Numa primeira impressão, as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre eventuais recuos no desconfinamento poderiam parecer demasiado seguras, numa altura em que todas as mensagens devem continuar a assentar no princípio da prudência. Mas importa desde logo interpretar a posição do Presidente da República na sua totalidade, sem ouvir apenas excertos ou frases truncadas, e sobretudo enquadrá-la na questão de fundo: a definição da matriz de risco e a forma como equilibramos os vários fatores em ponderação.
Lisboa é efetivamente um problema e é importante agir sem hesitações. A região concentra 70% dos surtos.
O chefe de Estado tem razão. Não basta olhar cegamente para números, continuando a encarar de forma rígida a taxa de incidência e o índice de transmissibilidade. Na equação entram vetores como a baixa letalidade e o facto de não existir pressão sobre os serviços hospitalares, fruto da cobertura quase total da vacinação nos grupos de risco e de um avanço progressivo e a bom ritmo nas faixas etárias mais jovens. Mesmo a questão da imagem externa, que continua a pesar, tem um efeito cada vez mais diluído à medida que o certificado digital começa a ser emitido, facilitando as viagens e a reabertura do turismo. É este pano de fundo que Marcelo assume quando assegura não estar em questão um recuo "generalizado". E este termo, no caso, faz toda a diferença.
Diferente é olhar para problemas localizados. Lisboa é efetivamente um problema e é importante agir sem hesitações. A região concentra 70% dos surtos, cerca de 70% dos internamentos e mantém-se dia após dia na liderança de novos casos. Características de pendularidade contribuem para um contexto que tem vindo a ser analisado pelos especialistas, muitos deles já com sugestões concretas para apertar a malha na contenção da propagação.
O país, realisticamente, não poderá perspetivar um novo recuo generalizado. Cabe a António Costa assegurar que não o vamos ter.
António Costa sabe que ninguém pode garantir nada, nem sequer o Presidente da República, numa fase ainda incerta de pandemia. E sabe igualmente que o principal custo político do que corre mal é seu. Mas não é seu papel perder-se em justificações nem ganha nada em trocas de mimos políticos com Marcelo - por muito que tente depois convencer-nos de que nada se passa entre São Bento e Belém.
O que o Governo precisa de fazer é trabalhar para assegurar a resolução de problemas localizados, como o de Lisboa. Agindo de forma rápida, articulada com instituições no terreno, atacando números preocupantes antes que possam ganhar a forma de nova vaga. É o Governo que toma medidas, sejam elas corretivas ou preventivas. O país, realisticamente, não poderá perspetivar um novo recuo generalizado. Cabe a António Costa assegurar que não o vamos ter. Cabe a Costa, no fundo, trabalhar para dar razão a Marcelo.