A jornalista Helena Ferro Gouveia decidiu reunir as histórias em livro depois de ela própria ter contado a tentativa de violação que sofreu.
Esta quinta-feira, o Parlamento vai discutir um projeto de lei do PAN que pretende alterar o Código Penal para que o sexo sem consentimento passe a ser considerado crime de violação.
O objetivo do Pessoas-Animais-Natureza é que o crime de violação deixe de assentar na existência de violência para se centrar na não existência de consentimento.
No final do ano passado, foi notícia um polémico acórdão do Tribunal de Gaia, que suspendeu a pena a dois homens acusados de violar uma rapariga inconsciente.
Pouco tempo depois, houve o caso de Cristiano Ronaldo com uma discussão à volta do porquê do silêncio de Catherine Mayroga durante tantos anos.
Foi isso que levou a jornalista Helena Ferro Gouveia a contar a história dela nas redes sociais. Não se fizeram esperar as respostas de apoio e de partilha de outras histórias. E isso levou-a a escrever um livro.
"Resolvi contar o que se passou comigo." Helena Ferro Gouveia foi vítima duma tentativa de violação que não se consumou porque ela conseguiu defender-se. "Foi uma história que conservei comigo durante muito tempo e não falei".
"A pessoa que me atacou era supostamente a pessoa que me devia proteger", conta. A jornalista estava a trabalhar num país africano. "Nestes países tenho alguém que me acompanha que me faz segurança e que é meu motorista".Conhecia bem esse homem, abriu-lhe a porta, numa noite, porque ele lhe disse que tinha um recado para lhe dar. Ele atacou-a, ela defendeu-se. "O que me levou a defender foi o medo de morrer".
Só falou do assunto oito ano depois, num post nas redes sociais. "Depois de ter feito este coming-out, foi uma avalanche" e "começaram a surgir histórias de homens e de mulheres que me pediram para contar as suas histórias".
Helena lê uma dessas histórias:
Em outubro de 1993 uma miúda de 14 anos chateou-se com as amigas do costume e resolveu procurar novos amigos. Conheceu um grupo simpático, de outra escola, de rapazes e raparigas, que conheciam música que para ela era desconhecida, e que ela achou fascinante. Passou algumas tardes com eles, enamorou-se por um deles, e houve um dia e que lhe ligaram numa sexta-feira a perguntar se queria ir passar a tarde com eles.
Não seria a primeira vez que passavam a tarde numa garagem a fumar e a ouvir música. A miúda meteu-se no autocarro e foi ter com os novos amigos, feliz e contente.
Ao chegar ao café do costume, sentiu uma tensão estranha no ar, mas não percebeu o que era. Uma expectativa, um silêncio.
O rapaz por quem se enamorara e com quem já tinha trocado uns beijos, pediu-lhe para ir com ele buscar umas cassetes de bandas novas espetaculares. A miúda seguiu-o, sem pensar muito no assunto. Cassetes de bandas novas para levar para a garagem, fixe!
Ao chegar, o rapaz pôs música alto na aparelhagem e disse que tinha de ir à casa de banho. A miúda ficou a ouvir música e a ver cds e cassetes. Ele voltou despido da cintura para baixo e com uma erecção. Bloqueou a porta. A miúda disse-lhe que não estava interessada, nem sequer eram namorados, mas ele não se desviou da porta para a deixar sair. E
la tentou passar por ele e ele atirou-a para cima da cama. Ele era dois anos mais velho, e bastante mais forte. Ele estava em cima dela. Ela tentou fugir, mas ele arrancou-lhe as cuecas. Por azar estava de saia, não foi muito difícil.
Sem conseguir fugir, rogou-lhe que a deixasse, que não queria, que nunca tinha feito aquilo e que não queria. Ele segurou-a com força e disse que "alguma vez teria de ser a primeira", ela debateu-se e ele entrou nela.
Ela despedaçou-se. Deixou de resistir, ficou de corpo morto. Os olhos fugiram para o brilho de uma maçaneta dourada na porta de um armário do lado direito. A mente fugiu para um campo de flores amarelas onde estava segura e era só uma miúda.
Ele acabou e ela não se mexeu. Ele foi à casa de banho e ela não se mexeu. Ele voltou da casa de banho e ela não se mexeu. Ele disse "afinal gostaste, queres mais, é?".
Ela voltou ao corpo e saltou da cama como uma mola, não se recorda como saiu daquela casa, mas foi direita à esplanada, os outros podiam ajudar!? Ao aparecer, desgrenhada, em pânico, a esplanada explodiu em riso.
Confusa e em choque, correu rua abaixo, apanhou um autocarro. Tremia e um fio de sangue escorria pelas pernas, para dentro das botas da tropa. Os adultos presentes olhavam para ela, mas nem um se dignou a perguntar se precisava de ajuda.
Chegou a casa e meteu-se no chuveiro, enrolada como um bicho de conta. Horas debaixo do chuveiro. Para tirar a porcaria. Mente em branco. Quando os pais chegaram, ela saiu da banheira e meteu-se na cama. Tinha febre. Ficou na cama dois dias a dormir. Doente, certamente, pensaram os pais.
Na segunda feira foi para a escola. "Se fingir que não aconteceu nada é como se não acontecesse. Será que aconteceu?"
Chegou à escola e todos riam e sussurravam. Uma amiga explicou que já toda a gente sabia que ela era uma puta. Que tinha ido para a cama com ele porque era uma puta, e se o acusasse de violação era por vingança, porque era uma puta. A puta virgem. Era virgem, mas era puta. Assim, de um dia para o outro.
Não sobraram amigas, porque as amigas de putas são putas.
Foi apedrejada e perseguida no caminho de casa para a escola e da escola para casa.
Havia um grupo de rapazes que levava revistas pornográficas para a escola, e que um dia lhas esfregou na cara, porque ela era uma puta.
Sentia que era uma pessoa diferente a cada dia: num dia era uma miúda que queria voltar a ser criança, no outro uma mulher que queria ir atrás dele com uma faca. No outro ia passar por cima daquela merda de gente toda, ia ter as melhores notas e ia ser feliz longe dali. Mas no dia seguinte queimava as pernas com cigarros e queria morrer porque a culpa era dela, porque tinha querido ter amigos, porque tinha usado saia, porque tinha correspondido a um beijo no outro dia. E tinha medo.
Levou 10 anos a voltar a ser capaz de vestir uma saia, a conseguir confiar num homem. Medo de fazer amigos. Ataques de pânico a cada "piropo" de rua. E engordou, de propósito, porque ninguém quer violar gordas, certo?
Nunca fez queixa, nunca contou aos pais, nem sequer aos amigos que fez depois. Se os pais soubessem iam pensar que tinham falhado, e eles tentavam tanto não falhar, dar-lhe o melhor que conseguiam...
Se contasse ia ser outra vez "a violada", "a maluca", "a mentirosa", "a puta".
Se ninguém souber, é mais fácil fingir que não aconteceu e viver normalmente.
Mas aconteceu. E não se vive normalmente.
E não passa.
E passaram 25 anos.