Opinião

Marcelo, um médico experiente remexeu na ferida

Daniel Oliveira considera que Marcelo Rebelo de Sousa fez, no último domingo, "o melhor discurso de sempre numa sessão do 25 de Abril ou mesmo da nossa democracia".

No espaço de opinião que ocupa semanalmente na TSF, Daniel Oliveira começou por dizer que "o compromisso do cravo na mão, mas nunca na lapela parecia ser o prenúncio do equilibrismo de Marcelo na sua intervenção na sessão solene do 25 de Abril" e que "quem ouvisse apenas os aplausos finais do CDS e do Bloco acreditaria que foi isso que aconteceu, mas foi o oposto".

Para o comentador, "Marcelo escolheu o tema mais traumático para esta data: a forma como lidamos com a memória do nosso colonialismo" e, na sua perspetiva, "não se limitou a cautelosos chavões, remexeu na ferida, com o cuidado de um médico experiente".

O jornalista considera que o tema não é lateral à data, ou seja, "como Marcelo explicou, o golpe militar que antecedeu a revolução popular é consequência de um beco sem saída a que tinha chegado o império". Assim sendo, defende, "é impossível falar do 25 de Abril sem falar da guerra colonial e falar dela sem compreender o seu anacronismo" e é impossível "impossível compreender esse anacronismo sem compreender a natureza autoritária do regime".

Na perspetiva do comentador, "o tema é relevante, porque a história colonial entrou no debate político presente aqui e um pouco por todo o mundo ocidental, porque os regimes em decadência tendem a olhar para o passado, é verdade, mas também porque vozes que antes não falavam conquistaram o espaço político para que a vida dos seus antepassados coubesse na nossa história coletiva e porque o discurso racista e xenófobo conseguiu romper todos os cordões sanitários".

"Nenhum país que se recuse à condenação moral do colonialismo pode recusar o racismo. Isso não obriga a qualquer anacronismo. Também temos no presente uma posição moral sobre a escravatura", sustenta.

Segundo Daniel Oliveira, "Marcelo Rebelo de Sousa sabe que o discurso sobre o passado legitima o discurso sobre o presente e o futuro e foi disso que quis falar".

O jornalista adianta que o Presidente da República "começou por dizer o que muitos já dizem: que é um missão ingrata julgar o passado com os olhos de hoje, sem exigir aos que viveram nesse passado que antecipassem o valor do presente, sobretudo se não eram adotados nas sociedades mais avançadas de então".

"Na realidade, o anacronismo do julgamento severo do passado não é diferente do anacronismo do discurso oficial de quase todos os estados que perpetua mitos gloriosos. No nosso caso, atribuindo à expansão uma pulsão multiculturalista, perpetuando a propaganda lusotropicalista ou insistindo em falsos pioneirismos que não impediram que Portugal continuasse a ser uma potência no tráfico esclavagista e a manter a exploração do trabalho forçado até ao fim do domínio colonial", afirma.

Na análise de Daniel Oliveira, "Marcelo teve o cuidado de distinguir momentos históricos diferentes, explicando que a guerra colonial já estava desfasada do que então eram os valores dominantes, mas não ignorou que a história recente se cruza com biografias pessoais, nem o podia ignorar", acrescentado que "a sua própria biografia está, como recordou, na charneira entre a ditadura e a democracia, entre o império e o Portugal pós-colonial".

Para Daniel Oliveira, ninguém ficou para trás neste discurso, já que "Marcelo teve o cuidado de falar de todos os que viveram a tragédia do colonialismo - e a guerra colonial, os traumas da descolonização e o caos que se lhe seguiu em Angola e Moçambique são descendentes dessa tragédia - as vítimas da guerra de lá e de cá, os que lá e cá tiveram de reconstruir as suas vidas".

O comentador acrescenta que "Marcelo disse o que já se tinha dito antes, que não podemos passar do culto acrítico das nossas glórias passadas à demolição global da nossa história, mas não nos propôs um meio termo e, muito menos, ocultação, propôs a inteligência e disse contribuir para a inclusão, não para a exclusão"

Daniel Oliveira acredita que "o Presidente tem razão quando diz que não temos de procurar autojustificação ou autoflagelação", já que "um país não tem de viver o seu passado ensombrado pela culpa ou animado pelo orgulho".

"Só que este não é apenas um debate histórico. Esse está a ser feito por historiadores e cientistas sociais e será sempre mais doloroso do que se pensa à medida que os crimes menos falados forem retirados do baú em que todos os povos guardam os seus, sobretudo as memórias mais cruas e dolorosas da guerra que muitos ex-combatentes guardaram para si com enorme sofrimento", defende.

No ponto de vista de Daniel Oliveira, "Marcelo Rebelo de Sousa sabe que não estamos apenas a discutir o passado, estamos a discuti-lo porque isto tem um impacto no presente e no futuro".

"É o que não foi dito que permitiu manter vivos alguns mitos que a propaganda do Estado Novo construiu. E o resultado é haver muitos portugueses sem qualquer memória da ditadura a acreditarem que vivemos pior agora do que na altura. A glorificação do passado leva à repetição do passado", afirma.

Na visão do comentador, "Marcelo tentou encontrar o ponto de equilíbrio e esse é o seu papel, mas não o conseguirá ainda", já que "a guerra colonial voltou a ser tema, porque há uma reescrita da história", algo que existirá sempre "porque ela não está eternamente fixada, é escrita e reescrita vezes sem conta".

"Voltou a ser tema porque havia quem não tivesse lugar nela e porque passou tempo suficiente para regressarmos aos nossos traumas", sublinha.

Para Daniel Oliveira, "ainda não estamos algures entre a autoglorificação e a autoflagelação, estamos muito longe disso" e esse caminho "ainda vai custar".

"É importante ter um Presidente que empreste serenidade e racionalidade a este debate sem tentar voltar a pôr os esqueletos dentro do armário, fazendo o melhor discurso de sempre numa sessão do 25 de Abril ou mesmo da nossa democracia, mas não faz a síntese, porque a síntese da história nunca está feita, apenas tenta que a revisita nos ajude a ir resolvendo o presente e integrando mais gente nele. O Presidente foi o que deve ser: unificador, mas que não une pela omissão e pela cobardia", remata.

Daniel Oliveira