Andamos indispostos com os nossos conterrâneos por causa do chico-espertismo dos fura filas no plano de vacinação e nem reparamos que, por essa Europa fora e cá também, exigimos aos governos que façam exatamente o que criticamos ao vizinho do lado.
Nacionalismo das vacinas, chamou-lhe o secretário-geral da Organização Mundial de Saúde, atento a uma corrida que ameaça vacinar todo o hemisfério norte do planeta antes mesmo de alguns países do hemisfério sul conseguirem a sua primeira vacina.
Por estes dias, Israel é o país com a maior taxa de vacinação, prevendo ter toda a população inoculada até ao final da primavera. Este feito é elogiado a toda a hora, mas a forma como o sucesso foi conseguido não vale mais que uma nota de rodapé na avalanche de notícias sobre Covid-19. Para começo de conversa, importa salientar que os israelitas pagaram pelas vacinas da Pfizer o dobro do que pagou a União Europeia e comprometeu-se a fornecer dados de saúde da sua população à farmacêutica. Ainda mais grave, nos territórios ocupados, vacina os israelitas mas não vacina os palestinianos. É o chico-espertismo à escala nacional.
Chico-espertismo e nacionalismo são, aliás, o mesmo egoísmo, que apenas pela escala é possível distinguir. Censuramos socialmente todos os aldrabões que, por cá, beneficiam de esquemas familiares ou amiguismo para chegarem primeiro à vacina, mas olhamos com inveja para os países que recorrem à pequena ou grande batota para passarem à frente dos outros. Por exemplo, na aliança que foi feita entre o Reino Unido e a farmacêutica AstraZeneca, com prejuízo para a União Europeia, preferimos criticar o que entendemos considerar inabilidade da Comissão, que negociou em nome de todos os Estados-membro, elogiando o chico-espertismo britânico. Longe vai o tempo, embora tenham passado apenas alguns meses, em que os governos dos países mais ricos se uniram para financiar, com o dinheiro dos contribuintes, a investigação para chegar a uma vacina em tempo recorde. Isso foi conseguido e a solidariedade esquecida. Imaginem a vida nos países pobres, que têm de esperar pelas sobras dos países ricos.
Este egoísmo à escala global revela igualmente uma perda de racionalidade que em nada ajuda no combate à pandemia. Como o próprio nome indica, na definição do dicionário Priberam, uma pandemia é um "surto de uma doença com distribuição geográfica internacional muito alargada e simultânea", logo, a famosa imunidade de grupo só será conseguida com uma distribuição internacional muito alargada e simultânea das vacinas. Adorava poder dar boas notícias, mas esta espécie de estado de guerra em que vivemos só veio confirmar a tese de Albert Einstein: "Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não há certeza absoluta".