Política

O primeiro dia de Joacine, a deputada que quer acabar com "a masculinidade" na AR

Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

Levou a filha à escola, como habitual, mas o resto do dia prometia ser tudo menos comum. A nova deputada do Livre quer que o Parlamento deixe de ser um "exclusivo às elites" e acabar com "a orientação para a masculinidade" do dia-a-dia dos deputados.

O primeiro dia de Parlamento começou bem cedo para Joacine Katar Moreira. A deputada do Livre despertou uma hora e meia antes do que é habitual, numa espécie de mentalização para as horas que se haviam de seguir, com muitas emoções e muitos holofotes à mistura. Afinal, é a primeira vez que uma mulher negra é o rosto de um partido na Assembleia da República.

De vestido encarnado, lábios pintados da mesma cor, casaco negro a contrastar e tranças arranjadas, a ativista negra, doutorada em Estudos Africanos, saiu de casa com a filha de três anos para deixá-la no infantário na zona dos Anjos ainda antes de rumar à Assembleia. Ainda não eram oito e meia da manhã. Acompanhada pelo assessor, Rafael Esteves Pereira, sorriu para as primeiras fotos do dia e foi trocando pelo caminho as primeiras impressões com a equipa de reportagem da revista Visão, a primeira de inúmeras com que, entretanto, se cruzaria. Em direto na manhã da TSF, Joacine não escondeu, minutos depois, "o relativo nervosismo" com o primeiro embate da nova realidade: ser protagonista na casa da democracia.

A descida até à estação de metro dos Anjos, junto à sede do Banco de Portugal, foi feita em passo apressado. A reunião da véspera com o secretário-geral da Assembleia da República tinha dado para perceber que a entrada no parlamento e os vários procedimentos formais com tantos deputados novos na casa gerariam filas e atrasos que a deputada queria, a todo o custo, evitar. O registo formal e a fotografia oficial ficam para a próxima terça-feira, mas mesmo assim Joacine Katar Moreira quis chegar com tempo à primeira sessão, marcada para as dez da manhã.

Joacine e o assessor Rafael ainda ponderaram trocar a linha verde do metro pela amarela, para sair no Largo do Rato, mas optaram pela estação da Baixa-Chiado e caminhar até São Bento. À chegada, tinham à espera mais repórteres e o frenesim típico do primeiro dia de legislatura: fila para passar o controlo dos seguranças, gente a cumprimentar-se à entrada do elevador e os frequentes "sou deputada" para dispensar enganos ou eventuais contratempos.

Chegar ao hemiciclo ainda não é fácil para a deputada, mas, com a ajuda do assessor de imprensa, Joacine chegou, sem se perder, ao lugar a si destinado, no extremo da segunda fila da bancada ocupada pelo PS, pelo que os primeiros cumprimentos de boas-vindas que recebeu foram de deputados socialistas. João Paulo Correia, Eduardo Ferro Rodrigues e Maria de Luz Rosinha foram alguns dos primeiros, a que se seguiram o comunista António Filipe e José Luís Ferreira, do partido ecologista OS Verdes. O abraço mais efusivo veio, no entanto, da socialista Isabel Moreira, que desceu propositadamente da penúltima fila para saudar e conversar com Joacine Katar Moreira.

Desta vez, a sessão foi breve e o assessor do Livre já tinha combinado algumas entrevistas para o período da manhã. Juntos percorreram o caminho até ao edifício novo, onde têm um gabinete provisório no primeiro andar durante o próximo mês e meio, mas acabaram por parar no rés-do-chão, no bar, para tomar o pequeno-almoço acompanhados pelo secretário-geral do parlamento.

Já no gabinete, o entra e sai de repórteres e gente no corredor tornavam o dia ainda mais corrido. Meia hora depois, era tempo de correr aos Passos Perdidos, onde estava combinada outra entrevista e as primeiras declarações coletivas, aos microfones de uma dezena de repórteres. Ainda na escadaria que dá acesso interior ao "edifício antigo", Joacine vira à direita em vez de continuar a subir com os fotógrafos atrás. "Não é por aqui", ouve-se, e todos retomam o percurso.

"A Assembleia da República também tem que se adaptar a mim"

Holofotes e câmaras apontados, por volta do meio-dia, Joacine assevera aos jornalistas: "estamos a inaugurar uma nova era no ambiente institucional português". Uma "nova era" - sustenta - em que "a Assembleia da República deixou de ser apenas frequentada por elites" ou, maioritariamente, masculina.

Num dia em que tudo é novo e diferente, Joacine Katar Moreira acredita que não é só ela a adaptar-se ao Parlamento. "É também a Assembleia da República a adaptar-se a mim", considera. Há que ir conhecendo os cantos à casa, mas também apresentar-se às pessoas e habituar-se à pressão dos meios de comunicação social. Talvez por isso, o cansaço começou a dar os primeiros sinais logo ao final da manhã e a deputada optou por um almoço mais tranquilo, apenas com Rafael Esteves Martins, num simpático restaurante são-tomense, o Kwa Doxi, na Travessa dos Mastros.

A tarde promete, com a sessão plenária e as primeiras intervenções dos grupos parlamentares mais votados, mas o objetivo é ainda poder buscar a filha que ficou na escola logo pela manhã. "Haverá dias em que não será possível, mas quero continuar a ir buscá-la, como é habitual", confessa.

"Ser mulher, mãe e divorciada é mesmo assim", conta. "E, se eu não conseguir manter essa rotina, isso será a prova de que o ambiente e o ritmo da Assembleia da República continuam a ser orientados para a masculinidade", afirma. Razão que, por si só, justificaria a presença da primeira mulher negra a representar um partido no Parlamento português.

Até porque a principal meta está bem definida pelo Livre: "igualdade, igualdade, igualdade". Assim mesmo, repetida por Joacine logo pela manhã ao microfone da TSF, numa reportagem em que a rádio deu voz à alegria de uma deputada que considera a própria eleição "uma conquista da sociedade portuguesa e um sinal de amadurecimento democrático".