"Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho." A análise é de Eduardo Lourenço, que assumiu como poucos o desafio de "repensar Portugal" a partir do seu labirinto da saudade, refletindo sobre essa espécie de tristeza que nos atravessa. A dupla pele, a velocidade com que oscilamos entre Quixote e Sancho, tem sido sublinhada por diversos pensadores, de Boaventura Sousa Santos a Onésimo Teotónio de Almeida.
Os portugueses padecem, recorrendo a uma expressão do filósofo açoriano residente nos Estados Unidos, de uma bipolaridade coletiva. Somos, em determinadas fases de exaltação e otimismo, um povo conquistador, destemido, capaz de feitos heroicos contra ventos e marés - porque, como também sublinhou Eduardo Lourenço, vivemos ainda com excesso de passado. Somos, noutras fases que entremeiam estas, os piores deste Mundo e do outro, fadados para a desgraça e incapazes de sair da cauda da Europa. Tão depressa evocamos um passado glorioso, cristalizando o discurso dos descobrimentos e do "país que deu mundos ao Mundo", como nos consideramos incapazes de vencer a dívida pública, a desigualdade social e tantos outros entraves ao desenvolvimento.
Obstáculos agravados por uma pandemia que nos apanhou numa fase que parecia ser de viragem, quando contávamos iniciar anos de excedente orçamental, mas sem reformas consolidadas nem uma solidez capaz de resistir ao furacão que devastou a economia e mostrou as fragilidades de um Serviço Nacional de Saúde vítima de constante suborçamentação. Às voltas com a queda abrupta do PIB e uma crise de dimensões inéditas, o país volta a oscilar na sua bipolaridade, dividindo-se em leituras extremadas sobre a capacidade de resposta à pandemia. Tendo, como pano de fundo, a dependência de medidas de emergência concertadas numa Europa também mais dividida do que nunca.
Não sendo um fervoroso adepto da União Europeia, Eduardo Lourenço considerou que a viragem de Portugal para os seus parceiros implicou alguns movimentos de substituição do território perdido com a descolonização. Como se o país precisasse de viver em permanente tentativa de habitar um espaço maior do que o seu e de fazer uma constante afirmação das suas capacidades. "O que me admira mais não é a preocupação que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos sempre a viver um Ronaldo coletivo, um "nós somos o melhor do mundo"", afirmou o pensador.
Depois de um ciclo de afirmação, em que nos mostrámos em Bruxelas como "o bom aluno", hesitamos no lugar a ocupar numa Europa que "agora está nua", para voltar a recorrer a uma expressão do ensaísta. O bloqueio do Orçamento poderá constituir uma ameaça séria à coesão política da União Europeia, que tem vivido os últimos anos em permanente sobressalto. Da deriva populista a Leste ao Brexit, que está a poucos dias de poder revelar-se uma desunião sem ponta de acordo, cada vez que recuamos no tempo encontramos sempre crises a minar o funcionamento da UE, que tem nas migrações e na incapacidade em interpretar a matriz solidária e humanista do projeto europeu o desafio mais persistente dos últimos anos.
É neste contexto de sobressaltos que se torna ainda mais premente repensar o que somos coletivamente. Não se trata apenas de olhar para o plano económico, de refletir estrategicamente sobre como vamos diminuir a nossa dependência do turismo que a pandemia afundou, de traçar planos de recuperação e resiliência. Mas de repensar, num momento de inesperado e complexo labirinto, que valores essenciais nos marcam e queremos preservar. E deixar que a cultura nos conduza mais do que tem acontecido. Ousando fazer-nos pensar fora dos limites daquilo que nos parece ser o possível.