A tensão que parece ter entrado de rompante na vida política não tem grande novidade e basta um apelo à memória recente para percebermos que o que agora vemos acontecer, já tinha acontecido em 2018 de igual forma e em 2020 de forma contrária.
Há três anos, estava a geringonça a funcionar em pleno, o Bloco e o PCP juntaram-se ao PSD e ao CDS, para contrariar a vontade do governo, e aprovar uma norma legal que impôs a distribuição de horários completos e incompletos a docentes de carreira. Marcelo Rebelo de Sousa promulgou o diploma, partindo do pressuposto que não violava a norma travão, e António Costa pediu a fiscalização sucessiva. O Tribunal Constitucional acabou por não se pronunciar, alegando que a sua decisão não teria utilidade, porque seria posterior à concretização da medida aprovada. Podemos sempre dramatizar as consequências de vivermos em democracia com separação de poderes, não podemos, ou não devemos, é tentar antecipar o futuro próximo enterrando o passado recente.
Em 2020, a oposição também se tinha unido para aprovar o alargamento dos apoios sociais extraordinários aos sócios-gerentes. Nessa altura, Marcelo considerava que a norma violava a lei travão e vetou. Exato, para um Presidente que diz que "é o Direito que serve a política, não é a política que serve o Direito", a coerência nem sempre é uma virtude e o que era há nove meses não tem de ser agora.
Desenganem-se, portanto, os que consideram que é a relação entre Marcelo e Costa que está a ser posta em causa com este episódio. Ele até revela que Presidente e primeiro-ministro vivem com a mesma preocupação, a de que o PCP siga o exemplo do Bloco e a geringonça se transforme num monstro de duas cabeças, impedindo a aprovação dos orçamentos do Estado que faltam para se completar a legislatura. Marcelo entendia que podia resolver este problema dando à esquerda um rebuçado em troca de bom comportamento futuro, Costa prefere jogar pelo seguro e procurar jurisprudência que evite que a esquerda ganhe o gosto de se aliar à direita para derrotar o governo.
Sem certezas sobre o tempo que vai demorar a superar a pandemia, sabemos que está em ebulição uma grave crise social e sabemos também que o dinheiro não é infinito e os incentivos para os comunistas apoiarem o governo socialista vão escassear ainda mais. Em crises com a dimensão da que estamos a viver, há sempre um momento em que a austeridade dos cortes, dos aumentos de impostos ou da não aprovação de apoios extraordinários se pode transformar numa espécie de PEC5, deitando por terra a sacrossanta estabilidade. Costa e Marcelo não têm medo um do outro, têm medo que todos os outros não lhes façam a vontade.