"Falta de transparência alarmante." Governos abusam do regime de substituição para escolher lideranças no Estado
Estudo promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra que, entre 2011 e 2022, 72% das nomeações foram feitas em regime de substituição, contra os 12% da década anterior. Autores alertam para a “contaminação” do regime que “contorna os processos de seleção mais rigorosos” e sugerem um Observatório
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Entram para substituir, acabam a liderar, contornando a seleção. É este o padrão identificado, na última década, pelo estudo “Continuidade e Mudança nas Políticas Públicas em Portugal” que passou à lupa as nomeações para a máquina do Estado desde 1976 até aos anos 20 deste século.
Se em anos anteriores uma em cada vinte nomeações era feita através do regime de substituição, entre 2011 e 2022, essa prática generalizou-se, levando a que, “na última década, uma em cada duas nomeações” tenha sido realizada sob este regime.
Os autores do estudo alertam para a falta de transparência “alarmante do regime de substituição”, já que dos mais de 1600 despachos de nomeação, "apenas foram identificadas 319 nomeações sob este regime".
Pedro Camões, professor na Universidade de Aveiro, fala num “desvirtuar do mecanismo”, lembrando que as "as nomeações em regime de substituição foram criadas com o objetivo muito claro de resolver problemas de curto prazo, para situações em que os concursos principais demoravam mais do que o tempo desejável", mas nota que "progressivamente acabaram a ser usadas como um mecanismo que servia para nomear e de algum modo justificar a escolha posterior para os lugares de dirigentes".
Patrícia Silva, investigadora, doutorada em Ciência Política e uma das autoras deste estudo, considera, por isso, que o regime de substituição está a “contaminar” o processo de seleção,"na medida em que estes tendem a ser os indivíduos que acabam por ser selecionados e, portanto, há todo um processo de recrutamento que parece de alguma forma enviesado à partida".
Acresce que, de acordo com este estudo, a criação da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP), que tinha como objetivo “introduzir critérios de mérito e transparência no processo de nomeação para cargos de direção superior”, acaba por surgir associada a um aumento significativo no rácio de nomeações em regime de substituição.
“Assim, o uso frequente do regime de substituição parece sugerir que este é utilizado como instrumento para contornar os mecanismos de seleção baseados no mérito, como é o caso da CReSAP,” alertam os autores, considerando que "os esforços para profissionalizar a administração pública e reduzir a influência política direta nas nomeações enfrentam ainda desafios significativos".
Fica o aviso: “Esta prática não só compromete a meritocracia e a profissionalização da administração pública, como também pode resultar em instabilidade e descontinuidade nas políticas sectoriais.”
Os autores sugerem que pode ser "necessário reforçar legislação que limite o recurso e a duração das nomeações em regime de substituição em situações específicas, que podem ser necessárias para garantir que a agilidade na resposta não ocorra em detrimento da qualidade e da competência das lideranças nomeadas".
No estudo considera-se também que “faltam mecanismos ou entidades que permitam monitorizar a utilização e assegurar a transparência” no recurso ao regime de substituição, sugerindo a criação de um Observatório das Nomeações Públicas, integrado na CReSAP, mas com autonomia funcional, responsável por monitorizar e avaliar todos os processos de nomeação, incluindo as nomeações em regime de substituição.
Este Observatório teria competência, por exemplo, para "manter uma base de dados atualizada de todas as nomeações em regime de substituição", incluindo a sua duração, justificação e perfil dos nomeados e "criar um sistema de alertas automáticos quando uma nomeação em regime de substituição ultrapassasse um determinado período temporal".
Os autores do estudo sugerem ainda que um painel técnico independente, possivelmente no âmbito da CReSAP, teria parecer vinculativo sobre a continuidade da nomeação em regime de substituição além do período estabelecido, permitindo "maior transparência e responsabilização no uso do regime de substituição, sem comprometer a sua agilidade, quando verdadeiramente necessária".