O Estado de Israel pratica genocídio contra os palestinianos. Conhecidas as conclusões do relatório, a jurista sul-africana que preside à Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU para os Territórios Palestinianos Ocupados, alerta para as obrigações dos Estados-membros. Entrevista com Navi Pillay na TSF
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Juíza Navi Pillay, qual é a importância das conclusões deste relatório, tendo em conta, numa coincidência bizarra, que precisamente hoje [terça-feira, dia 16 de setembro] as forças das IDF entraram com tropas terrestres na cidade de Gaza?
Obrigado por partilhar essa notícia, ainda não a tinha visto. O que também é chocante para mim, para os nossos comissários e para a equipa, é o desrespeito pelas ordens, pelas medidas provisórias do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). É o tribunal deles. O TIJ é o tribunal da ONU. Só os Estados-membros têm acesso, como sabe, não você nem eu. E as ordens deles devem ser respeitadas. Essas são as medidas provisórias para cessar o fogo e respeitar os direitos dos palestinianos, uma série de coisas. Então, eu também acho isso extremamente chocante. E agora você diz-me que as tropas deles invadiram Gaza. Bem, sabe que nós temos um mandato específico, e seguimos o direito internacional humanitário e os direitos humanos. E, é verdade, muitas ONGs respeitáveis disseram que está a ocorrer um genocídio em Gaza. E muitas pessoas com quem converso nas ruas da África do Sul, por exemplo, também disseram isso. Disseram: 'Nós somos testemunhas, podemos ver isso por nós mesmas.' Mas nós operamos de maneira diferente. Não somos um tribunal, mas uma comissão. Portanto, seguimos a metodologia da ONU com muito cuidado. Muitas pessoas perguntaram: 'Porquê agora? Porque é que demoraram tanto tempo para chegar à conclusão de que ocorreu e está a ocorrer um genocídio?' Bem, demorámos dois anos. Em primeiro lugar, usamos as conclusões factuais que nos chegaram nos últimos dois anos, que estão registadas em várias declarações que emitimos. Depois fizemos novas investigações sobre três ou quatro questões, incluindo a questão da fome. E essa é uma explicação do porquê de: A) a comissão ter demorado tanto tempo e B) com que cuidado estudámos as provas. Analisámos o padrão das provas, analisámos as declarações feitas pelos líderes políticos e analisámos os elementos do crime de genocídio. Portanto, não foi uma decisão tomada de ânimo leve. É uma decisão muito ponderada. O padrão que usamos é o padrão do TIJ, que é a única inferência razoável que pode ser tirada dessas declarações, do padrão das atividades. Esta é a primeira investigação da ONU sobre o assunto, e estou satisfeita e não surpresa que os media mundiais nos façam perguntas sobre isso.
É possível provar, sem sombra de dúvida, que Israel tem infligido deliberadamente aos palestinianos de Gaza condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física, total ou parcial, como estipula a Convenção sobre Genocídio?
O padrão de prova 'além de qualquer dúvida razoável' é o padrão do direito penal. É isso que os juízes seguirão no Tribunal Penal Internacional. No caso do Tribunal Internacional de Justiça, trata-se do que chamamos jurisprudência civil, e eles já o estabeleceram como inferência razoável. Se analisarmos os factos, essa é a inferência a que chegamos. Se constatarmos que esta é uma situação em que há o maior número de crianças mortas, o maior número de jornalistas mortos, mulheres mortas e abusadas, violência sexual, violência reprodutiva... Analisámos todos esses factos. Procurámos a vantagem militar que eles obtiveram com isso. Havia um objetivo militar? E não havia exceto que esses ataques estão a seguir o que eu chamaria instruções dadas aos soldados por Netanyahu e pelo ministro da Defesa, que nomeámos, e pelo Presidente, todos os quais disseram que o Hamas é, de facto, a população palestiniana. Então, eles usaram isso como desculpa para matar mais de 60 mil palestinianos. Os advogados podem sempre procurar uma dúvida razoável. No nosso padrão, fomos muito meticulosos e cuidadosos para não chamar isso genocídio apenas porque é considerado o crime mais hediondo. Analisámos as provas. Seguimos as provas para chegar à conclusão.
Então, estamos também a falar de declarações feitas pelas autoridades israelitas que podem ser usadas como prova de intenções genocidas...
Exatamente. Analisámos declarações feitas por Netanyahu, pelo Presidente de Israel e pelo ministro da Defesa, demonizando os palestinianos como animais, dizendo que haverá uma destruição total. Tudo o que eles disseram há dois anos, pode-se ver que ainda continua a acontecer, como a destruição de edifícios agora na cidade de Gaza. Portanto, afirmamos que foi cometido um genocídio e que este continua. Estou convencida de que essa é a única conclusão razoável que se pode tirar.
Se olhar para o nosso relatório, destacamos, por exemplo, o ataque à única clínica de fertilidade disponível em Gaza, onde havia alguns embriões preciosos, um número bastante grande de embriões armazenados. Bem, é um edifício que está isolado, independente, civil e, mesmo assim, foi atacado e os tanques de nitrogénio que mantinham os embriões vivos foram alvejados e destruídos. É claro: todos os embriões morreram nesse ataque. Portanto, não vemos qualquer objetivo ou vantagem militar em atos como esse. E vimos um vídeo e outros materiais porque esses soldados estavam a postar alegremente essas imagens online como se fossem troféus. Também vimos imagens de satélite fornecidas pela ONU. E é claro, fizemos a nossa própria investigação independente. Não consultámos o relatório de ninguém para esse fim. Tivemos muitos depoimentos de testemunhas oculares, especialmente de médicos que vieram a Genebra e testemunharam sobre as mortes no hospital. Foi muito interessante ouvir sobre os ferimentos, todos indicando ataques diretos a crianças e mulheres. Então, é por aí que se começa normalmente. É o que os tribunais fazem. Analisam-se as provas. Até mesmo o procurador, antes de determinar a acusação que quer apresentar, analisa as provas. E depois analisa-se quem os autorizou. Então, é muito claro para nós que esses foram atos cometidos pelas forças de segurança israelitas, agindo como agentes do Estado de Israel. É, por isso, que consideramos o Estado de Israel como o responsável final pelo genocídio.
Então, o que deve acontecer a partir de agora? O que é que os Estados-membros devem fazer? O que deve acontecer?
Em primeiro lugar, a Convenção sobre Genocídio vincula todos os Estados. Portanto, eles não têm escolha nesta matéria. Todos os Estados são membros, incluindo os Estados Unidos e Israel. É uma obrigação, não uma escolha, para todos os membros dessa convenção: uma obrigação de prevenir o genocídio e de punir o genocídio. E isso implica ação por parte de todos os Estados-membros, seja através de processos judiciais nacionais ou incentivando o TPI e o TIJ. Portanto, além da nossa interpretação, há uma instrução clara do Tribunal Internacional de Justiça na sua ordem provisória, ordenando exatamente isso. O tribunal ainda não determinou se ocorreu genocídio, refiro-me ao TIJ, mas isso é algo que eles decidirão na fase de audiências, após ouvir ambas as partes e, presumivelmente, as testemunhas. É nessa altura que o tribunal determinará se houve genocídio. Para as ordens provisórias, sem determinar se ocorreu genocídio, já identificaram que existem motivos plausíveis para acreditar que existe um risco de genocídio. E ordenaram a Israel que tomasse medidas imediatas para o impedir. É verdade que nenhum Estado fez nada a esse respeito, o que considero muito lamentável.
Mas, a partir de agora, uma vez que este relatório foi publicado com conclusões tão sérias e graves, se os Estados continuarem sem fazer nada, deverão ser de alguma forma punidos?
Bem, as Nações Unidas são o melhor que temos. São imperfeitas em muitos aspetos, especialmente no que diz respeito ao Conselho de Segurança e ao veto, mas são o melhor que temos. São as regras e as leis que nós seguimos. A diferença é que agora incluímos uma grande quantidade de factos comprovados que verificámos com muito cuidado. Portanto, eles também têm o conjunto de provas para que os Estados-membros possam agir. Então, é realmente com eles. Já está perante o TPI e o TIJ. Ao TPI, que é um tribunal criminal, encorajámos e recomendámos que investigasse agora a prática de genocídio e acrescentasse essa acusação à outra que já têm em mãos. E, claro, a todos os Estados, é isso que pedimos, que implementem a convenção.
Então, aqueles que sentiram que talvez não tivessem provas de que há genocídio, aqui estão elas. Mesmo esta comissão tem rotulado o que aconteceu em todos os nossos relatórios, até agora, como crimes contra a humanidade e violações do direito internacional humanitário. Portanto, se houve negação de alimentos, água, medicamentos e assim por diante, abordámos isso ao abrigo do direito internacional humanitário. Agora, isto é muito mais grave. É a intenção deliberada por parte do Estado de matar e negar os direitos dos palestinianos.
Compararia o que está a acontecer em Gaza com algum genocídio ocorrido no passado?
Não fazemos comparações nos nossos documentos. Não precisamos de o fazer, porque temos de analisar os factos relacionados com Gaza. No entanto, em perguntas que me foram feitas, eu pessoalmente disse que fui juiz no painel do Tribunal Penal Internacional das Nações Unidas para o Ruanda e que proferimos o primeiro julgamento do mundo sobre genocídio. Analisámos todos os factos, e os factos levaram-nos ao genocídio. Também analisámos declarações feitas por figuras políticas de alto nível. O ex-primeiro-ministro foi acusado e condenado. Muitos ministros também. O Tribunal de Ruanda julgou a hierarquia, a liderança, os líderes políticos, militares e económicos. Também participei no caso envolvendo a estação Radio Rwanda e o jornal Kangura Journal, devido à propaganda de ódio que espalharam. Dissemos que tudo isso constitui genocídio e levou ao genocídio. Testemunhas deram-nos conta das reportagens do Kangura Journal e a cobertura frenética da estação de rádio, que praticamente incitava as pessoas ao genocídio e identificava pessoas em bloqueios de estrada para serem assassinadas.
Portanto, havia provas massivas de que, embora esses três indivíduos associados aos media não tivessem realmente matado ou violado ninguém, eles cometeram genocídio por causa da participação intencional e do incentivo ao assassinato do povo tutsi. Então, eu tenho essa experiência. É claro que não estamos a comparar conflitos aqui, mas a forma como a lei foi aplicada é o que nos guiou.
Então, para que a comunidade internacional, digamos, salve a sua credibilidade, o que deve fazer?
É por isso que demos um aviso severo a todos os Estados: todos os Estados têm a obrigação de agir para prevenir o genocídio, para proteger as pessoas contra o genocídio. Para começar, devem apelar veementemente a um cessar-fogo, e aqueles que têm influência sobre Israel — particularmente aqueles que estão a ajudar Israel com armas, transferência de armas e munições — têm agora uma responsabilidade especial, porque estão sujeitos a esta convenção sobre genocídio. Ficar em silêncio não é neutralidade, é cumplicidade.
