O cientista político Yascha Mounk falou à TSF sobre o seu novo livro "Povo vs Democracia: saiba porque a nossa liberdade está em perigo".
Yascha Mounk, cientista político, defende as "identidades múltiplas, que acrescentam". Pudera. Judeu, filho de pais polacos, nasceu na Alemanha, vive nos Estados Unidos. Doutorou-se em Harvard e ensina e investiga na Johns Hopkins University, em Washington. Colunista de alguns dos principais jornais do mundo, veio a Portugal falar sobre o livro "Povo vs Democracia: saiba porque a nossa liberdade está em perigo". Um alerta contra o crescimento do nacionalismo populista.
Yascha Mounk, o que aconteceu com o chamado futuro? Não era suposto ser assim... como o tipo de presente que estamos a enfrentar...
Penso que tínhamos muitas ilusões sobre como seria o futuro. Quando as coisas correm bem, é fácil imaginar o futuro como uma versão ligeiramente melhor que o presente, mas também penso que foi naive pensar que a democracia liberal seria o regime político incontestado em vastas partes do globo, que as pessoas seriam sempre felizes com o sistema político, e agora estamos a ver a ingenuidade dessas assunções a serem testadas: o aumento do populismo no mundo apresentado como ameaça existencial à democracia liberal, vemos a democracia a ser contestada em países que vão dos Estados Unidos ao Brasil, Polónia, Turquia, Venezuela. Mas penso também que algumas dessas assunções eram corretas. As pessoas ainda têm uma ligação muito forte aos elementos fundamentais do nosso sistema político, da liberdade individual à autodeterminação coletiva - e mesmo quando tomamos essas coisas por garantidas porque tudo está a correr bem, vamos também exigi-las de volta quando as começarmos a perder.
Menciona o aumento do populismo autoritário em diferentes partes do mundo... Os falhanços da democracia liberal são a causa desse aumento?
Sim, absolutamente. Veja: é importante lembrar as coisas do nosso sistema político. Portugal teve uma transformação tremenda para melhor nos últimos quarenta e tal anos. Nos últimos vinte anos, dois mil milhões de pessoas no mundo saíram da pobreza; é difícil olhar para qualquer época da História portuguesa ou da história mundial, onde tenha havido tanta gente com vidas dignas e prósperas como hoje, na Europa ocidental, na América do norte, na Ásia, por aí afora.
Ao mesmo tempo, as pessoas estão compreensivelmente frustradas com os problemas que temos hoje em dia no mundo e pelo quanto ficámos aquém dos nossos ideais. As pessoas sentem que a sua opinião não conta mesmo que digamos que vivem em democracia; as pessoas sentem que, ainda que tenham alguma coisa, são muitos mais pobres que outros membros da sociedade, não são mais ricas que os pais foram e tudo indica que os filhos vão ser ainda menos e portanto têm muito medo do futuro. Há muita gente desorientada com as mudanças culturais e demográficas no mundo, e portanto devemos fazer muito mais para reassegurar que possam continuar a viver vidas dignas, mas mais prósperas de acordo com aquilo que desejam. Penso que isso faria muito para resolver aquilo que o populismo reclama.
O Yascha Mounk realmente teme - como pergunta no livro - que este momentum populista possa ser transformado numa era populista?
Sim! Quer dizer, desde que comecei a escrever este livro temos visto como os populistas conquistaram palco em toda uma série de países. Hoje, três das maiores democracias do mundo - Índia, Brasil e Estados Unidos - são governadas por populistas autoritários. Na Europa, países onde o populismo parecia ser algo novo ou marginal, como a Alemanha, têm hoje uma grande presença populista. Países onde não havia populismo como a Espanha, têm hoje o desafio populista de partidos como o Vox. Portanto, o perigo de que isto não sejam apenas dez anos estranhos mas sim uma época na história moderna é bem real, penso eu.
A sobrevivência da democracia liberal está em causa?
Sim, a democracia liberal está em causa. Podemos ver o caso da Hungria e como um estado membro da União Europeia se transforma numa semi-ditadura, sem que os seus vizinhos ou a União Europeia façam muito sobre o assunto. Não foi preciso generais tomarem de assalto o parlamento, foi um processo lento em que o próprio governo eleito começou a atacar as instituições independentes, trataram a oposição e jornalistas independentes como traidores e inimigos do povo e vemos processos semelhantes darem os primeiros passos em Itália, na Polónia, nos Estados Unidos, Brasil; portanto, concordo absolutamente, isto é uma ameaça existencial à democracia liberal.
E a Hungria é um país onde o liberalismo e a democracia pareciam estáveis, se não consolidados ...
Sim. Obviamente que a Hungria não tem uma democracia tão antiga quanto a dos EUA ou é uma sociedade tão rica como a da Alemanha, mas de acordo com as teorias dos cientistas políticos até há cinco anos, era uma democracia consolidada: tinha tido eleições livres e justas, tinha trocado de governo umas cinco vezes desde 1990; aumentou bastante o produto interno bruto; os cientistas políticos diziam que não precisávamos de nos preocupar com o futuro da democracia na Hungria. Isso provou estar errado, e receio que as teorias possam estar novamente erradas em países mais ricos e com uma história democrática mais longa que a da Hungria também.
Por outro lado, não estarão os líderes populistas a tentar proteger identidades nacionais de uma elite tecnocrática liberal que, até recentemente, parecia não ter limites ...
Os populistas frequentemente reagem a problemas que são reais. Muitos populistas no mundo fazem campanha pelo combate à corrupção e em países como Itália, Brasil ou a Venezuela, a corrupção está profundamente arreigada, portanto, têm razão nos problemas que levantam. A questão é que eles, normalmente, tornam esses problemas piores.
Estão corretos no diagnóstico mas falham no tratamento?
Exatamente. Com frequência escrevemos sobre o quão furiosas as pessoas estão e como dão voz a essa fúria, mas muitas das soluções simplistas que oferecem são irrealistas, e muitas vezes não são sérias na forma como enfrentam os problemas. Em vez de erradicarem a corrupção, por exemplo, acabam por aprofundá-la. Ou seja, os seus países tornam-se mais corruptos depois dos populistas assumirem o poder. E o mesmo é verdade em relação à democracia, ou em transformar pontos de vista populares em políticas públicas.
Os populistas têm razão quando dizem que, em muitos países, as pessoas sentem que não são ouvidas, que as suas preferências sobre determinados assuntos... é um problema real, mas quando olhamos para países onde os populistas efetivamente tomam o poder e consolidam-no, eles acabam por ser, pelo menos, igualmente desatentos ao que as pessoas pretendem, e quando os cidadãos se voltam contra eles, quando já não querem ser governados por eles, os populistas já defraudaram tanto o sistema político, já atacaram tanto as instituições independentes, que se torna impossível afastá-los do poder através de eleições livres e justas.
Colocou as coisas mais ou menos nestes termos: diz que estamos a viver uma espécie de liberalismo não democrático e uma democracia antiliberal na América do Norte e na Europa Ocidental ...
Os valores centrais do nosso sistema político são claros: temos liberdade individual, em que cada um de nós decide o que dizer e não dizer, como viver as nossas vidas privadas, e têm também o elemento democrático da autodeterminação coletiva, tomamos decisões políticas coletivamente em vez de deixar tudo para ser deferido por um ditador, seja um general, um padre, um imame ou qualquer outra pessoa. Penso que durante muito tempo, os nossos sistemas políticos foram insuficientemente democráticos, não fomos muito eficazes a transformar preferências populares em políticas públicas, seja em assuntos como a redistribuição ou como a imigração. Os populistas exploraram isto, no sentido de dizer que eles é que falam em nome do povo, que são mais democráticos e que põem em prática políticas populares. E, por vezes, isso é verdade nos primeiros anos de governo; fazem reformas que eram impopulares entre a anterior elite. Mas é o primeiro passo. Porque depois fazem questão de dizer que eles e só eles representam o povo, que só eles são uma força política legítima, começam a minar as instituições independentes, como juízes e tribunais; começam a atacar abertamente os meios de comunicação social mais críticos, começam a ganhar o poder de instituições democráticas-chave, como comissões eleitorais... E, em consequência de tudo isso, tornam-se líderes absolutos. Concentraram tanto poder nas suas mãos que já não precisam de ser reativos àquilo que as pessoas pretendem nem sentem que tenham de deixar o poder quando uma maioria de cidadãos se volta contra eles.
Concluindo, as promessas democráticas dos populistas acabam por ser uma quimera e isso explica, de algum modo, o título do meu livro: Povo versus Democracia! É porque os populistas reclamam que falam em nome do povo mas, no fim de contas, não só se voltam contra os elementos liberais do nosso sistema político, como contra a própria democracia.
Da parte dos cidadãos, é realmente impressionante o fato - e li no seu livro - de serem menos de um terço os millennials, a geração do milénio, nos Estados Unidos, que acha extremamente importante viver numa democracia liberal...
Sim, quando se olha à volta do mundo, vemos um profundo desencanto com as instituições democráticas e isso é particularmente forte nos EUA. Quando se pergunta a pessoas nascidas nos anos 30 e 40 do século passado se é absolutamente importante para eles viver em democracia, mais de dois terços dizem que é. Quando se faz a mesma pergunta a americanos nascidos depois dos anos oitenta, menos de um terço diz que é absolutamente importante viver numa democracia. Isso quer dizer que as pessoas mais novas não querem saber da liberdade individual ou que não querem saber de autodeterminação coletiva, que ficariam felizes em não ter liberdade de expressão, ou ter ditadores a governá-los? Penso que não. O que revela é um profundo desencanto em que as pessoas entendem que nada funciona, "não gosto do que se passa agora, porque não tentamos algo de novo? O que temos a perder?", E é esta frase de não terem nada a perder que é especialmente relevante entre os mais jovens, que não viveram o fascismo, que não experimentaram a devastação que foi o comunismo no bloco de Leste, o que os torna particularmente suscetíveis a alguns dos apelos populistas.
Reclama que estamos cada vez mais a observar uma divergência entre liberalismo e democracia... já não caminham lado a lado...
Precisamos de ambos, liberalismo e democracia, para um sistema político estável. Quando temos políticas liberais e uma boa proteção dos direitos individuais das minorias, mas se a maioria dos cidadãos pensa que os seus pontos de vista estão a ser ignorados, acabamos com grandes reações populistas. E quando os populistas prometem que vão pôr em práticas as políticas mais populares, mas também restringir os direitos políticos das minorias, abolir o estado de direito, colocar em causa a existência de instituições independentes, acaba-se por se estar a sacrificar os direitos individuais das pessoas, e no fim da linha, pode tornar-se impossível a mudança de governo. Portanto, precisamos de ambos. Mas aquilo que vemos no momento é uma desintegração deste sistema político. Nos últimos trinta ou quarenta anos, alguns países tiveram um liberalismo não democrático, que protegia os direitos individuais e o estado de direito relativamente bem. Mas o que vemos agora, com a emergência do populismo neste momento ou era populista, é o crescimento de uma democracia iliberal na qual um certo tipo de instituições independentes e direitos individuais, perante a necessidade de ter o sistema a funcionar, são cada vez mais atacados e sacrificados.
Essa mudança de paradigma democrático é de alguma forma seguida ou inclui uma crescente rejeição do pluralismo cultural e diversidade étnica? Acredita que este sentimento está a aumentar entre as opiniões públicas?
Na verdade, creio que é uma combinação. Em muitos aspetos, as pessoas tornaram-se muito mais apoiantes do pluralismo cultural; as pessoas em muitos países e particularmente nos EUA, têm uma imagem positiva do contributo dos imigrantes para os seus países. Quando penso no país em que nasci, na Alemanha, até há cerca de vinte e cinco anos, era virtualmente impossível alguém tornar-se cidadão alemão a não ser que fosse descendente de alemães ou que tenha casado com um alemão. Hoje, é perfeitamente natural para a maioria dos alemães que alguém cujas raízes estejam na Turquia ou tenha pele negra ou seja muçulmano ou hindu pode tornar-se ou ser um verdadeiro alemão. Então, de muitas formas, há uma história otimista para contar. Ao mesmo tempo, há um grupo considerável da população que ou rejeita estas transformações ou que sente que já não há controlo sobre as próprias fronteiras e em quem entra no país. Por isso penso que uma das formas de aprofundar o apoio à democracia multiétnica e pluralismo cultural é reassegurar às pessoas que o estado tem estes processos sob controlo e está a tomar decisões nesse sentido.
Parece que a maior parte dos países da Europa de Leste não foi capaz de aprender com essa experiência alemã...
Creio que em primeiro lugar é importante enfatizar que o populismo na Europa não é uma questão Leste/Oeste. Há vários países populistas na Europa de Leste mas também há vários países dirigidos por populistas na Europa ocidental. Não é uma questão de dividir a Europa em duas partes em que uma parte, a ocidental, está ótima e a fazer tudo maravilhosamente e a outra, a de leste, a fazer tudo mal e a andar para trás. Claro que há alguns países que tiveram uma certa homogeneidade artificial desde 1945 e países como a Polónia, e até certa medida, a Hungria embora menos, são exemplos. Para eles, a ideia de um polaco é de alguém cujas raízes estão no país e que é católico, esse sentimento é mais forte que noutros países. Mas creio que a longo prazo, a resposta correta para lutar por um patriotismo inclusivo; não é rejeitar todo o patriotismo, mas lutar por uma noção de patriotismo na qual as pessoas sintam que é bom sentir solidariedade para com os seus conterrâneos, mas também em que se alguém nasceu e cresceu no teu país, vivem na porta ao lado da tua há muitas décadas, mesmo que não partilhem a mesma religião e a mesma origem, são teus compatriotas. Penso que, com o tempo, países como a Polónia passarão também por essa transformação.
Uma boa resposta ao populismo autoritário de extrema-direita poderia ser o que seu colega de Harvard Dani Rodrik chama de "populismo económico", um populismo que afirma combater a concentração de riqueza através de uma distribuição mais justa e ampla da riqueza?
Eu discordo do meu bom amigo Dani em quase tudo, além do uso do termo populismo. Para mim, populistas são aqueles que reclamam que eles e apenas eles são forças políticas legítimas. O que dizem é: "a única razão pela qual temos problemas hoje é que há gente de fora dispostos a fazer-vos mal e a tirar-vos coisas e precisamos de alguém que, verdadeiramente, represente o povo e que resolva os problemas. E é essa reivindicação de representação exclusiva que os torna tão perigosos porque, a partir do momento em que o fazem, quem discordar dessa representação exclusiva, seja uma instituição independente como um tribunal que possa deliberar contra ti, passa a ser um inimigo do povo ou um traidor, e isso coloca o populista numa direta linha de colisão com as instituições da democracia. Isso é verdade em populistas de direita como Bolsonaro no Brasil, como também é verdade com populistas de esquerda como Hugo Chavez e o seu sucessor, Nicolas Maduro, na Venezuela.
Agora, eu acho que é possível fazer uma série de outras coisas que Dani Rodrick recomenda, como falar claro sobre o demasiado poder que os ricos e os grandes grupos empresariais têm atualmente na nossa sociedade; é preciso reformar o nosso sistema económico, para que mais pessoas comuns possam colher dividendos do nosso sistema capitalista. É possível fazer tudo isso sem ser populista, pelo menos da maneira que eu o penso, que é dizer que quem discorda de ti é ilegítimo e precisa ser cerceado.
Uma vez que estamos a falar de abordagens intelectuais e académica, pensa que a liberdade de expressão e a liberdade académica estão cada vez mais ameaçadas atualmente?
Sim, absolutamente. A liberdade de expressão e a liberdade académica estão sob ameaça massiva da direita em muitos países - como temos visto na repressão de instituições como a Universidade Central Europeia em Budapeste, ou departamentos académicos específicos como no Brasil e na Polónia. A segunda ameaça é a forma como se responde aos perigos colocados pela internet. A Alemanha acabou de aprovar uma lei que criminaliza o ato de queimar uma bandeira da União Europeia. Eu sou um orgulhoso europeu, penso que a União contribuiu para uma série de coisas boas; queimar a bandeira da Europa é de péssimo gosto mas é uma forma de discurso político, pelo que devem ser autorizados a fazê-lo. E depois há uma terceira ameaça à liberdade de expressão em países como os Estados Unidos e o Reino Unido e que vem do conformismo político e da pressão para abraçar determinadas posições política dentro da academia, mas também dentro da esfera mediática.
E quem quiser assegurar que temos liberdade de expressão e um debate público robusto, precisa de lutar energicamente contra estas formas de ameaça à liberdade de expressão.
Tem trabalhado e investigado nos EUA... muita gente afirma que o país está a mudar; diria que os EUA estão a caminho de se tornar uma sociedade conservadora liderada por homens brancos ou um tipo de sociedade social-democrata europeia?
Penso que os EUA serão sempre um país muito dividido, Penso que não há evidência que sustente que os americanos queiram abraçar o sistema económico europeu, serão sempre muito mais empreendedores e com mais tolerância para os indivíduos poderem divergir e prosperar se trabalharem muito e tiverem sorte. Ao mesmo tempo, muitos americanos e contar-me-ia entre eles, querem assegurar que finalmente todos os americanos têm um sistema de saúde digno, que as regras e regulações do estado são desenhadas de forma a garantir que todos participam na criação de riqueza económica, mais do que garantir vantagens para aqueles que já são muito ricos; por tudo isto, penso que estamos num verdadeiro momento de correção, o que espero que melhore a vida de milhões de pessoas, mas não penso que os EUA possam parecer a Dinamarca ou a Suécia no meu tempo de vida. E provavelmente até é uma virtude haver uma espécie de variedade institucional. Países como a Suécia ou a Noruega são sociedades maravilhosas, mas muito diferentes dos EUA, menos excitantes e vibrantes para o empreendedorismo, são muito mais homogéneas, por isso penso que é uma virtude haver sítios nos mundo que se pareçam com a Suécia ou Noruega e haver sítios que se pareçam com uma versão melhorada daquilo que os EUA são atualmente.
Mas para além dessa variedade, devemos insistir para que as democracias sejam multiétnicas, diversas?
Não sei se devemos insistir, não tenho preferências principais sobre se as democracias devem ter uma composição étnica em vez de outra. Na verdade, quando se olha para a maioria das democracias no mundo hoje, elas são multiétnicas, seja a Suécia, ou Alemanha, EUA ou Brasil, todos têm gente originária de diferentes grupos étnicos e origens a viver lá.
Poderia resumir para a TSF cada uma das três soluções que propõe no livro? Domesticar o nacionalismo, consertar a economia, renovar a fé cívica ...
No meu livro, sublinho três grandes tipos de perigo à democracia que explicam o crescimento do populismo: estagnação económica, rápidas mudanças culturais e demográficas e a ascensão da internet. Para responder ao crescimento do populismo, precisamos de enfrentar os problemas mais estruturais que levaram a esse crescimento. Então, uma das coisas que devemos fazer é defender os aspetos positivos do nosso sistema económico, para que as pessoas continuem a beneficiar de uma tremenda fabricação de poder do capitalismo e mercado livre. Mas também para que as pessoas sintam que têm controlo sobre as suas vidas, que vão ter melhores rendimentos do que os pais tiveram, que as suas comunidades vão continuar a prosperar mesmo que vivam em áreas rurais, que estão protegidos se têm algum problema de saúde, ou se não conseguem encontrar um emprego e que o sistema é justo e que os ricos e poderosos estão abrangidos pelas mesmas regras económicas que eles.
A segunda é como podemos construir uma identidade coesa em sociedades sujeitas a rápidas mudanças culturais e demográficas. E tendência de muita esquerda em todo o ocidente - e tenho uma certa simpatia por isso - é "livremo-nos do nacionalismo, livremo-nos do patriotismo", mas penso que é um erro! Penso que o melhor que temos a fazer é lutar por um patriotismo inclusivo, um nacionalismo inclusivo no qual possamos dizer que é ótimo sermos solidários com pessoas que são de outra nacionalidade, portugueses ou alemães ou americanos. Há algo de bonito nisso que pode ajudar a sustentar uma sociedade e a uni-la, por exemplo, em alturas de um desastre natural no nosso país. Mas também devo insistir que também é possível que eu ame o meu país sem odiar o meu vizinho e é possível ser um alemão orgulhoso ou um português orgulhoso e, ao mesmo tempo, reconhecer que as pessoas que também vivem neste país e cujas origens ou hábitos religiosos talvez sejam diferentes, ou tenham hábitos gastronómicos diferentes, ainda assim são meus compatriotas a quem devo solidariedade.
E o terceiro ponto é sobre a internet e os media sociais. Não devemos censurar aquilo que as pessoas dizem na internet, mesmo que muito do que aí vemos sejam teorias da conspiração e incitamento ao ódio. Mas devemos, de uma forma prática, lutar pelos valores cívicos.
Portanto, é contra qualquer forma de regulação da net?
Não, isso é colocar a questão num sentido demasiado amplo. É muito importante por exemplo que o estado deixe claro que as empresas privadas tratem os dados corretamente, que respeitam a privacidade dos clientes, é muito importante para o estado assegurar que as empresas não tenham poderes para monopolizar partes da economia, portanto há uma série de coisas em que o estado deve regular a internet. No que não acredito é na censura. Não porque não haja uma série de coisas horríveis que são ditas online sem qualquer valor e seria bem melhor para o mundo senão tivessem sido ditas; mas porque não confio num conjunto de indivíduos ou instituições que determinem por mim o que as pessoas podem ou não dizer.
Ou seja, há uma linha ténue entre aquilo que pode ser o combate contra o discurso do ódio e aquilo que pode ser censura...
Bom, penso que devemos tolerar uma certa dose de discurso do ódio online, porque a censura tem a tradição de correr muito mal muito rapidamente. De alguma forma, as pessoas que pensam que as sociedades em que vivem são profundamente injustas e estão muito preocupadas com o facto de que as pessoas que estão no poder poderem dizer "vamos pôr em prática um esquema de censura e imaginando que as decisões destas instituições não vão bater certo com o que intuem do que se pode ou não dizer. Por isso, creio que a resposta certa para o discurso do ódio, é o discurso do amor. Apelar às pessoas para que percebam que o discurso do ódio é inaceitável, demonstrar quanto valorizamos os nossos concidadãos, não creio por isso que a solução seja o estado poder banir o que as pessoas digam.
Brexit...
Repare, ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos dois meses...
Provavelmente, nem nas próximas duas semanas...
Sim, ou dias ou horas sequer. É sempre bizarro como cientista político estar afazer profecias, principalmente quando essas profecias podem tornar-se erradas daqui a duas horas. O que diria é que Boris Johnson não foi bem sucedido em transformar o Partido Conservador num partido populista, o que é notável. Até há pouco tempo um anúncio rotulava os conservadores como o partido do povo. Boris Johnson está a seguir um caminho mais subtil e esperto do que aquilo que lhe creditam muitos comentadores. Particularmente, ao contrário de Donald Trump, ele está a conseguir ganhos para a sua base eleitoral: está a aumentar a despesa em saúde e polícia, por exemplo; é culturalmente mais moderado do que as pessoas pensam (por exemplo, o seu governo acaba de anunciar que os estudantes que concluem o curso podem ficar mais dois anos no Reino Unido, algo que Theresa May tinha abolido. Por isso, se Boris Johnson conseguir nas próximas semanas sobreviver a esta confusão do Brexit, penso que tem boas possibilidades de se tornar uma figura importante na moderna política britânica, dominando o país nos próximos dez anos ou mais.
As suas perspetivas sobre as eleições norte-americanas no próximo anjo...
Donald Trump é muito impopular. Isto deveria ser bastante para a oposição o derrotar, mas é claro que uma eleição não é apenas um referendo ao presidente, mas sim uma escolha entre dois candidatos nos EUA. E, para mim, está longe de estar claro nesta altura, que os democratas possam conseguir um candidato menos impopular que Donald Trump. Acontece também que a maioria dos presidentes na história dos EUA é reeleito, principalmente se sucedeu a um presidente do outro partido político, como é o caso de Donald Trump após Barack Obama. Por isso, diria que Donald Trump tem ligeiras mais hipóteses de vencer a eleição do que perdê-la.
Há eleições em Portugal no dia 6 de outubro ... o que seria, na sua opinião, uma campanha eleitoral não populista?
Penso que aquilo que estamos a ver em Portugal é uma campanha eleitoral não populista, porque é um dos poucos sistemas políticos do mundo onde não há um partido populista forte. Mas, de um modo mais geral, é importante que os partidos não populistas reconheçam que conseguem ter uma linguagem emotiva, que podem estar furiosos com aspetos que não funcionam no status quo, mas que podem, ainda assim, prometer melhorias às pessoas; talvez essa seja uma explicação para o facto de os partidos populistas ainda não terem conseguido terreno significativo no sistema político português.
Um judeu, com pais polacos e criado na Alemanha a trabalhar na América? Qual destas características foi mais relevante para a construção da sua identidade?
Para ser honesto, não sei. Acho que somos influenciados por todos os aspetos da nossa identidade, e obviamente sou alguém com uma história de vida complicada, que viveu em muitos países, mas isso é tão verdade para mim como para muitos cidadãos em todo o mundo. Na Europa, as pessoas frequentemente são instigadas - tanto pela esquerda como pela direita - a dizer se são portugueses ou europeias, dizer que as pessoas devem escolher uma identidade ou outra é um grande erro. Penso que em Portugal, se entendo corretamente, temos pessoas que têm uma forte identidade por serem de Lisboa e outras que têm uma forte identidade por serem do Porto. Ambos podem ser ao mesmo tempo portugueses e ambos podem ser ao mesmo tempo europeus. Portanto, sou um forte crente em identidades múltiplas e que se acrescentam. Se queremos ter uma Europa forte, devemos encorajar as pessoas a sentirem-se orgulhosas por serem de Lisboa ou do Porto, de Portugal ou de Espanha, mas orgulhosos por serem também europeus.