito à preparação da autodeterminação de Moçambique que aconteceu em 1975. E depois permaneceu no território moçambicano, num momento em que muitos missionários tiveram que abandonar o país. Foi um homem que se dedicou muito às pessoas com um carácter simples, aberto, generoso e corajoso, denunciando juntamente com o padre João de Deus Kamtedza, as arbitrariedades, os massacres que eram perpetados por ambas as partes, pela guerrilha da Renamo, e pelo exército governamental no conflito em 1985. Foi um ano horrível da guerra civil em Moçambique e sabemos que, como dizem em África, quando dois elefantes lutam entre si, quem sofre é o capim, é a erva. E quem sofria, de facto, era o povo. E os dois missionários optaram ficar naquela zona de conflito para denunciar as arbitrariedades, seja de uma parte, seja da outra, e ser profetas de paz e de denúncia da situação de injustiça que se vivia. Portanto, eram testemunhas incómodas, foram profetas missionários de fé, caridade e coragem, e por isso foram eliminados. Foram mortos de modo muito brutal, no dia 30 de outubro de 1985, em Chapotera. Veio um comando de homens armados. Tiraram-os de casa e conduziram-os ao lugar isolado e depois de torturas, mataram-os com golpes de de armas brancas e os corpos foram abandonados. Ninguém sabia onde estavam, pensavam até que tinham sido raptados. Os corpos foram encontrados cinco dias depois, já em estado de decomposição, comidos pelas feras. Isso foi um castigo, foi um a pena. A morte levada às suas últimas consequências e de modo muito inumano. Uma das causas que estão por trás da morte deles foi o facto de eles sepultarem os cadáveres das pessoas que eram mortas e que de propósito eram deixadas sem sepultura. Então eles faziam este ato de caridade, mobilizando a população. E quando os mataram, e abandonaram os corpos num lugar apartado, escondido, era próprio para que eles tivessem o mesmo fim daqueles que sepultaram por caridade.
Ninguém se levantou como autor da tremenda tragédia?
Não, mas o povo sabe, a memória, sabe. Ninguém se levantou e mesmo hoje nós, no inquérito diocesano para a beatificação, tivemos que ir ouvir não apenas aqueles que testemunharam e que os conheceram e trabalharam com eles, e beneficiaram da sua ação de caridade, evangelização, mas também procurar os autores materiais do massacre. Todos morreram e também de um modo muito violento, porque sabemos que quem com armas mata com armas morre. E os autores morais terão de prestar contas um dia por este ato. Mas o que o que está por trás, sem dúvida, do assassinato destes dois missionários, foram razões de carácter religioso, e querer silenciar uma voz incómoda.
Além de autor do livro, Dom Diamantino é também postulador da causa de beatificação destes padres jesuítas, de que falou agora assassinados há 39 anos, durante a guerra civil de Moçambique. Dom Diamantino, permita-me a pergunta: Moçambique ainda cheira a sangue?
Sim. A igreja – e falo no contexto da igreja mas posso falar a nível geral- (Moçambique) é um país de pessoas pacíficas e um povo bom, mas onde a violência da guerra ao longo da história tem produzido muitas vítimas mártires. E a igreja moçambicana é uma igreja ministerial, uma igreja missionária, e também uma igreja martirial. Foram muitos aqueles que nesta história depois da independência e antes, pagaram um preço muito alto pelo seu testemunho cristão. Tivemos a padres, irmãs, catequistas perseguidos. E outros que morreram, doando-se totalmente pela causa do evangelho. Não foi o caso destes mártires, mortos propositadamente, mas ficando entre as pessoas, procurando ser bons pastores e estar entre o povo, que foram vítimas muitas vezes de fogo cruzado, emboscadas e pagaram com a própria vida, o preço da sua fidelidade ao povo e ao evangelho.
Ao olharmos para estes dias, parece haver, de facto, maior cuidado da igreja moçambicana, da igreja católica que está em Moçambique, pela memória dos seus heróis. Há aí um outro grupo que foi mártir: os mártires catequistas de Guiúa, também em Moçambique.
Sim. E recentemente tivemos também, no ano 2022, a morte de uma missionária comboniana a irmã Maria de Coppi, que foi assassinada por estes insurgentes que estão a criar essa guerra, essa violência em Cabo Delgado, embora ela tenha sido morta numa missão na diocese de Nacala, na província de Nampula. Mas os mártires de Guiúa são todos leigos. Há catequistas, homens, mulheres e alguns, seus filhos, crianças. Eles foram mortos já numa outra província, numa outra diocese, na diocese de Inhambane, no sul do país. E eles estavam em formação no Centro Catequético de Guiúa, e para iniciar um ano de formação bíblica catequética humana quando o centro foi atacado por forças da guerrilha. Ao contrário do massacre de Chaputera, foi a outra parte em conflito. Foram raptados, levados e interrogados, deram testemunho de fé muito grande, disseram quem eram, o que estavam ali a fazer e foram mortos, também de modo muito violento com golpes de arma branca. O seu testemunho, como aliás, os dos mártires de Chapotera, mantém-se vivo ao longo destes anos. Eles foram assassinados no dia 22 de março de 1992, já muito próximo do Acordo Geral de Paz que foi assinado em 4 de outubro de desse ano. A razão de nós estarmos a evocar estes mártires, não é ressuscitar mortos, pessoas esquecidas, não... A memória do povo e não só do do povo cristão católico, recorda-os e têm-nos como exemplo de pessoas que doaram a sua vida a favor dos outros.
Dom Diamantino, com 25 anos de missionário em terras moçambicana e cinco anos de bispo de Tete, como olha para a intervenção da igreja católica neste país independente, uma antiga colónia portuguesa? Que pastoral a assiste neste momento?
Hoje, a igreja católica tem um rosto diferente de há 50 anos. Hoje, é uma igreja moçambicana bastante enraizada no contexto sociocultural...
Podíamos dizer mais laical que clerical?
Certamente. É uma igreja ministrial, onde os leigos têm um papel muito importante e não só para fazer, mas também para decidir. A Igreja, hoje, fala muito de si na realidade, mas há algo que nós ali refletimos pouco e vivemos já há 50 anos, até antes de de 75.
Aí, sopra o espírito de Francisco...
Sem dúvida! Uma igreja de todos para todos, onde os leigos têm um papel muito relevante, não apenas porque os sacerdotes são poucos. Repare, a diocese de Tete onde eu sou bispo, é maior que Portuga, territorialmente. Todo Portugal, continental e insular. Nós temos 40 missões, 1150 comunidades, digamos capelas. Ora bem, eu só tenho 70 sacerdotes,para um território tão grande e estamos a falar de uma população de três milhões de habitantes, dos quais 750 mil são católicos. Então, seria impossível ter uma igreja que cresce, que se consolida sem a presença e o trabalho gratuito dos nossos catequistas. Eles são os primeiros missionários, são os primeiros evangelizadores e são os grandes animadores. Agora, é evidente que sacerdotes são necessários, para a parte sacramental, para orientar. Mas no fundo, é uma igreja ministerial, laical, de pequenas comunidades, e martirial também, porque o martírio faz parte não só da história da igreja em geral, mas da história da igreja de Moçambique. Ontem e hoje , e eu penso que sempre.
A sua presença em Moçambique como bispo de uma diocese local, e sendo português, significa que o episcopado moçambicano está aberto à interculturalidade das diferenças? Como sabe, por mais de cinco séculos, o episcopado moçambicano esteve nas mãos de bispos estrangeiros e não africanos.
É evidente que eu escolhi ser padre, não escolhi ser bispo. E alguém escolheu por mim, foi o Santo Padre. E é evidente que depois da independência, deu-se prioridade à nomeação de bispos moçambicanos, justamente e corretamente. Mas é evidente que para certas situações é necessário também – porque a igreja é universal, é Internacional – ter este espírito de integração e é esta pluralidade. A minha escolha para bispo de Moçambique como outros - eu não sou o único bispo não moçambicano -, e somos 3: um bispo italiano, um bispo espanhol e eu. Um intaliano e um espanhol, não faria assim muita dificuldade. Agora, um português, sem dúvida. Eu penso que que, no fundo, o que conta na igreja e sobretudo para o povo, não é nacionalidade, não é o bilhete de identidade. É que tu és, aquilo que tu fazes, como consegues interagir com as pessoas... Como eu disse no início, eu senti um certo receio de ir para uma diocese onde não era conhecido, onde houve também esses massacres que ainda estão muito presentes, e questionei-me “como vou ser acolhido?”. Fui acolhido muito, muito bem, porque as pessoas não olham para a tua cara. Olham para o teu coração e penso que nesse aspecto, o episcopado moçambicano, sem dúvida. futuramente será todo moçambicano. Dificuldade também é ter sacerdotes em número e qualidade para este ministério tão importante. Essa prioridade é importante e representa aquilo que a Igreja é, a sua universalidade.
A propósito, como é que é recordada a memória de alguns bispos portugueses que se tornaram célebres como Dom Sebastião Soares de Resende, que foi bispo da Beira, e Dom Manuel Vieira Pinto, arcebispo de Nampula? Há 50 anos, este bispo era expulso da sua diocese pela polícia política portuguesa. Como é que eles são recordados?
Nós temos boas boas figuras do episcopado moçambicano de origem portuguesa. Destacou dois que sobressaem. Sobre Sebastião Soares de Resende, ontem estive na sua terra, Santa Maria da Feira. De facto, ele foi e é considerado profeta em Moçambique pela sua atitude de proximidade ao povo moçambicano, e também pela sua coragem em desafiar a estrutura do sistema colonial, denunciando os seus erros, os seus excessos. De facto, é uma referência em Moçambique. Sebastião Soares de Resende, pela grandeza da sua pessoa, do seu pensamento e, sobretudo, pela sua obra pastoral. Ele escolheu ser sepultado no cemitério de Santa Isabel, na cidade da Beira, no corredor central, numa campa rasa, para que a população pudesse passar por cima dele. A primeira vez que eu fui à Beira, eu fui aquele cemitério e vi flores. Ele ainda é recordado, embora tenha morrido em 1966, o ano em que eu nasci. A sua memória está viva pela sua obra e pela sua pessoa. Outro grande - esse conheci - é Dom Manuel Vieira Pinto. Eu, quando cheguei a Moçambique pela primeira vez em 1992, e em seguida conheci-o, enquanto ainda arcebispo de Nampula, foi sem dúvida uma figura proeminente do episcopado, não só no tempo colonial, sobretudo também depois, já com o episcopado quase totalmente moçambicano. Um homem de coragem, profeta, com um pensamento pastoral muito próprio e que, sem dúvida, deu um contributo grande não só à igreja católica de Moçambique, mas também ao estado moçambicano. E foi um homem que conseguiu fazer pontes. É no momento muito difícil, de grande tensão e dificuldade para a igreja católica conseguiu, com o relacionamento que ele tinha com o presidente Samora Machel e com outras autoridades conseguiu, digamos assim, um equilíbrio que foi importante para a igreja e o estado moçambicano se aproximarem e se reconciliarem.
Uma outra questão que julgo pertinente, Dom Diamantino, é como se reflete em Moçambique, a crise vocacional que se abate sobre a igreja? Parece que secaram na Europa, as vocações e em África, estão a ressurgir. Não há crise de vocações em África?
Não, não. De facto, os nossos problemas não são os problemas da Europa, e os problemas da Europa também não são os nossos problemas. Olhe, nós temos uma primavera vocacional muito grande em Moçambique. Como sabe, depois da independência, os seminários foram encerrados e aí ficaram encerrados, por ordem do Governo, ate mais ou menos 1986 ou 87. Quando foi a independência, havia cerca 50 sacerdotes de moçambicanos. Hoje, já são mais de 500 e não são suficientes. Os nossos seminários estão cheios. A nossa dificuldade é ter lugar para os acolher e ter equipas formadoras para os formar. Aqui em Portugal e na Europa, nós temos seminários, temos equipas formadoras. não temos seminaristas. Posso dizer que nós estamos abertos a essa colaboração. Eu estou em Portugal nestes dias para a contactos com as dioceses. Nós vamos mandar este ano ainda, quatro seminaristas da nossa diocese estudar para o Seminário Arquidiocesano de Évora. O bispo de Évora tem a ideia de um seminário da lusofonia. Ele tem poucos seminaristas, pouquíssimos e recebe seminaristas de Angola - eu vi lá seminaristas de Angola – de Cabo Verde, de Timor-Leste, agora vai receber de Moçambique. Com o objetivo objetivo de nos ajudar a formar o nosso clero de modo mais qualificado e depois é evidente que nós, por muito pobres que sejamos, devemos dar também da nossa pobreza. Estes nossos seminaristas, depois da ordenação, ficarão alguns anos ao serviço da arquidiocese de Évora para agradecer, a ajuda que nos deram e depois voltarão para a nossa diocese. Acho que estamos a caminhar e é importante, e falo isso muitas vezes. Eu penso que a reparação passa por isso mesmo: dar oportunidade aos jovens moçambicanos de se formar em Portugal de modo qualificado. Estamos a fazê-lo já há muitos anos na área da educação, da saúde, das engenharias. Eu penso também na formação dos sacerdotes. Porque o sacerdote em Moçambique – o sacerdote católico - tem uma autoridade muito grande que vai além do âmbito católico pelo que representa e por aquilo que é. Então, tendo sacerdotes bem formados também como uma certa ligação afetiva a Portugal, eu penso que é importante para nós, para repararmos o passado.
Antes de concluirmos esta entrevista, será necessário saber que cenário se levanta ainda em Cabo Delgado, na diocese de Pemba, onde o terrorismo islâmico é tropeço de todos os dias. Temos ainda a guerra levantada.
É uma pedra de tropeço muito grande e que está produzindo muitas feridas, caídas e feridas. Como sabe, esta insurgência começou de modo assim, muito silencioso em 2017. É como o crocodilo quando sai da casca do ovo, é quase inofensivo, mas depois vai crescendo, e torna-se muito agressivo. O problema é que, de facto, esse crocodilo em criança, não se lhe deu muita importância, e deixou-se crescer. É um problema grave que afeta não apenas a província de Cabo Delgado, mas todo o país porque Cabo Delgado é Moçambique. Os habitantes de Cabo Delgado são moçambicanos e, de facto, isto cria um ambiente de instabilidade e muito sofrimento. Além das mortes, nós temos milhares e milhares de pessoas deslocadas que há anos já estão fora das suas terras de origem. E esta província está muito sacrificada. Aquilo que aconteceu nos anos 60 com a guerra colonial, quando a população teve que abandonar as suas terras, refugiar-se em lugares mais seguros na Tanzânia. Depois, na guerra civil, novamente. Este é o terceiro êxodo e muito sofrimento.
Nos últimos dias, em Macomia, que era um sítio supostamente não atingido por estes ataques, foi vítima de grandes sobressaltos. As notícias chegaram até cá.
Sim, para surpresa minha, porque tinha sido atingido, tinha sido ocupada, mas com a presença destas força multinacional estava defendida e pensava-se que não houvesse ataque. Só que, claro, a força multinacional está a prazo, e isso demonstra que talvez as forças de defesa nacional não estão suficientemente preparadas ainda para fazer frente a uma insurgência que nós não conhecemos de onde vem, como está organizada, mas que é eficaz, como qualquer tipo de guerrilha.
Mesmo assim, eu queria perguntar-lhe que objetivos, na sua opinião, poderão estar por detrás desta perseguição em Cabo Delgado
Eu não sei. Certamente, serão muitos. Há motivos religiosos.Não sei se serão só. Certamente não serão só, mas há uma cobertura religiosa, ao mesmo tempo ideológica. Há motivos económicos, sem dúvida, porque é uma zona rica e de facto, muçulmanos não há apenas na província de Cabo Delgado, também há em outras províncias.
E as multinacionais estão lá...
As multinacionais estão lá enquanto houver segurança e poderão operar se houver paz. Não havendo segurança, é mais dificil. Haverá, porventura também, motivos políticos, não sei.É uma mistura de de causas que, para resolver este problema, todas elas têm que ser identificadas e procurar corrigir aquilo que não está bem.
Para além das denúncias, a igreja poderá fazer mais ainda.
A igreja não denuncia apenas. A igreja católica, juntamente com outras instituições, está ali também para curar as feridas e nesse aspecto, a diocese de Pemba, a igreja católica em Moçambique e também a igreja católica, a nível universal, tem ajudado os deslocados no seu acolhimento, na sua integração, com ajuda alimentar, a medicamentosa, o apoio também espiritual e psicológico tem sido uma presença muito efetiva junto da população deslocada não só em Cabo Delgado, mas também nas províncias vizinhas, onde também há deslocados. Em Nampula, em nacala e também, em menor número, no Niassa.
Mesmo para fechar, deixe-me perguntar-lhe que repercussão tem a guerra que se trava na Rússia contra a Ucrânia. Que repercussão tem esta guerra no país africano que é Moçambique?
Repercussões negativas, porque o mundo é uma família global. E quais são as as repercussões maiores? Primeiro, o aumento dos preços dos produtos. Imagine um país que vive da agricultura - eu falo de um continente da agricultura - o aumento dos adubos foi exponencial e isso quebrou muito, dificultou muito, a vida dos agricultores, que já são pobres. Não produzimos trigo em Moçambique e na África, e quanto aumenta a farinha do pão, que é base do pão, é base da alimentação, e provoca o aumento dos preços. E depois também a diminuição das ajudas, porque é evidente, eu falo no âmbito católico. Há organizações católicas que nos ajudam, mas é evidente que perante esta urgência e prioridade à Ucrânia, muitos fundos foram canalizados para lá, justamente. Nós também, nesse sentido, nos sentimos penalizados.
A fome de alimentos atingiu Moçambique?
Moçambique é um país com grandes potencialidades agrícolas. A dificuldade está nestas mudanças climáticas. Por exemplo, este ano houve inundações Maputo e seca em Tete. No mesmo país. Quer dizer, não choveu praticamente em Tete.
O Brasil está a mostrar estes dias que é exatamente assim.
Claro. É uma agricultura de subsistência. Se falha as chuvas no momento próprio, perdem a colheita. Perdendo a colheita, perdem a alimentação porque a alimentação tem como base o milho, o feijão, e também aquilo que poderia sobrar para vender para ter uma entrada.Em Moçambique, não deveria de haver fome porque a produção, ao menos em algumas zonas, é grande. Dificuldades: transporte, comercialização e depois estas calamidades naturais que às vezes por muita chuva ou por ausência de chuva, condicionam a produção agrícola, a colheita.
Há lugar para a paz em Moçambique?
Eu penso que sim, e se não tivéssemos este problema de insurgência em Cabo Delgado, podíamos dizer que o país já estaria pacificado. Pelo menos essa tensão, esse conflito das forças de segurança e das forças da Renamo está superado. Agora, é evidente que não podemos alimentar e as tensões e os conflitos. Daí a grande responsabilidade que tem os políticos de procurar primeiro lugar, o bem comum e considerar todos como moçambicanos e procurar integrar todos, e não excluir ninguém.
E vem aí as próximas eleições?
E vem as próximas eleições no próximo mês de Outubro. Cada partido já tem o seu candidato, o que é bom. Agora, é importante que os candidatos apresentem os seus programas. A Frelimo acabou de escolher o seu candidato, porque o presidente (Filipe Nyusi) terminou o segundo mandato e não se vai recandidatar e já tem um candidato novo, Daniel Chapo, até agora governador de Inhambane, um jovem.
Tem esperança nesse Moçambique a que se entregou há quase 30 anos?
Eu, sim. Muita esperança. Comparando Moçambique hoje com 1992 eu vi tanta mudança. Eu acho que o povo moçambicano nunca viveu um tempo tão favorável. Há paz, há desenvolvimento, e isso é o mais importante. A paz é o mais importante. Temos grandes desafios. Repare que mais de metade da população tem menos de 18 anos. O grande desafio dos jovens é o emprego e ter oportunidades para a sua vida, porque, multiplicaram-se as escolas e as universidades, e houve um avanço enorme. Só que o problema é o que fazer com o meu certificado de estudos. Se não tenho o trabalho ou o emprego, isso cria uma frustração muito grande. Eu penso que o grande desenvolvimento, a grande batalha em Moçambique hoje, é essa: dar condições aos jovens para poderem ter futuro. Se não, os jovens vão rebelar-se. Estão insatisfeitos.
Não vão ter futuro...
Não vão ter futuro nem vão ser protagonistas do futuro. Não vão construir um futuro melhor se não conseguimos dar-lhes condições. Daí que é muito importante o desenvolvimento económico, a cooperação, empresas que venham de fora desenvolver o país de modo que os jovens possam ter a possibilidade de ter ao fim do mês, um mínimo para sobreviver. Senão, a situação torna-se incomportável. Não é possível, porque o jovem que estuda depois já não quer voltar à aldeia, já não quer voltar a pegar na enxada. Os seus pais, sim. Os seus avós, sim. Hoje, ele já conhece a cidade, conhece o progresso, tem acesso através de telefone, da Internet, a todo mundo global. Então, ele quer participar nesse mundo, mas vê-se excluído, porque não tem oportunidade. Isso cria um sentimento de frustração muito grande. E muitos daqueles que estão a fazer a guerra lá em em Cabo Delgado, são jovens. São jovens que, talvez, viram na guerra uma oportunidade para ganhar alguma coisa.